Paul Strand, Abstraction Bowls, 1915
Luna Park
Take One
«Esse é o mistério indomável que desorienta os nossos desejos»
Take Two
«The point is that people read about love as one thing and experience it as another. Well, they expect kisses to be like lyrical poems and embraces to be like Shakespearean dramas» (by miss Constance Petersen)
Take Three
«[Hitchcock sempre soube que] As mulheres abrem como as flores e que o branco esconde muitas vezes o negro e vice-versa»
All at ‘Dias Felizes’ the shadow without bull blog
«Esse é o mistério indomável que desorienta os nossos desejos»
Take Two
«The point is that people read about love as one thing and experience it as another. Well, they expect kisses to be like lyrical poems and embraces to be like Shakespearean dramas» (by miss Constance Petersen)
Take Three
«[Hitchcock sempre soube que] As mulheres abrem como as flores e que o branco esconde muitas vezes o negro e vice-versa»
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luna park
Luna Park
«Tinham aceite o fracasso, mas não podiam aceitar o destino. Tinham baixado a cabeça, confundidos, perante a perversa e cruel lei segundo a qual a coisa propriamente dita podia ser menos preciosa do que a simulada»
De Henry James, em ‘The Real Thing'. (tradução de Abel Barros Baptista para a revista Ficções)
De Henry James, em ‘The Real Thing'. (tradução de Abel Barros Baptista para a revista Ficções)
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luna park
Die ferohlixe Vicenxafete
«Construímos para nós próprios um mundo em que podemos viver, supondo a existência de corpos, linhas, superfícies, causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo. Sem estes artigos de fé ninguém suportaria viver agora! Mas isso não os dá ainda como provados. A vida não é argumento, porque as condições de vida poderiam incluir o erro.» F. N.
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Nietzsche
‘A vida não é argumento’ [9/9]
Naquele que é o nono, e último, episódio desta saga, se bem que com prejuízo sério para o desfrute da audiência, pois praticamente todas e cada uma das falsificações seriam dignas duma moldura, sinto que não posso desertar sem esmiuçar três aspectos, sem os quais nunca se entenderá nem a vocação nem o desígnio dum verdadeiro falsificador.
Será que tive sempre sucesso nas minhas falsificações? Não, apesar de um falsificador com nome a defender não se poder dar ao luxo de falhar muitas vezes. Reconheço que uma vez falhei. Pensei a dado momento da minha carreira lograr apresentar ao mundo um conjunto inédito de letras de canções da Elis Regina, canções que ela teria guardado para quando um novo amor incompreendido irrompesse definitiva e gloriosamente pela sua vida. Escrevi as canções, nove, dei-lhes um toque popular, mas digno e sentido, cuidei da métrica, da rima, da simbologia, e posso dizer que cumpriam bem mais que os mínimos para um negócio decente. Mas ninguém lhes pegou. Todos acabavam por me dizer que não podiam tocar naquilo, pegar num amor não correspondido, e que nunca tivesse sido cantado, podia dar azar, podia atraí-lo quase como uma maldição. Fui assim vencido por uma imprevista, generalizada, irracional superstição; e se calhar fiquei guardião dessa maldição, desse desterro, mas guardei uma lição: nunca ficar com uma nega na mão.
Outra das características fundamentais, estruturante e singular, da minha vocação de falsificador, é que jamais me poderia especializar numa só arte, numa só técnica, ou num só ofício, como se lhe queira chamar. Tratou-se isto não apenas uma questão de bom senso (evitar a rotina, o pequeno tique que nos desmascara, as probabilidades de começar a ser reconhecido num meio mais fechado), e de majoração do valor da minha discrição, mas era também a maneira que possuía para me distanciar do mero copista; se bem que nada tenha contra tão digna, e subvalorizada, arte. Repare-se que eu nunca copiei simplesmente nenhuma obra (nem o Mondrian com que me iniciei, nem um Pollock que pintei depois duma barrigada de fettuccine), nunca falsifiquei por encomenda, apenas vampirei a fama (um bem escasso e traiçoeiro) de outros, deixando os meus recursos concentrados no essencial da criação; neste processo, o uso do meu fraco nome apenas faria deslocar o cifrão mais para a esquerda do número.
E, finalmente, por certo outro dos fenómenos que não passará despercebido, é que, a partir de certa altura, tornou-se tão importante para mim a qualidade da obra, e do autor falsificado, como a invenção da história que envolvia a justificação da posse e da plausibilidade do suposto original (reparem que para o enredo se fala de invenção e para a obra se fala de falsificação). A falsificação é afinal a única forma de permitir a suspensão da vida sem a perder. É, pois, normal que o falsificador se apaixone também pela forma de legitimação histórica da sua, soit disant, fraude, soit disant transfiguração. Pena até que fique por contar o caso em que me fiz passar por uma freira holandesa para explicar a posse duma mera árvore tombada e dum tronco partido pintados por von Ruisdael. A falsificação só se consuma verdadeiramente com uma imolação graciosamente tricotada do enganado às mãos ficcionais do falsificador, no fundo, de alguém que está sempre a reescrever o clássico: ‘La Falsification, mode d’emploi’.
Será que tive sempre sucesso nas minhas falsificações? Não, apesar de um falsificador com nome a defender não se poder dar ao luxo de falhar muitas vezes. Reconheço que uma vez falhei. Pensei a dado momento da minha carreira lograr apresentar ao mundo um conjunto inédito de letras de canções da Elis Regina, canções que ela teria guardado para quando um novo amor incompreendido irrompesse definitiva e gloriosamente pela sua vida. Escrevi as canções, nove, dei-lhes um toque popular, mas digno e sentido, cuidei da métrica, da rima, da simbologia, e posso dizer que cumpriam bem mais que os mínimos para um negócio decente. Mas ninguém lhes pegou. Todos acabavam por me dizer que não podiam tocar naquilo, pegar num amor não correspondido, e que nunca tivesse sido cantado, podia dar azar, podia atraí-lo quase como uma maldição. Fui assim vencido por uma imprevista, generalizada, irracional superstição; e se calhar fiquei guardião dessa maldição, desse desterro, mas guardei uma lição: nunca ficar com uma nega na mão.
Outra das características fundamentais, estruturante e singular, da minha vocação de falsificador, é que jamais me poderia especializar numa só arte, numa só técnica, ou num só ofício, como se lhe queira chamar. Tratou-se isto não apenas uma questão de bom senso (evitar a rotina, o pequeno tique que nos desmascara, as probabilidades de começar a ser reconhecido num meio mais fechado), e de majoração do valor da minha discrição, mas era também a maneira que possuía para me distanciar do mero copista; se bem que nada tenha contra tão digna, e subvalorizada, arte. Repare-se que eu nunca copiei simplesmente nenhuma obra (nem o Mondrian com que me iniciei, nem um Pollock que pintei depois duma barrigada de fettuccine), nunca falsifiquei por encomenda, apenas vampirei a fama (um bem escasso e traiçoeiro) de outros, deixando os meus recursos concentrados no essencial da criação; neste processo, o uso do meu fraco nome apenas faria deslocar o cifrão mais para a esquerda do número.
E, finalmente, por certo outro dos fenómenos que não passará despercebido, é que, a partir de certa altura, tornou-se tão importante para mim a qualidade da obra, e do autor falsificado, como a invenção da história que envolvia a justificação da posse e da plausibilidade do suposto original (reparem que para o enredo se fala de invenção e para a obra se fala de falsificação). A falsificação é afinal a única forma de permitir a suspensão da vida sem a perder. É, pois, normal que o falsificador se apaixone também pela forma de legitimação histórica da sua, soit disant, fraude, soit disant transfiguração. Pena até que fique por contar o caso em que me fiz passar por uma freira holandesa para explicar a posse duma mera árvore tombada e dum tronco partido pintados por von Ruisdael. A falsificação só se consuma verdadeiramente com uma imolação graciosamente tricotada do enganado às mãos ficcionais do falsificador, no fundo, de alguém que está sempre a reescrever o clássico: ‘La Falsification, mode d’emploi’.
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a vida não é argumento
‘A vida não é argumento’ [8/9]
A minha falsificação mais arrojada foi mesmo quando produzi uma ‘suposta’ sequela do ‘Pickpocket’ de Bresson. Seria, no fundo foi, um ‘Pickpocket II - la rédemption’, filmado no metro de Paris, num formato próximo do documentário e, por isso mesmo, com uma plausibilidade bressoniana mais controversa, ou seja, o enredo era comandado pela vertigem da circunstância e não por uma subliminar predestinação. No entanto, o encaixe financeiro que se me afigurava possível motivou-me de forma irreversível: soubera que um coleccionador belga de filmes raros e minimalistas pretendia criar uma espécie de museu da cera do cinema e, constou-me, precisava duma relíquia mediática. Eu sentia-me a pessoa certa, aparecendo-lhe com um Bresson em registo quase de hidden camera. Bresson, iria eu revelar em primeira mão, teria realizado esse filme sem ninguém saber, apenas ele com a sua câmara, - quase como num confessionário – e pensava ter destruído a fita quando, no auge de uma dor de dentes, a enterrou atrás duma sebe no bosque de Bolonha. O meu tio-avô tinha então descoberto tal preciosidade quando num fim de tarde aí se passeava a, claro, andar de bicicleta, lubrificando as artroses. O filme apresentava, pelo menos, duas sequências que poderiam perfeitamente ter-se tornado clássicas, não fora o inesperado pudor bressoniano: uma, com a duração de 12 minutos, em que uma moça come um pacote de batata frita apenas com uma mão, entre a estação de Montparnasse e a Gare du Nord, enquanto com a outra mão alivia a bolsa duma velhota em 20.000 francos, chegando inclusivamente a oferecer-lhe uma batata frita e até a largar uma genuína lágrima quando ela lhe mostrou a fotografia duma neta tuberculosa, e uma outra cena, absolutamente antológica, em que um carteirista, na estação de Invalides, rouba uma pasta a um funcionário dos correios, que, ao dar-se conta disso, rompe num riso convulsivo, quase patético. Bresson, desculpem, eu, vou atrás do carteirista sem ele se dar conta disso, e filmo-o durante 12 minutos (Bresson andaria fixado em planos de 12 minutos) a revolver o conteúdo da pasta e a descobrir que apenas continha frascos de mijo para as análises da próstata. O carteirista frustrado, na cena seguinte, visita a avó num lar de idosos para os lados da gare de Lyon, e chora convulsivamente arrependido (12 min) ao seu lado, sussurrando repetidamente: «le pissat m’a remi», enquanto a velhota crochetava umas bases para copos. Enfim, convenhamos que era impossível resistir a um obra desta, e ainda para mais envelhecida, que nem carvalho de pipa, nas entranhas da terra benzida da cidade luz. O belga, de seu nome Julien Flamini, já falecido de coronária entupida, nem queria acreditar no que eu lhe apresentava: um tesouro bressoniano de 48 minutos, revelando em directo as catacumbas do pecado e da redenção por entre os carris da linha férrea. Foi das falsificações que inesperadamente mais me rendeu, mas, como ainda vivia uma fase de libertinagem e outras luxúrias avulsas, tudo se derreteu numa voragem de secreções. Um falsificador que queira uma carreira longa deve ter um sistema glandular preguiçoso ou, pelo menos, conservador.
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‘A vida não é argumento’ [7/9]
Tenho de confessar que o meu maior desafio como falsificador deu-se quando vendi uma obra falsa ao próprio artista falsificado. Tal aconteceu em meados dos anos 90 quando apostei forte na falsificação dum curioso Rauschenberg. Tratou-se duma peça baseada em combinações de caixas de cartão de embalagens de pistachios do Lidl e do Printemps, alegadamente criada pelo artista no princípio dos anos 70, e em que a forma periférica do conjunto fazia lembrar uma mistura entre o altar dos Jerónimos e um guarda fatos do Ikea. Lembro-me que demorei apenas um Sábado de Aleluia a fazê-la, mas ainda tive de pedir à minha vizinha de baixo uma etiqueta de Sonasol para lhe dar alguma corzinha. Saliente-se que ficou um conjunto harmonioso, apesar de ter corrido alguns riscos da minha mulher-a-dias o ter aviado pela conduta abaixo, e até acabou por me dar vazão – numa colagem a imitar pegadas de urso polar- a uns bilhetes de metro de várias cidades europeias que eu coleccionara em miúdo, e dos quais me estava a custar sentimentalmente desfazer. Há sempre uma fase na vida dum falsificador maduro e confiante na qual este tem o impulso de deixar algo de seu, de secretamente pessoal e intimo, nas obras que falsifica.
A forma que encontrei para convencer o próprio Raushenberg de que se tratava duma obra sua, e da qual ele certamente já não se lembrava, foi cuidadosamente elaborada. Encontrámo-nos em Londres, num restaurante de bifes argentinos, e ele, mais o seu agente, estavam fascinados com a minha história: o meu tio-avô era coleccionador de canecas de cerveja alemãs do sec.XVIII e, num leilão nos arredores de Munique, na compra dum lote de 200 canecas em faiança tirolesa, ofereciam aquilo, a que diziam ser: ‘uma obra de fermentação moderna’, precisamente um genuíno Rauschenberg, colado numa base de contraplacado marítimo que tinha servido para tampo de mesa durante a Oktoberfest no histórico ano de 89, e poucos dias depois como andaime na destruição do muro de Berlim. Encantados com a famosa coincidência, e entusiasmados até por poderem reaver um cardboard com tanta história, nem encontravam palavras para me agradecer, e cheguei mesmo a entrever-lhes um ou outro sorrisinho malandro ao contactarem com a minha inocência. Registe-se que o cúmulo de satisfação para um falsificador é quando sente que o seu cliente até está convencido que é ele próprio que se está a aproveitar dum pobre incauto. Foi-me paga uma quantia generosa, no tempo em que o dólar ainda não servia apenas para bailotar, acrescida dum original do próprio Rauschenberg (uma colagem de calendários da nossa senhora de Lurdes com rótulos do Ajax limpa vidros) que acabei por oferecer para o enxoval duma enteada daquela Júlia com quem tinha jantado em Monte Carlo. Como retribuição também lhe dei uma caneca com uma ilustração do Luis da Baviera vestido de Cristóvão Colombo. Um falsificador é sempre um homem que deve reconhecer onde começa a sorte e onde acaba a arte.
A forma que encontrei para convencer o próprio Raushenberg de que se tratava duma obra sua, e da qual ele certamente já não se lembrava, foi cuidadosamente elaborada. Encontrámo-nos em Londres, num restaurante de bifes argentinos, e ele, mais o seu agente, estavam fascinados com a minha história: o meu tio-avô era coleccionador de canecas de cerveja alemãs do sec.XVIII e, num leilão nos arredores de Munique, na compra dum lote de 200 canecas em faiança tirolesa, ofereciam aquilo, a que diziam ser: ‘uma obra de fermentação moderna’, precisamente um genuíno Rauschenberg, colado numa base de contraplacado marítimo que tinha servido para tampo de mesa durante a Oktoberfest no histórico ano de 89, e poucos dias depois como andaime na destruição do muro de Berlim. Encantados com a famosa coincidência, e entusiasmados até por poderem reaver um cardboard com tanta história, nem encontravam palavras para me agradecer, e cheguei mesmo a entrever-lhes um ou outro sorrisinho malandro ao contactarem com a minha inocência. Registe-se que o cúmulo de satisfação para um falsificador é quando sente que o seu cliente até está convencido que é ele próprio que se está a aproveitar dum pobre incauto. Foi-me paga uma quantia generosa, no tempo em que o dólar ainda não servia apenas para bailotar, acrescida dum original do próprio Rauschenberg (uma colagem de calendários da nossa senhora de Lurdes com rótulos do Ajax limpa vidros) que acabei por oferecer para o enxoval duma enteada daquela Júlia com quem tinha jantado em Monte Carlo. Como retribuição também lhe dei uma caneca com uma ilustração do Luis da Baviera vestido de Cristóvão Colombo. Um falsificador é sempre um homem que deve reconhecer onde começa a sorte e onde acaba a arte.
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‘A vida não é argumento’ [6/9]
Uma das minhas falsificações mais bem sucedidas, e de desfecho curioso, coincidiu com uma experiência na literatura apologética. O falsificador é também um produto das circunstâncias, e deve saber ler as tendências, e a economia, do seu tempo: por exemplo, há momentos em que nos devemos perguntar: para quê desgastarmo-nos num Shakespeare quando nos podemos safar perfeitamente com um Pirandello? Mas noutros devemos questionar: porquê desperdiçarmos tempo com um Molière se podemos avançar directamente para um Mário Crespo?
Quando me ocorreu falsificar um sermão do padre António Vieira sentia que não corria apenas atrás do meu prestígio, ou do dinheiro, mas sim atrás também duma purificação da alma. Como tema escolhi a relação entre a parábola do semeador e a plantação da cana-de-açúcar. Tentaria nesse sermão o célebre missionário jesuíta mostrar que a boa terra era aquela em que nascia a doce cana e não a terra saloia onde apenas medravam cebolas e agriões. O novo povo eleito era assim o do índio brasileiro, o Amazonas seria o novo Jordão, ou o novo Eufrates, o Português faria de bom samaritano, e o Espanhol seria uma das pragas. Um exemplar do sermão foi mostrado em primeira mão simultaneamente a um alfarrabista na rua da Misericórdia, e a um jornalista da rede Globo no Brasil. Pela primeira vez eu estava a utilizar um esquema de leilão e punha em confronto o amor à literatura e o amor à audiência.
Ora a questão da autenticidade não interessou minimamente ao jornalista, mas este acabou por se deleitar com a história que eu tinha preparada para explicar a minha posse da edição do, que viria a ser chamado, ‘Sermão da Cana’: o meu tio avô, meio bandeirante-meio missionário, tinha-se apaixonado por uma índia chamada Júlia, e fruto dessa paixão consumada no canavial nasceu um rapazinho que se tornou protegido do missionário português, tendo este acabado por lhe oferecer como presente da primeira comunhão o dito sermão. Eu, descendente dessa noite tão étnica quanto ecuménica, acabaria por ter ficado com a literária preciosidade devido a uma sucessão de felizes acasos, e só fora agora descoberto porque a minha irmã tinha utilizado algumas páginas para uma receita de torta de cenoura. Enquanto isto, o alfarrabista lisboeta corria meia cidade em busca de provas de autenticidade, e recebia como resposta consternação, admiração e algum nervosismo, tal o carácter levemente heterodoxo do texto vieirino, se bem que de inquestionável e genuíno valor apologético. Vendi assim os direitos da história (inventada) da índia Júlia e do meu tio-avô à TV Globo (que não se interessou pelo sermão) e vendi a obra do padre Antº Vieira a um contacto do citado alfarrabista, um milionário excêntrico e piedoso que coleccionava desenhos eróticos, que afirmava serem de Pascal e Montaigne. Foi dos meus trabalhos mais bem sucedidos em termos financeiros que, assim, me enriqueceu em vários sentidos. Com o seu rendimento acabei por passar seis meses no Recife, e não posso jurar que a linhagem do meu tio-avô não tenha ganho continuidade na terra da cana prometida. Um falsificador profissional tem sempre uma certa nostalgia das falsificações onde foi feliz.
Quando me ocorreu falsificar um sermão do padre António Vieira sentia que não corria apenas atrás do meu prestígio, ou do dinheiro, mas sim atrás também duma purificação da alma. Como tema escolhi a relação entre a parábola do semeador e a plantação da cana-de-açúcar. Tentaria nesse sermão o célebre missionário jesuíta mostrar que a boa terra era aquela em que nascia a doce cana e não a terra saloia onde apenas medravam cebolas e agriões. O novo povo eleito era assim o do índio brasileiro, o Amazonas seria o novo Jordão, ou o novo Eufrates, o Português faria de bom samaritano, e o Espanhol seria uma das pragas. Um exemplar do sermão foi mostrado em primeira mão simultaneamente a um alfarrabista na rua da Misericórdia, e a um jornalista da rede Globo no Brasil. Pela primeira vez eu estava a utilizar um esquema de leilão e punha em confronto o amor à literatura e o amor à audiência.
Ora a questão da autenticidade não interessou minimamente ao jornalista, mas este acabou por se deleitar com a história que eu tinha preparada para explicar a minha posse da edição do, que viria a ser chamado, ‘Sermão da Cana’: o meu tio avô, meio bandeirante-meio missionário, tinha-se apaixonado por uma índia chamada Júlia, e fruto dessa paixão consumada no canavial nasceu um rapazinho que se tornou protegido do missionário português, tendo este acabado por lhe oferecer como presente da primeira comunhão o dito sermão. Eu, descendente dessa noite tão étnica quanto ecuménica, acabaria por ter ficado com a literária preciosidade devido a uma sucessão de felizes acasos, e só fora agora descoberto porque a minha irmã tinha utilizado algumas páginas para uma receita de torta de cenoura. Enquanto isto, o alfarrabista lisboeta corria meia cidade em busca de provas de autenticidade, e recebia como resposta consternação, admiração e algum nervosismo, tal o carácter levemente heterodoxo do texto vieirino, se bem que de inquestionável e genuíno valor apologético. Vendi assim os direitos da história (inventada) da índia Júlia e do meu tio-avô à TV Globo (que não se interessou pelo sermão) e vendi a obra do padre Antº Vieira a um contacto do citado alfarrabista, um milionário excêntrico e piedoso que coleccionava desenhos eróticos, que afirmava serem de Pascal e Montaigne. Foi dos meus trabalhos mais bem sucedidos em termos financeiros que, assim, me enriqueceu em vários sentidos. Com o seu rendimento acabei por passar seis meses no Recife, e não posso jurar que a linhagem do meu tio-avô não tenha ganho continuidade na terra da cana prometida. Um falsificador profissional tem sempre uma certa nostalgia das falsificações onde foi feliz.
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‘A vida não é argumento’ [5/9]
A minha única incursão no mundo da fotografia foi atribulada. Quis jogar uma parada alta e avancei para a falsificação dum tríptico de Mapplethorpe dedicado a rabos chineses descaídos (procurando vir a aproveitar financeiramente a suposta revelação da existência duma sua fase secreta e alternativa à das pilas grandes e pretas). Pela primeira vez dependia explicitamente de terceiros: chinesas de rabo descaído. Como se pode antever sou um falsificador perfeccionista e já com algum pedigree, e jamais utilizaria um rabo que não fosse de chinesa, mesmo que o pudesse substituir por outro semelhante e com sucesso. Por isso, compreenderá o leitor, ficar, de certa forma, na mão do rabo descaído de uma chinesa era algo que me preocupava; profissionalmente. Aluguei exclusivamente para o efeito um atelier em Cabo Ruivo, e contratei três moças à saída dum restaurante, onde tinha comido um pato lacado, por acaso até bastante saboroso, para além de 23 crepes, que foi a forma utilizada, por força do ir-e-vir do serviço de mesa, para visionar, aferir e escolher uns traseiros bons para a chapa (leia-se ‘para a fotografia’, obviamente). A sessão fotográfica correu com normalidade, elas, por coincidência, já tinham posado para uma campanha da Multiópticas, se bem que, nesse caso, deram destaque fotográfico a outra zona. Lá compus o tríptico final, uma sequência interessante, com o exemplar central a evidenciar uma suave borbulhagem nas nádegas, e os exemplares dos extremos a revelarem uma ligeira assimetria, o que dava um toque, digamos, perverso, e, por isso, genuíno; houve apenas de ter o especial cuidado para que um eventual plano mais roliço das pequenas nádegas, ao ser apanhado com menos luminosidade, não corresse o risco de se confundir com um par de testículos nigerianos. Mapplethorpe poderia, sim, efectivamente, ter fotografado aquilo. Aliás, cinco segundos depois da obra estar concluída, era mesmo ele o seu autor, pois um falsificador que não se deixe ele próprio enganar com a autenticidade da sua obra deve abdicar de imediato e dedicar-se ao private banking. O tríptico fotográfico foi então apresentado a uma galerista de Gotemburgo, fascinada em fotografia oriental pós-confuciana e que, ao vislumbrar a possibilidade de possuir um genuíno Mapplethorpe com esse tema, praticamente me ofereceu o seu corpo, ainda de muito boa serventia, note-se. Mas dava-me mais jeito cobrar mesmo em contado, e acabei por alargar castamente o meu humilde pecúlio. A excitação sueca era tal que acabou por me dispensar ao relato de como tinha chegado à posse de tamanha relíquia fotográfica, o que agradeci para todo o sempre; era uma história inventada, mas que não dignificava a fama do meu tio-avô. A falsificação de qualidade deve controlar as suas próprias fronteiras, de forma a não se confundir com artes falsárias menores como, por exemplo, a banal politica.
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‘A vida não é argumento’ [4/9]
Quando tive a ideia de falsificar um texto de Freud sobre a importância das dores nas costas na formação da personalidade obsessiva, tomei, por precaução, a decisão de colocá-la numa fase em que o autor ainda embrionava nas suas teses sobre o inconsciente e a pulsão, e onde o recalcamento era ainda confundido com a azia. No entusiasmo da escrita corri alguns riscos, era difícil simular com credibilidade o nível de ansiedade intelectual que Freud deveria manifestar, mas tinha-me treinado meses antes com um pequeno negócio que efectuara com duas cartas de Lou Salomé a uma costureira de Wiesbaden. Foi-me fácil encontrar papel e máquinas de escrever da época junto de alguns vendedores de velharias em Viena e assim em dois meses tinha a obra pronta. Sabia que tinha uma relíquia nas mãos, algo que o próprio Freud gostaria de ter escrito, algo que ele próprio me compraria se estivesse vivo. Quase que nem me senti um falsificador o que me deu uma certa frustração. A minha vítima cliente foi um comerciante alemão de livros e documentos raros, especializado em literatura científica, e que ficou conhecido por ter rejeitado um livro de orações de Darwin confundindo-o com um livro de canções dos The Who. Bastante condicionado pela necessidade de recolocar o seu prestígio no pedestal que julgava merecer, o meu produto proporcionar-lhe-ia essa redenção e com fogo de artifício. Desta vez o meu tio avô fez de ex-fornecedor de cocaína ao mestre austríaco, e tudo foi relatado numa voz semi-sussurrada para que a minha família nem sequer pudesse suspeitar da minha afronta, motivada pelo custo das obras de restauro duma propriedade centenária na Alsácia. A Alsácia é – pela sua bilinguidade - das melhores regiões para disfarces desta índole. Nesta altura da minha carreira já recebia os pagamentos numa conta dum banco suíço e dava-me ao luxo duma certa monogamia. Um falsificador credenciado precisa dalguma estabilidade emocional para se distinguir dum batoteiro. Profissão também bastante digna e exigente, registe-se. Mas mais monótona e exigente para as costas.
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‘A vida não é argumento’ [3/9]
A falsificação que marcou definitivamente a minha dedicação exclusiva a esta actividade, foi a de um quadro de Turner. Já tinha tentado um impressionismo mais duro, ou maduro, mas fui confrontado com a desconfiança da directora dum museu em Antuérpia, que mesmo sendo apenas especialista em coxas de Rubens, torceu o nariz a um Monet vegetariano que eu tinha pintado depois dum almoço de petinga frita. Turner não é um falsificante fácil, mesmo que tal possa parecer à primeira vista. Segundo vim a apurar, o sentido e o vigor das suas pinceladas estava directamente condicionado pelo que ingerira no jantar imediatamente anterior. Passei assim duas semanas seguidas a comer uma mistela de cebola e batata-doce até sentir que já estava preparado para pintar uma maré-cheia na Cornualha. Saiu-me bastante bem, tanto em colorido como em ortodoxia de pincel, nenhuma cor parecia trair o espírito do mestre, de tal forma que depois de terminada a obra cheguei a hesitar em assinar o meu nome. O que geralmente destrói a carreira dum bom falsificador é a tentação de se tornar original e genuíno. Afastada a tentação, concentrei os meus esforços na sua venda a um antiquário estabelecido em pleno West Yorkshire, especializado em espelhos estilo Regency, e que ficou deslumbrado com a possibilidade de diversificação que eu lhe oferecia. Era aquilo a que se costuma chamar um comprador motivado, e que inclusivamente se deleitou com a história que lhe contei sobre a forma como o quadro tinha chegado às minhas mãos: um tio avô estalajadeiro que, um dia, de forma desinteressada, tinha acolhido graciosamente o pintor quando este, a caminho de Veneza, acabara de perder a carruagem das 7. E o que ele se riu com o pormenor da carruagem das 7! Mas, regra básica: o que põe um ser humano normal em estado de total incredulidade, serve para transformar um antiquário inglês numa sopeira com cio. Pagou-me com um banho de metal esterlino que me alimentou uma estadia poligâmica em Edimburgo, em que apenas tive tempo para escrever um poema inédito de Blake no intervalo das mudas de roupa. A regra dum falsificador em início de carreira é nunca repetir nem uma mulher, nem uma camisa.
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‘A vida não é argumento’ [2/9]
Uma das falsificações que mais me entusiasmou foi a de um suposto original inédito (dactilografado) de Beckett. Na altura ainda hesitei entre ele e a Gertrude Stein, mas tive receio da opção pela americana pois, mesmo sendo literariamente mais fácil de falsificar, corria o risco de não poder apresentar uma história consistente sobre como me tinha chegado às mãos. Escolhi um conto breve, semi-labiríntico, brincando com as palavras ‘amours' e ‘moeurs’, encaixada cronologicamente entre a tradução francesa de Murphy e o original de Molloy, e não me foi difícil provar a consistência do texto, torneado à volta duma cena em que Miriam (a protagonista, digamos assim, se é que alguma coisa era protagonizada) repele o seu amante à base do arremesso de cadeiras chippendale em pau santo e de traições de índole sexual com um marceneiro de Lille. O alfarrabista de Rouen a quem vendi o dito produto não fez muitas perguntas, nem discutiu o meu preço (o suficiente para aguentar 10 Júlias em primeira mão durante 3 meses) e apenas indagou se eu sabia a marca e modelo da máquina de escrever. Hesitei, mas disse que efectivamente isso não sabia, tinha obtido o exemplar dactilografado em troca de mudar a fralda durante um ano a uma baronesa russa relativamente incontinente. O que faz um falsificador de sucesso é saber qual o momento certo em que deve ser sério.
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‘A vida não é argumento’ [1/9]
Aceitei a minha vocação profissional para falsificador já ia para os dezasseis anos. A primeira experiência de mediano sucesso foi a pintura da quase-cópia dum Mondrian que vendi ao museu municipal de Aix-en-Provence. Na altura a explicação que dei foi que o tinha recebido em herança do meu tio avô, que afinava saxofones e que o tinha obtido como pagamento do próprio artista. O curador do museu era o que agora se chama de gay, mas na altura apenas me pareceu estranho, distraído e dado à exuberância do gesto. O quadro não me teria demorado quase nada a pintar, não fora o tom do encarnado que não me saiu bem à primeira; por falta de experiência, umas vezes aroxeava, noutras alilazava. Com o dinheiro que recebi comprei uma edição dos irmãos karamanzov em segunda mão e levei uma miúda chamada Júlia – também em segunda mão - a jantar a Monte Carlo. Corei três vezes, mas na altura já não tinha tantos problemas com os encarnados. Não me lembro do nome do restaurante, mas sei que, no dia seguinte, ainda tomei banho com ela numa praia a caminho de Nice. Um falsificador não precisa de memória, nem de imaginação. Apenas de muita atenção.
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Rubber season
Por muito que custe ouvir, o proselitismo católico não é um método de inclusão; estará mais próximo duma convocatória, e a vocação cristã abre brechas, não serve para tapa poros. A universalidade do catolicismo andará sempre de mão dada com uma certa exclusividade; o cozido à portuguesa explica analogicamente muita coisa: aceita todo o tipo de enchidos, mas dificilmente combina com salmão fumado. O cristianismo não é, pois, uma religião de equilíbrio, obviamente, e daí patrocinar estoicamente essa coisa fantasmo-alegórica chamada teologia – uma ciência peculiar de gestão de conflitos. Quem procura o equilíbrio, hinduiza-se, tapa-se com um mantrinha, toma duas de nirvalona, emborca dois karmas tónicos e recosta-se na busca da sabedoria e justiça eternas.
A Asneirologia da Moral
Dom Gaspar Formosinho, como tinha muitos gases, foi escolhido pela tribo para definir a moral para os próximos 5 anos. Na tribo os períodos de moral são de 5 anos. Depois desse período muda para outra. Novas premissas, novas urticárias. Uma das regras que historicamente fez mais furor foi aquela em que se podia apalpar miúdas desde que fosse com as costas das mãos. Fez tanto sucesso que chegou a temer-se uma mutação genética nesta face das extremidades, que começavam a aparecer cada vez mais com a pele fininha.
Bem, mas Gaspar, talvez influenciado pelo seu constante estado de espasmo interior, definiu como principio moral director o Princípio da Contenção. A tribo iria reger-se por uma consciência firme mas contida. Contenção no sal, a tribo estava a afeiçoar-se à tosta mista em detrimento da broa, educação cosmopolita em contentores e não em palhotas, pois a tabuada parecia colada com cuspo, contenção nos salários dos feiticeiros da tribo, que deixavam de poder lançar cartas à comissão, contenção nas danças do fogo, que apenas poderiam ser realizadas em recintos devidamente ventilados, mas, a título de compensação, abertura das pinturas de guerra a ambos os sexos, ou seja, a mulher doravante poderia também pintar-se quando fosse coser as bainhas. As uniões entre amassadores de cereal do mesmo sexo passariam também a ser aceites sem qualquer limitação desde que lavassem as mãos no fim. Continuaria a ser, acima de tudo, uma tribo asseada, contendo o micróbio e o fungo. As amas de leite passariam também a ver comparticipadas as despesas em creme para as estrias e os cobridores oficiais passariam a ter acesso a um fundo de pó de talco para as virilhas. A sodomia poderia ser permitida entre cavalos desde que não rebentassem as cercas, e os ovos só poderiam ser estrelados após duas semanas de choca infrutífera.
Gaspar Formosinho acabou exausto a sua prescrição moral e encomendou a um poeta a inscrição em acta. Este exigiu o pagamento em bolachas filipinas de chocolate branco ao que Gaspar reagiu negativamente, tendo optado por uma solução em prosa. Devidamente publicada e formalmente autenticada com a hemoglobina da primeira menstruação de duas virgens de cabelo encaracolado, esperam-se agora 5 anos de coloridos clisteres.
Bem, mas Gaspar, talvez influenciado pelo seu constante estado de espasmo interior, definiu como principio moral director o Princípio da Contenção. A tribo iria reger-se por uma consciência firme mas contida. Contenção no sal, a tribo estava a afeiçoar-se à tosta mista em detrimento da broa, educação cosmopolita em contentores e não em palhotas, pois a tabuada parecia colada com cuspo, contenção nos salários dos feiticeiros da tribo, que deixavam de poder lançar cartas à comissão, contenção nas danças do fogo, que apenas poderiam ser realizadas em recintos devidamente ventilados, mas, a título de compensação, abertura das pinturas de guerra a ambos os sexos, ou seja, a mulher doravante poderia também pintar-se quando fosse coser as bainhas. As uniões entre amassadores de cereal do mesmo sexo passariam também a ser aceites sem qualquer limitação desde que lavassem as mãos no fim. Continuaria a ser, acima de tudo, uma tribo asseada, contendo o micróbio e o fungo. As amas de leite passariam também a ver comparticipadas as despesas em creme para as estrias e os cobridores oficiais passariam a ter acesso a um fundo de pó de talco para as virilhas. A sodomia poderia ser permitida entre cavalos desde que não rebentassem as cercas, e os ovos só poderiam ser estrelados após duas semanas de choca infrutífera.
Gaspar Formosinho acabou exausto a sua prescrição moral e encomendou a um poeta a inscrição em acta. Este exigiu o pagamento em bolachas filipinas de chocolate branco ao que Gaspar reagiu negativamente, tendo optado por uma solução em prosa. Devidamente publicada e formalmente autenticada com a hemoglobina da primeira menstruação de duas virgens de cabelo encaracolado, esperam-se agora 5 anos de coloridos clisteres.
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Rubber sucks
Faltam em Português edições decentes do Novo Testamento. Desprovidas daquele aspecto beatizante, ou sem as paneleirices de algumas edições especiais. Seria um favor que se fazia à palavra de Deus e às pobres vítimas da nossa condição de alienados descendentes duma ascese escravizante, se alguma empresa capitalista fizesse uma porra duma edição como se faz num livro normal, com capa normal, papel normal, paginação normal, letra normal, anotações normais, índices normais e, saliente-se, sem ilustrações de merda. Haveria mais leitores, melhores leitores e menos pessoal a ter de se debruçar sobre o empolgante tema da borracha na pila. No entanto, a beleza dos evangelhos não é essencialmente literária, como agora se insiste por vezes, é, sim, uma beleza cultural: no cenário duma revelação com redenção (género bacalhau com todos), Deus expõe-se a uma história, envolve-se numa moral, compromete-se numa teleologia, empolga-se numa retórica, e faz de folha para definir o vento, como diria o poeta, desmentindo o filósofo do grande bigode que um dia escreveu que ‘a vida não é argumento’.
The fox hunt
Winslow Homer
Homer abandoned the human subject entirely in “The Fox Hunt” of 1893. A fox ventures forth to forage for berries on the snow-covered land, and a sinister line of starved black crows converges to attack him. The ensuing life-and-death struggle will be over quickly, but the pulse of nature that drives the winter ocean against the cliffs in the distance will go on forever.
Desmaker corner
Queria apenas deixar registado que achei o gran torino um filme mediano e até desconsolado. Já corre e vai continuar a correr nos próximos dias baba mais ou menos viscosa sobre o dito e acho bem desmarcar-me. Cenas enfiadas à pressão, [clint a passear no banquete dos chinocas; clint a defender a miúda chinoca dos pretos; clint a ser visto pelo feiticeiro chinoca] cenas mal estruturadas, [o passado de clint com a mulher, o chinoca a trabalhar para clint, clint na Coreia; a relação de clint com a miúda chinoca] cenas mal aproveitadas, [a personalidade do chinoca, a confissão de clint, a cadela de clint; o jardim de clint; a leitura do testamento de clint], cenas mal filmadas, [a tentativa de roubo do carro do clint; o tiroteio à casa dos chinocas] cenas enchouriçadas, [clint no barbeiro] mau casting, [a namorada do chinoca; os pretos, a nora do clint] e uma multidão de etc’s.
A malta agora enternece-se com uma velhice griffada (Roth’s, Clint’s, Oliveira’s, e até já algum Saramago) a falar da morte com um estilo viril blasé. Como se viver muito ensinasse alguma coisa sobre a morte e a decadência, a culpa e redenção. Já no filme da gaja que era boxeur, o clint se esticara; agora apenas se matou. Clint pareceu-me uma espécie de medina carreira a fazer um documentário sobre a remissão duma vida em evasão fiscal através do mecenato. Revelou-se um Tarantino light em slow motion. Mas, se calhar, posso ter visto mal.
A malta agora enternece-se com uma velhice griffada (Roth’s, Clint’s, Oliveira’s, e até já algum Saramago) a falar da morte com um estilo viril blasé. Como se viver muito ensinasse alguma coisa sobre a morte e a decadência, a culpa e redenção. Já no filme da gaja que era boxeur, o clint se esticara; agora apenas se matou. Clint pareceu-me uma espécie de medina carreira a fazer um documentário sobre a remissão duma vida em evasão fiscal através do mecenato. Revelou-se um Tarantino light em slow motion. Mas, se calhar, posso ter visto mal.
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Almoços Grátis [18]
Escusado será dizer-se que estive vários dias sem pôr os pés no restaurante. Voltei lá hoje devidamente treinado no estilo ‘como quem não quer a coisa’. Aguentei o estilo nos primeiros dois minutos. As salas estavam repletas de gente. L. mostrava-se um enigma com pernas. Eu, numa progressão geométrica indexada às garfadas duma horrível salada de salmão, ia desfazendo a minha pose, e não parava de rosnar para dentro, ansiando por um gesto qualquer de L., que agora já lia as minhas previsíveis ausências com a cartilha aberta na página certa. Aparentemente eu estaria numa posição de suposta vantagem: posso ir ao restaurante sempre e só quando quiser, enquanto ela tem de lá estar sempre, e servir-me quando eu for. Aparência. Quem escolhe é afinal escolhido. Será que Deus tem mesmo a consciência disto tudo?
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Almoços Grátis [17]
Hoje uma das mesas corridas estava ocupada com um grupo de amigos de L. Quando entrei ela estava sentada nessa mesa, num canto, mas, para todos os efeitos, sentada na mesa. Por isso, ceguei; nem percebi se havia sequer mais alguma outra mesa no restaurante. E ela ria-se, ria-se, ria-se como nunca a tinha visto. Pedi arroz de pato, tendo sido o único critério: algo que se pode comer sem sequer olhar, e tem um sabor tão banal e constante que não merece qualquer atenção especial. Refira-se que ela até se levantou para me vir atender, mas eu parecia uma mula empalada. Felizmente essa mesa cancerosa estava no meu perfeito ângulo de visão, e para sobreviver ao almoço não tive de parecer um lançador do peso. Eram todos tipos com aquele interesse plastificado: temas óbvios e reacções óbvias; aculturados ao sabor das pousadas de Portugal e da Easyjet. Todos produziriam, quando lá chegassem, meias idades de panfleto do BES. Eram, são, os amigos de L. É obviamente mentira que se escolhem os amigos. Escolhem-se tanto os amigos como o fornecedor de televisão por cabo. Só tomei café; «traga-me já dois»; «e um bocado de pão e manteiga» - tinha-me até esquecido que já almoçara. Apenas o ciúme arrasa com o tempo. Mas apenas o ciúme consegue dar sentido à ausência de tempo. L. mostrou-se especialmente solicita comigo, e até se riu quando, de forma ostensiva, saí sem me despedir. Será o homem um animal preparado para amar?
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Almoços Grátis [16]
Pouco mais de meia casa. Quase só clientes ocasionais. Filetes de garoupa fresca como prato do dia. L. vestia uma saia larga e uma blusa justa, tudo em tons de azul marinho. A luz que entrava pelas enormes janelas punha-lhe os cabelos acobreados. Eu nem tocava no chão, era só matéria do pescoço para cima. Dizia que sim a tudo; não podia correr o risco de estragar alguma coisa daquele quadro de renascença tardia com um não despropositado. A certa altura chamei L. com um aceno digno da Sagração da Primavera. Tive sete segundos para inventar o que lhe queria dizer. Ela riu-se, uma, duas, três vezes. Agarrou os cabelos a simular o rabo-de-cavalo. Falou-me das notícias que passavam na televisão da sala ao lado. Não posso jurar que eu não tenha feito uma pose exagerada de ouvinte interessado. Já desciam querubins pela chaminé da lareira quando a mesa ao lado nos interrompe e pede uma torta de laranja. Fixei-lhes as caras; hesitei em sufocá-los ali mesmo, ou ir, com mais calma, comprar uma arma. Depois pensei em como eliminar todas as laranjeiras da terra, arrancando-as uma a uma pela raiz. Arrastei-me na sobremesa e no café. Tentei-me até a pedir um conhaque mas nem sabia as marcas, tive medo do ridículo. Hoje era claramente um dia em que não podia ser eu a cometer erros. Há dias em que tudo se pode jogar. Fui treinado para não desperdiçar momentos. Porque será que temos de desperdiçar tanto para aproveitar tão pouco?
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Almoços Grátis [15]
Num dia de enchente o F. e a C. foram almoçar comigo. São casados e sócios. Ele um poço de bom senso, ela um vulcão em actividade. Teve um fraco por mim quando era mais nova. E eu, se calhar, um fraco por ela. Mas tanta fraqueza fez-se força e soubemos ir cada um à sua vida sem ter desperdiçado porcelana. Ainda hoje ela me controla como se fosse a guardiã dum dote. De vez em quando também vão ao restaurante, mas nunca tínhamos ido os três. O meu receio era que ela se apercebesse dalguma coisa. Iria perceber de certeza, eu tinha de estar preparado para isso. Mas a perspicácia feminina tem sempre uma brecha; no caso dela era adorar uma boa distracção. E eu distraía-a com facilidade, mas não deixava de ser um almoço de risco. L. estava demasiado ocupada para o cruzamento de olhares dar um filme francês. Mas olhá-la era sempre uma missão. Solitária. No pain, no fear. Uns dias guerreiro, noutros cordeiro. «Aquela rapariga olha muito para ti, não olha?», «Deve pensar que eu entro nalguma telenovela». Tínhamos comido todos arroz à valenciana. Mais um frete que eu fiz à ementa. L. serviu-nos depois a sobremesa com um ar terno. Não arranjei explicação para tanta ternura em torno dum molotof. «Tens aqui quota?», «Se calhar então sou é parecido com algum tipo da asae». Nuns dias aquele restaurante é um palco, noutros uma caverna; nuns dias Sófocles, noutros, Platão. Nuns dias projectamos, noutros somos projectados. Será que à volta da luz se pode explicar tudo?
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Almoços Grátis [14]
Estive então vários dias sem ver L. no restaurante - nem em qualquer outro sítio, se adoptarmos a concepção de que a memória e a imaginação não têm direito a lugar. O primeiro dia em que a vi novamente, ontem, foi demasiado intenso para ser contado. È como tentar contar a história do centro da circunferência. É tão central, tão óbvio, que não se consegue dizer nada. Hoje estava uma casa fraca. È muito instável de freguesia. O prato do dia, bola de carne, talvez não seja alheio a isso. L. descobriu que eu odeio bola de carne; só não sabe que eu detesto comer em geral. Não é tanto a comida, é mesmo comer. Podia dizer que hoje foi um dia normal. Normal é um estado muito mal compreendido: normal nunca é entendido como normal apenas. Comi uma tarte de cogumelos que a cozinheira algumas vezes faz. Pareceu-me que L. ficou contente por eu ter escolhido isso. E eu fiquei feliz por ela ter ficado, ou pelo menos ter parecido ficar, contente. Não comi sobremesa nem café, e saí à pressa, algo indefinível entre o inquieto e o desanimado. Mas a calma não é a minha praia. Porque será que não suportamos bem a normalidade?
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Almoços Grátis [13]
Depois de não ter ido lá um dia, acabaram até por ser dois, por vezes acontece, - a vida corre mesmo o risco de ser só aquilo que acontece – voltei lá hoje. Estava menos de meia casa e algo estranho no ar. O prato do dia era Cordon Bleu. Raro, muito raro. Devo ter feito uma cara de admiração que levou uma das empregada a rir-se. L. não havia maneira de aparecer. Pedi cataplana, uma coisa que apenas faziam por encomenda e para doses de duas pessoas, só para testar, para ver se acontecia alguma coisa de diferente do habitual. Apareceu logo o pai de L., o dono do restaurante. Conhece-me, claro, mas sabe há muito que não gosto de conversa sem tema. Sou muito estruturado nas conversas. «Está à espera de alguém?». Não podia dizer ao homem que estava à espera da filha. Ele acha-me um pouco estranho. Até é bom quando nos acham estranhos e distantes, e mesmo arrogantes, assim temos menos coisas para explicar; por isso um «não», com um sorriso generalista foi suficiente. Já tinha dado meia volta mas voltou atrás outra vez e disse-me. «a L. hoje não veio… estava engripada e foi ao médico». O meu cérebro experimentou então a sensação de viver sem sangue durante uns segundos. Devo ter tido a reacção típica dos acamados nos cuidados intensivos e o homem retirou-se, meio atrapalhado. Até à chegada da ‘cataplana para dois’, o meu hemisfério esquerdo concentrava-se na ideia: ‘porque é que ele se sentiu na obrigação de me vir dizer que hoje a L. não vinha’, e o meu hemisfério direito anestesiava-se procurando uma explicação para o fenómeno: ‘no dia em que eu ia testar se ela sentiu a minha falta, ela não aparece’. A cataplana soube-me a cabrito assado, pedi um pudim flan mas, felizmente, esqueci-me de comê-lo. Será que Deus percebe mesmo o que nós sofremos?
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Almoços Grátis [12]
Novamente casa cheia. Mas desta vez um alvoroço diferente. Principalmente junto de uma mesa em particular. Finjo que não me interessa e sento-me com um ar distante; mas forçado. Uma actriz estrangeira era o centro das atenções. L. não conseguia passar alheia e deu-me um sorriso corrido no meio daquele gesto que costuma significar ‘confusão’. Era um dia bom para lhe apreciar o passo, a desenvoltura, não o aspecto frágil, mas aquele lado organizado, e dominador, que têm as mulheres inteligentes quando se sabem desejadas; saberá mesmo? Mandou uma outra empregada vir-me servir. Não era a primeira vez; registe-se que não era a primeira vez. De vez em quando faziam uns linguadinhos fritos que eram muito apreciados; comi disso com o desinteresse habitual. E bebi vinho. Só muito raramente bebo vinho, mas o vinho ajuda-me a apreciar os ambientes sem me envolver neles. Dá-me distância, sem anular – numa primeira fase – a percepção. Alivia-me dos detalhes. E o essencial era ela. L. . Não comi sobremesa; bebi o café rapidamente e fui-me embora. Penso que ela podia perfeitamente ter-me dado uma palavrinha para além dos dois ou três sorrisos fugazes. Se calhar amanhã não vou lá. Preciso de saber se ela sente a minha falta. Será que um amor comprovado depois sabe melhor?
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Almoços Grátis [11]
Casa cheia. Cheiíssima. Pela primeira vez não havia mesa livre. Eu nunca reservo. Reservar é uma demonstração de fraqueza; planear é uma fragilidade. Mas improvisar é uma selvajaria; e eu agora sentia-me na selva. Que iria L. fazer. Viu-me. Ficou nervosa. Não tinha uma resposta imediata. Desapareceu por uns segundos e depois dirigiu-se a mim. Rezei para que me demonstrasse alguma intimidade. Não pedi um beijo, claro, isso seria ao nível de afastar as águas do mar vermelho a Moisés. «Hoje há frango na púcara; é um instantinho» E, acto contínuo, serve-me uma taça com champanhe, que trazia dissimulada atrás das costas, acompanhada dum sorriso com sabor a morangos. Fiquei que nem pastorinho em Maio à beira duma azinheira. Ela é a filha do dono do restaurante, pode tomar assim algumas liberalidades. ‘Ave, ó cheia de graça, my name is Angel Gabriel, e tu serás feliz para sempre comigo’. Quando me sentei ainda me tremiam as pernas. Felizmente nem foi preciso pedir. Comi o frango na púcara sentindo-me um pavão no paraíso. No final do almoço ela sentou-se na minha mesa, suspirou de cansaço, e disse-me: ‘não demorou muito tempo, pois não’. Um dia explico-lhe o que é o tempo. Será que pode ser Natal na Primavera?
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Almoços Grátis [10]
J. é um tipo que faz imenso sucesso com as mulheres. Hoje foi comigo lá almoçar; aquilo é-lhe natural, acho que ele nem precisa de se esforçar. Tem um físico banal, um aspecto banal, uma cultura banal, um paleio banal; mas não há mulher com o certificado de hormonas em dia que lhe resista. Já estão a ver: fui fazer outro teste a L. Neste jogo da paixão amorosa de vez em quando fazemos de bichinhos de laboratório; faz parte. Esperei para ver o que ele escolhia, e qual a reacção dela. Como de costume ele teve de fazer o número do ‘que me recomenda’. Ela riu-se. Até dá raiva. Sorrisos daqueles só lhe cacei duas ou três vezes. Penso que ela só está a fazer-se de simpática porque ele está comigo. Os poetas já explicaram esta coisa do amor ser cego. Ele escolhe cozido, deixando no ar aquele sentimento de que se pôs nas mãos dela. Sacana. Eu, ainda com menos fome naquele dia, refugio-me nos filetes. Penso que já disse, os filetes dão aquele ar de que ‘somos da casa’; e assim enviei-lhe uma mensagem através da ementa: «ok, distrai-te um bocadinho com ele, mas lembra-te que és minha e eu sou teu». Não há gesto dela, palavra dela, abanar de rabo dela ao pé dele que eu não tenha microfilmado. ‘Agora hei-de confirmar se ela também faz isto comigo’ repeti em regime de massacre de consciência até à sobremesa. Hoje não foi um almoço, foi uma batalha. Serei mesmo parvo?
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Almoços Grátis [9]
Caminho sobre brasas. Estava uma casa composta e ainda não tinha esgotado nada da ementa. Muita escolha para quem não se interessa por comer acaba por ser desconfortável. Hoje usei um «o que é me que recomenda hoje?»; é raro fazê-lo, e muito menos com um ‘me’. Não gosto que me recomendem a comida, e muito menos ela, e muito menos hoje; depois sinto-me obrigado a gostar e, como não gosto de nada, a probabilidade de ter de mentir é grande. Eu geralmente nunca preciso de mentir, posso mandar mentir por mim. É uma hipocrisia dupla. Felizmente L. não sabe isso. Bem, em rigor não faço ideia do que ela sabe ou não sabe; em maior rigor ainda nem sei sequer se ela se interessa em saber o que quer que seja. No fundo, de que precisa ela de saber de mim para me servir comida à lista. Sabe que olho para ela; sim, isso ela sabe. E sabe também que me alimenta. Já não me lembro do que comi hoje. Seremos nós mais aquilo que comemos ou aquilo que vemos?
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Almoços Grátis [8]
Não sei se terei feito bem. Uma amiga tinha combinado almoçar comigo e acabei por ir lá com ela. Podia ter evitado, mas; mas; mas; mas. Eu sei que quis testar a reacção de L. Foi uma decisão muito arriscada. Depois não teria condições, nem pretextos para explicar, para atenuar, para enquadrar, para nada. O restaurante estava com pouca gente, quase só dos habituais, e eu passei o almoço que nem um restaurador de quadros à procura do mais pequeno sinal de ciúmes na cara de L. Os seus ciúmes seriam o meu troféu. O seu desinteresse o meu cadafalso. Tanta tragédia num mero restaurante, cheguei a pensar. Pedi salada russa, mas cada garfada parecia um rodar da roleta. Sim, havia tensão no olhar de L.. Posso garantir que sim; cheguei a rezar para o bingo: L., transtornada, deixaria cair um tabuleiro a rebolar estridentemente pelo chão; mas os deuses não me permitiram essa prova incontestável. Ainda a testei no café, mas a mulher ciumenta às vezes refugia-se no zelo, eu sei. L. serviu-me o final da refeição como uma profissional.
Mas a vertigem faz parte do jogo da sedução, da insegurança e, coisa que nunca tinha feito, antes de me ir embora fui perguntar a L. qual seria a ementa do dia seguinte; «línguas de gato»; disse-o com os lábios a fazer um triângulo que poria Pitágoras a cuspir sangue. Será que quem não arrisca não petisca mesmo?
Mas a vertigem faz parte do jogo da sedução, da insegurança e, coisa que nunca tinha feito, antes de me ir embora fui perguntar a L. qual seria a ementa do dia seguinte; «línguas de gato»; disse-o com os lábios a fazer um triângulo que poria Pitágoras a cuspir sangue. Será que quem não arrisca não petisca mesmo?
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Almoços Grátis [7]
Casa fraca e ambiente estranho. O prato do dia nada disso indicaria, o bacalhau à Brás é uma receita alegre e muito procurada. L. traz um olhar vago, distante; desfocado. Circula entre as poucas mesas com clientes como se fossem obstáculos. A primeira vez que passou por mim fez um daqueles gestos com a mão que podem querer dizer qualquer coisa. Ora qualquer coisa é igual a nada. E nada, na minha condição, é igual a tudo. Não me consigo concentrar na minha missão e apenas como. Tenho uma certa pena de não gostar de comer. Ter fome irrita-me até. Penso que se L. fosse florista eu teria de ir todos os dias ao cemitério. Certamente haveria de arranjar um morto de estimação. A minha cabeça é salva nesse momento pela clássica mousse. De Chocolate. Detesto chocolate. Mas não acho bom que ela saiba; poderia reagir mal. Será mesmo verdade que somos mais o que escondemos do que aquilo que revelamos?
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Almoços Grátis [6]
O restaurante é utilizado frequentemente para almoços de trabalho. As pessoas sentem-se confortáveis. Eu também lá estou em trabalho; obviamente. O meu ofício é vê-la. Aliás, não serei o único. Se calhar começo a habituar-me a não ser o único em nada. Naquele restaurante não se consegue perceber onde está a fronteira entre a gula e a luxúria. Numa mesa grande tinham encomendado arroz de pato e L estava a ser muito solicitada. Pedi também arroz de pato para testar. Arrisquei; perdi: já não havia e ela não se mostrou pesarosa. De raiva nem escolhi nada. Disse que tinha uma reunião e não podia perder tempo. Acabei por comer só uma sopa e saí. Pedi a Deus para ser atropelado. Deus foi razoável. Começou a chover. Voltei para trás e; e ela emprestou-me um chapéu-de-chuva. «Amanhã há pataniscas», disse-me, como quem nos dá o número de telefone. Se alguém me disser hoje que Deus não existe enfio-lhe com o chapéu-de-chuva pelo cu acima. Será que no céu há pataniscas?
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Almoços Grátis [5]
Hoje comi esparguete. Quando há esparguete na ementa eu sinto que L. prefere que se escolha esparguete. São coisas que eu sinto. Apenas por isso escolho o esparguete, pois é uma comida que exige demasiada atenção. E é um prato obsessivo; não ajuda quando apenas se está ali para acompanhar a passada frágil e irregular de L. Mas há momentos na vida em que as únicas opções são a obsessão ou o desinteresse. Felizmente ela trazia uma notícia só para mim: havia farófias. Ela sabia que eu gostava de farófias, e eu considerava que isso era um segredo só nosso. É a ilusão mais saborosa, a de que se partilha um segredo. Ninguém mais pediu farófias. Vi um brilho nos olhos dela; mas também estava muita luz. O restaurante tem janelas grandes. O que ajudaria a ver melhor agora podia tapar-me a verdade. Será que os olhos afinal também podem mentir?
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Almoços Grátis [4]
Só dei conta que já estava no restaurante depois de ter começado a comer. E eu que nem vou lá para comer. Deve ser a rotina. Surpresa, Novidade, Entusiasmo, Hábito, Rotina, Desinteresse, Fim; acho que é esta a sequência teórica. Ainda bem que tinham daquelas batatas fritas às rodelas. Só as batatas fritas às rodelas me conseguem afastar de pensamentos pessimistas, é mesmo a única coisa que me faz sentir que estou a comer. A L. trazia umas calças de ganga apertadas e uma blusa de algodão com a gola rendada; cintada, obviamente. Eu olho sempre com detalhe para o que ela traz vestido; acho até que ela já reparou que eu olho muito para ela; mesmo sendo eu muito discreto. Mas quando se quer ver, o olhar nunca é discreto. Hoje havia um grande burburinho na sala. Grupos. Ela estava, por isso, mais nervosa. O riso dela era, assim, um riso mais nervoso. Não que eu gostasse menos; mas nesses dias é menos provável que ela se ria directamente para mim. Ou melhor, ri-se para mim, mas não é claro que me seja conscientemente dirigido. Os sentimentos só são verdadeiramente nossos se formos nós a causá-los. Mas será que alguém pode depois ficar com sentimentos que fomos nós a ajudar a fabricar?
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Almoços Grátis [3]
Hoje cheguei mais tarde e muitas mesas já estavam desfeitas. O prato do dia tinha sido arroz de pato, mas já não havia. Eu gosto quando o prato do dia esgota, porque a L. sente que tem de ser mais atenciosa comigo. Eu sei que pode ser apenas uma cortesia comercial. Comercial no sentido de artificial. Hoje fiquei a pensar nisso até chegarem os bifes em cebolada. Quando já não há o prato do dia eu peço sempre bifes em cebolada. É uma técnica. Resulta. A L. sabe que eu nesses casos peço sempre bifes em cebolada e ri-se; parece a tal cumplicidade. Se calhar é um automatismo; e um automatismo pode ser pior que uma artificialidade. Entretanto veio a salada de frutas e esqueci-me de pensar mais nisso. A fruta distrai-me também. Será que uma cumplicidade por ser automática perde valor?
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Almoços Grátis [2]
Casa Cheia. E não era dia de cozido. Talvez fosse a mini saia de L; ou então o coelho à caçadora. Os clientes ocasionais não poderiam sequer saber, mas talvez tivessem ouvido falar. Estas coisas sabem-se; não são só as coisas más que se sabem. O cheiro do coelho acicata os restantes sentidos. Infelizmente o meu sentido preferido é o tacto; num restaurante acaba por se tocar em poucas coisas. Muito menos na L.; muito menos quando traz mini saia; muito menos quando eu nem sequer tenho fome. No entanto é óptimo não ter fome, a fome distrai. A sede já se leva melhor. Hoje estive mesmo para lhe dizer que só lá estava para a ver, mas não tive coragem. É estranha a quantidade de coisas simples que é preciso ter coragem para fazer. Comi filetes. Ela às vezes ri-se quando eu peço filetes, por isso digamos que é uma escolha relativamente segura; relativamente. Mas fico sempre sem saber se deveria ter comido outra coisa. Será que a hesitação nos tira carácter?
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Almoços Grátis [1]
Entrei, estava meia casa. Uns, os do costume, outros, ocasionais; uns adaptados, outros, via-se bem, não. Para comer, todos. Todos menos eu. Eu realmente estava lá para observar, ter de comer era o preço que pagava para ver. Polvo era hoje o prato do dia. Gosto quando polvo é o prato do dia, os olhos dos comensais têm um brilho diferente e a silhueta de L. torna-se mais ondulante. L. é uma das empregadas. Diz-se, dizem, ouvi, que ela tinha um amante secreto entre os clientes. Faziam-se apostas sobre quem seria. Todos apostavam primeiro em si próprios. Eu também apostava que apenas poderia ser eu.
Hoje não comi o prato do dia, optei por vitela estufada. Ninguém mais estava a comer vitela estufada e assim eu poderia distinguir-me. Uma forma de alguém se distinguir é por comer coisas diferentes dos outros. Deve ser assim desde o princípio dos tempos. Mas hoje não foi ela que me veio servir a vitela. Não é um bom sinal, não. Um rapaz, - sem nada que o distinguisse de especial - dos ocasionais, pediu-lhe lulas estufadas. L. riu-se com satisfação. Eu podia perfeitamente ter pedido lulas também. Até suporto melhor lulas do que vitela estufada. Porra; será que as lulas poderiam ter feito a diferença?
Hoje não comi o prato do dia, optei por vitela estufada. Ninguém mais estava a comer vitela estufada e assim eu poderia distinguir-me. Uma forma de alguém se distinguir é por comer coisas diferentes dos outros. Deve ser assim desde o princípio dos tempos. Mas hoje não foi ela que me veio servir a vitela. Não é um bom sinal, não. Um rapaz, - sem nada que o distinguisse de especial - dos ocasionais, pediu-lhe lulas estufadas. L. riu-se com satisfação. Eu podia perfeitamente ter pedido lulas também. Até suporto melhor lulas do que vitela estufada. Porra; será que as lulas poderiam ter feito a diferença?
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Die ferohlixe Vicenxafete
«Os pensamentos são as sombras dos nossos sentimentos, sempre mais obscuros, mais vazios e mais simples do que estes» (nº 179)
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Nietzsche
Um dois três experiência (III)
Existe também uma derradeira explicação para isto tudo, e também está no céu: é lua cheia e eu não me calo. Pareço uma porteira. Hoje deu-me para isto e ainda a acrescentar abri um pacote de pevides descoloradas, que comprei – há meses! - numa nojenta bomba de gasolina perto de Sabadell e que já estão a fazer uma tangente apertada ao prazo de validade. O sal combinado com a lua aboborada devem estar para a minha mioleira como o manuel alegre está para a vesícula de sócrates, e como não tenho à mão nenhum candal para mandar para o caralho, e os putos já estão a dormir, desforro-me neste tasco, neste desprotegido e incauto tasco, que não se pode defender de mim. Nem eu dele, vendo bem; vou para dentro.
Um dois três experiência (II)
O post aqui debaixo parecia um cavalo de troia cheio de carmelitas irlandesas a tentar converter o irão pela via do whisky. É triste não saber como vos demonstrar que apenas a experiência da fé pode ajudar a compreender que o amor humano não é uma quimera, tal como é triste o josé lello ser português, e eu ser lagarto, ou terem acabado as areias na pastelaria aqui em frente. No entanto, apesar da experiência falhada, mesmo sob os auspícios (expressão que está a cair em desuso, infelizmente) da divina sapiência (só trabalho nessa base) julgo importante dizer que a distância que separa o espaço da fria erudição teológica, do espaço da religião de gente corrente que se esforça por viver no meio do mistério da condição humana, é a mesma que separa o espaço do amor do espaço da sua insegurança: ou seja é impossível existirem um sem o outro. Tal como não haveria cultura grega sem escravos, não há amor sem dúvida. Só digo banalidades. Mas a racionalização do amor é também uma novidade cristã.
Um dois três experiência
Olhar para a religião como algo que serve para dar sentido à vida é tão confrangedor como olhar para ela como fonte de verdade. Em ambos os casos é ir ao engano. Aliás, o cúmulo místico de encontrar consolo na verdade não passa de um número de circo para – sobredotados - malabaristas da alma.
A mensagem cristã é essencialmente uma mensagem de vida, de renovação, de ensinar a experimentar a presença de Deus; quando Jesus diz que é a ‘verdade e a vida’, a primeira parte está lá só para dar algum aspecto retórico de seriedade, ou seja, para abespinhar um bocado mais a rabinada.
A experiência religiosa deve, por isso, afastar-se o mais possível duma luta intelectual, ou, até, duma luta moral e teológica; ou seja, aqui têm mesmo razão os espiritualismos de cordel: o importante é o Amor a Deus.
No entanto, Deus está sabedor de que a experiência religiosa (leia-se: o processo pelo qual o espírito humano se liga com o divino) é uma experiência cultural. (*) Por isso, a maneira de acreditar é estrutural e fundamentalmente adquirida; toujours.
Ora a experiência da certeza tem a mesma raiz da experiência do amor. Assim, o amor é, tal como, e apenas tal como, a fé, um cocktail fodido. Insegurança e entusiasmo, dúvida e generosidade fermentam por aí alegremente em regime de mistela, sem precisar nem de verdades nem de sentidos, apenas exigem estar sempre bem misturadas para que nenhuma se mantenha tempo em excesso ou à superfície ou no fundo.
Da mesma forma que a experiência do genuíno saber científico não precisa da verdade absoluta para nada, a fé – cristã – ensina a olhar para o dogma como o homem olha para as rugas da mulher que ama: já nem podia passar sem elas.
(*) (tal como a ciência, por muito que custe aos cientistas, também é) A ressurreição não terá a mesma leitura por um ocidental ou por um chinoca, tal como, por exemplo, um conceito simples como 50%, ‘metade’, apesar de ser objectivamente sempre a mesma coisa, também não é lido da mesma maneira por um mongol da universidade de Pequim ou por um investigador molecular romeno numa universidade do Minnesota, quando olham para a propagação duma mutação duma célula, ou para a divisão dum núcleo, ou avaliam o grau de satisfação da mulher que amam.
A mensagem cristã é essencialmente uma mensagem de vida, de renovação, de ensinar a experimentar a presença de Deus; quando Jesus diz que é a ‘verdade e a vida’, a primeira parte está lá só para dar algum aspecto retórico de seriedade, ou seja, para abespinhar um bocado mais a rabinada.
A experiência religiosa deve, por isso, afastar-se o mais possível duma luta intelectual, ou, até, duma luta moral e teológica; ou seja, aqui têm mesmo razão os espiritualismos de cordel: o importante é o Amor a Deus.
No entanto, Deus está sabedor de que a experiência religiosa (leia-se: o processo pelo qual o espírito humano se liga com o divino) é uma experiência cultural. (*) Por isso, a maneira de acreditar é estrutural e fundamentalmente adquirida; toujours.
Ora a experiência da certeza tem a mesma raiz da experiência do amor. Assim, o amor é, tal como, e apenas tal como, a fé, um cocktail fodido. Insegurança e entusiasmo, dúvida e generosidade fermentam por aí alegremente em regime de mistela, sem precisar nem de verdades nem de sentidos, apenas exigem estar sempre bem misturadas para que nenhuma se mantenha tempo em excesso ou à superfície ou no fundo.
Da mesma forma que a experiência do genuíno saber científico não precisa da verdade absoluta para nada, a fé – cristã – ensina a olhar para o dogma como o homem olha para as rugas da mulher que ama: já nem podia passar sem elas.
(*) (tal como a ciência, por muito que custe aos cientistas, também é) A ressurreição não terá a mesma leitura por um ocidental ou por um chinoca, tal como, por exemplo, um conceito simples como 50%, ‘metade’, apesar de ser objectivamente sempre a mesma coisa, também não é lido da mesma maneira por um mongol da universidade de Pequim ou por um investigador molecular romeno numa universidade do Minnesota, quando olham para a propagação duma mutação duma célula, ou para a divisão dum núcleo, ou avaliam o grau de satisfação da mulher que amam.
The Crabbe Corner
A The World of Interiors deste mês (a melhor revista aparentemente de decoração do mundo (*) e sem gajas para distrair a atenção nem nada) traz um especial ‘Design Week Fabrics’ praticamente dedicado a este blog, e eu não podia deixar de scannear dois postalinhos para vòceisss; apreciem à minha responsabilidade:
este primeiro, que permite dar um ar fresco e viçoso ao rebanho...
e agora este outro, que permite dar um ar mais imperial e clássico ao seu dark side...
(*) reparem nesta frase que arranca com a reportagem: «Trotting out everything from candy-striped cottons to the plushest of velvets…»; escrevem que nem uns baudelaires cruzados a prousts dum caralho. E nem pus a que tem uma cabrinha deliciosa adornada com uns richelieu tassels senão até lacrimejavam.
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Genesis ao raio X
Frequentemente (esporadicamente, vá) me pergunto porque terá Deus inspirado o escritor bíblico com a metáfora da costela. Note-se que não ponho em causa a costela em si, até me parece um pedaço de corpo bem escolhido, - colocado numa zona a meio caminho entre as zonas de desfrute e as zonas dos bicos de papagaio, e bastante preferível a um fígado ou a uma verruga – apenas me pergunto das razões por detrás da escolha. Concedo que poderá ter sido algo mesmo da lavra exclusiva do escritor, que se sentiria no momento especialmente acossado, ou mesmo espartilhado, por algum processo de emancipação mais veemente, não ponho de lado essa hipótese, mas motiva-me mais a elucubração positiva sobre a opção da costela. Reparemos que o mundo ainda vivia uma fase de comunhão (não forçada) com o ambiente, e uma solução literária na altura baseada num elemento mais vegetal (um pinhão, um caroço de azeitona, ou um pezinho de agriões) ainda hoje poderia ser vista com outros olhos, e eventualmente mantivesse por mais anos as energias femininas focadas no núcleo pacificador do lar, que é, como sabemos, o microondas e a sopa de legumes. Mas não, foi escolhida a costela, o que eu interpreto, numa primeira fase, como um desejo de salientar inequivocamente o fenómeno do ‘osso mau de roer’. Ora se foi essa a mensagem fundadora para a feminilidade, não a devemos descurar acomodados no que tem de relativizador qualquer figura literária. Mas, por outro lado, a costela representa um osso dalguma forma envolvente, protector, propriedade que as mulheres olham com progressiva ambiguidade, e mesmo desconfiança, tanto mais que por vezes até se galvanizam com o uso da expressão «não sou a tua mãezinha», algo que, registem, deixa qualquer homem perplexo, pois em todas as mulheres está a nossa mãezinha, obviamente. Não deixa também de ser um osso que se apresenta em arco, em efectiva tensão, largando pois um lastro de energia instável mas igualmente sempre em estado de prontidão. É um osso interessante, temos de reconhecer, e uma outra opção metafórica com um cotovelo ou uma rótula poderiam ter levado a sociedade a desarticular-se ainda mais rapidamente. No entanto, reforço, o mundo vegetal tem razão em sentir-se posto de lado, foi uma certa desfeita, foi sim senhor, daí até talvez a maior propensão para a recorrente descalcificação feminina e alguma grelificação genital. Se quisermos ir mais longe, - não é dignificante, mas também não será condenável - o próprio reino mineral poderá sentir-se posto de lado, pois um feldspato ou um xisto também gostariam certamente de ter feito parte da metáfora fundadora da guerra dos géneros, reparem que até daria algum estilo um episódio do género, ‘e ao sexto dia Deus pegou num belo e roliço pedaço de basalto, esfregou-o num montinho de terra avermelhada, polvilhou-o com pólen de madresilvas, elevou-o aos céus e disse: adão, toma, põe na forja e amanha-te’» Definitivamente, penso mesmo que a necessidade de não assustar logo adão foi o que presidiu à escolha de um elemento próximo e do seu corpo, designadamente da costela, um osso que até já dava um bocadinho de si quando ele se espreguiçava todas as manhãs. Como mais ou menos já dizia Abraão a Isaac: «Deus providencia tudo». Nós é que fomos aos poucos perdendo o controlo à coisa; à costela, digamos.
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sanatório
O talho do foi-se
Andrew Swifete inventara a elixir do amor, por mero acaso, enquanto investigava uma técnica de levedura com malmequeres geneticamente modificados. Utilizando apenas as pétalas de bem-me-quer, inesperadamente, duma espuma amarelada exala um odor que fulmina Andrew, deixando-o de beiço caído pela miúda que lhe servia todos os dias um palmier coberto ao lanche. Sabendo que a ciência se escreve muitas vezes direito por linhas tortas, Andrew não se mostrou céptico perante o fenómeno e começou a sair com Luisinha Faulkenere, seguindo o balanço fornecido pelos milagrosos fungos. Luisinha desconhecia por completo as razões da súbita paixão de Andrew e vivia encantada o seu conto de fadas da pasteleira com o bioquímico.
Mas com o que não contava o nosso par de pombinhos era com a intromissão do talho do senhor Costa Melville , onde Luisinha se abastecia das costeletas de borrego e do coelho caseiro. E isto porquê, perguntará eventualmente o ocasional – mas atento - leitor. Porque o elixir tinha afinal um deselixir: precisamente a mioleira de coelho à caçadora. Tudo aconteceu no primeiro almoço dominical que Luisinha preparara para Andrew, com um zelo de cerzideira, e para o qual escolheu o seu principal e mais sucedido pitéu, comprado de véspera no talho do sr Costa. A paixão desvaneceu-se logo após a primeira colherada saída da terrina. Luisa olha para Andrew e é trespassada na cabeça e no coração pelo mais terrível fumo: o que é que eu estou aqui a fazer com este gajo que me trata que nem uma flor de estufa? Isto é um rato de laboratório, e eu preciso dum padeiro a sério. Andrew Swifete, habituado à evolução lenta do conhecimento científico não estava preparado para este desaparecimento súbito da atracção que exercia em Luisinha Faulkenere e passou semanas a fio dissecando compulsivamente coelhos e demais mamíferos no talho do sr. Costa Melvile. O amor, que numa singela e fungosa pétala lhe tinha vindo, num talho foi-se; o amor de levedura, provara-se, era amor de pouca dura; o feitiço fora insolitamente arrebatado e num talho teria agora de ser recuperado.
Andrew procurou então afincadamente para o seu coração um novo unguento, um novo ancoradouro, ali entre uma vazia e um pojadouro. O melhor amor, afinal, descobrirá ele mais tarde, está fora da bancada do laboratório, fora das câmaras de fermentação, mas por entre as nervuras do acaso, nas entremeadas da incerteza, na rinzada da dúvida, no lombo da sorte. O verdadeiro amor encontra-se sim a encher chouriços e raramente a regar a carne com sofisticados molhos cocktail.
(ou, - e é impossível resumir melhor - como acabei de ouvir neste momento ao gajo do Pingo Doce, por causa da alteração dos hábitos de consumo em crise: «a salsicha está em alta, o Actimel está em queda», sic.)
Mas com o que não contava o nosso par de pombinhos era com a intromissão do talho do senhor Costa Melville , onde Luisinha se abastecia das costeletas de borrego e do coelho caseiro. E isto porquê, perguntará eventualmente o ocasional – mas atento - leitor. Porque o elixir tinha afinal um deselixir: precisamente a mioleira de coelho à caçadora. Tudo aconteceu no primeiro almoço dominical que Luisinha preparara para Andrew, com um zelo de cerzideira, e para o qual escolheu o seu principal e mais sucedido pitéu, comprado de véspera no talho do sr Costa. A paixão desvaneceu-se logo após a primeira colherada saída da terrina. Luisa olha para Andrew e é trespassada na cabeça e no coração pelo mais terrível fumo: o que é que eu estou aqui a fazer com este gajo que me trata que nem uma flor de estufa? Isto é um rato de laboratório, e eu preciso dum padeiro a sério. Andrew Swifete, habituado à evolução lenta do conhecimento científico não estava preparado para este desaparecimento súbito da atracção que exercia em Luisinha Faulkenere e passou semanas a fio dissecando compulsivamente coelhos e demais mamíferos no talho do sr. Costa Melvile. O amor, que numa singela e fungosa pétala lhe tinha vindo, num talho foi-se; o amor de levedura, provara-se, era amor de pouca dura; o feitiço fora insolitamente arrebatado e num talho teria agora de ser recuperado.
Andrew procurou então afincadamente para o seu coração um novo unguento, um novo ancoradouro, ali entre uma vazia e um pojadouro. O melhor amor, afinal, descobrirá ele mais tarde, está fora da bancada do laboratório, fora das câmaras de fermentação, mas por entre as nervuras do acaso, nas entremeadas da incerteza, na rinzada da dúvida, no lombo da sorte. O verdadeiro amor encontra-se sim a encher chouriços e raramente a regar a carne com sofisticados molhos cocktail.
(ou, - e é impossível resumir melhor - como acabei de ouvir neste momento ao gajo do Pingo Doce, por causa da alteração dos hábitos de consumo em crise: «a salsicha está em alta, o Actimel está em queda», sic.)
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contos
a talhe de foice
Há muito tempo que o dicionário não ilustrado não falava dos artifícios do amor. Será o amor mais uma conveniência para a espécie, ou mais uma impertinência para o indivíduo? Meia dúzia de entradas (1289 a 1295) sobre as forças ocultas da cabala amorosa.
Apetecer – Estado de espírito comandado secretamente pela vontade, mas que se consegue camuflar bastante bem sob a capa da oportunidade
Querer – Combustível da era da primeira revolução industrial da alma, e que, por deixar muita fuligem, tem vindo a ser substituído com crescente sucesso pelas baterias portáteis do dar-jeito.
Apetecer – Estado de espírito comandado secretamente pela vontade, mas que se consegue camuflar bastante bem sob a capa da oportunidade
Querer – Combustível da era da primeira revolução industrial da alma, e que, por deixar muita fuligem, tem vindo a ser substituído com crescente sucesso pelas baterias portáteis do dar-jeito.
Poder – Espécie de instrumento derivado da vontade, não sujeito a qualquer regulamentação, e que permite obter a rentabilidade desejada sem grande empate de capital afectivo.
Convir – Movimento contabilístico da vontade que serve para saldar as contas entre o esforço necessário e o bem-estar suficiente.
Interessar – Mecanismo clássico da vida selvagem que o homem incorporou na sua vida pela via intravenosa e que vai filtrando pela via venenosa
Dar jeito – Energia de fácil acumulação e ainda mais fácil uso, que serve para sustentar movimentos de risco calculado em planos pouco inclinados.
Convir – Movimento contabilístico da vontade que serve para saldar as contas entre o esforço necessário e o bem-estar suficiente.
Interessar – Mecanismo clássico da vida selvagem que o homem incorporou na sua vida pela via intravenosa e que vai filtrando pela via venenosa
Dar jeito – Energia de fácil acumulação e ainda mais fácil uso, que serve para sustentar movimentos de risco calculado em planos pouco inclinados.
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dicionário não ilustrado
The blade runner
O inconsciente é um dos melhores exemplos da famosa faca de dois gumes. Um dos lados serve para barrar o compacto amanteigado da existência, fornecendo-nos uma camada gelatinosa de ilusões, o outro fatia-nos o lombo estóico em finos e delicados carpaccios de resignação. Em qualquer dos casos deve enxaguar-se bem depois de usar e guardar sempre com a ponta obsessiva virada para baixo.
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piquenas crueldades da criação
The dark side of the wool #n
A todo o relãçamento se segue uma nova tosquia.
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Dark side of the wool
Luna Park
O que é preciso é gente
Gente com dente
Gente que tenha dente
Que mostre o dente
Gente que seja decente
Nem docente
Nem docemente
Nem delicodocemente
Gente com mente
Com sã mente
Que sinta que não mente
Que sinta o dente são e a mente
Gente que enterre o dente
Que fira de unhas e dente
E mostre o dente potente
Ao prepotente
O que é preciso é gente
Que atire fora com essa gente
De Ana Hatherly, ‘Esta gente/Essa gente’
Gente com dente
Gente que tenha dente
Que mostre o dente
Gente que seja decente
Nem docente
Nem docemente
Nem delicodocemente
Gente com mente
Com sã mente
Que sinta que não mente
Que sinta o dente são e a mente
Gente que enterre o dente
Que fira de unhas e dente
E mostre o dente potente
Ao prepotente
O que é preciso é gente
Que atire fora com essa gente
De Ana Hatherly, ‘Esta gente/Essa gente’
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Depilocracia
'Como Guardar o Desejo', lápis ikea sobre pasta de celulose prensada 80 gr, colecção particular, sem assinatura
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Homo Congressistus
O dicionário não ilustrado volta às lides políticas com o alto patrocínio da sardinha portuguesa. (Com as entradas 1281 a 1288, dando mais um contributo para o espiolhar sociológico da nossa grei)
Pobres de espírito – Mistura de contornos bíblico-rabelaisianos, e que define o espécime do homem da polis que gosta de pensar com a sua cabeça, desde que esta não destoe muito da dos que estão ao seu lado.
Pragmáticos – Designação que acolhe nas mais diversas teorias com a designação de ‘oportunistas’, mas que no fundo caracteriza filosoficamente o tipo de pessoas que prefere a certeza dum lugar à incerteza duma ideia.
Desocupados – Abrange o género de pessoas que tanto podiam estar ali como na feira da Malveira a apalpar melancias. É talvez o grupo sociologicamente mais válido e coerente, e com maior potencial de concentração onírica.
Encalhados – O congresso parece-me um lugar fadado para o engate. E com características que se encaixam tanto no género tímido como no género marialva. Reparemos por um lado na enorme facilidade na escolha de temas sofisticados para desbravar conversas com potencial de intimidade (ex. o penteado voluptuoso de Mª de Belém, a enigmática virilidade de Maria de Lurdes, ou os lábios idilicamente carnudos de António Costa), e por outro lado na imensidão de momentos de pausas simbólicas para as fulminantes trocas de olhares (por exemplo, um suspiro de Almeida Santos, um raciocínio rápido de Jaime Gama, ou mesmo uma descarga neuronal de António José Seguro). E já nem falo de apagões.
Sacristães – Incapazes de viver longe de quem oficia as cerimónias, mas certos de que a migalha é a antecâmara do papo-seco, este tipo realiza nos congressos um dos seus momentos de glória, onde se faz sentir exuberantemente que sem alguidar de plástico não há lava-pés.
Curriculumeiros – Trata-se do vulgar representante do grupo dos ‘esteves’. Eles estiveram lá é a sua máxima vitae. Naquele Março de 2009, no apagão, foram eles que arranjaram o primeiro petromax para que o líder pudesse ligar para a mãe a avisar que afinal ia jantar. O seu currículo é uma lista de peregrinações a momentos de culto, e muitos ainda guardam a primeira pastilha elástica que Soares mascou quando Ramalho Eanes lhe renovou democraticamente a goela e a bilis.
Carentes – A necessidade de qualquer tipo de companhia é uma marca d’água das sociedades modernas. Não se trata aqui nem de engate, nem de solidariedade ideológica, é apenas a simples e discreta companhia. Alguém que olhe para nós com um sorriso que não seja piedade cristã, ou simples cortesia, não, é aquela coisa de estar na mesma sala do Jorge Lacão ou do Narciso Miranda, e ninguém nos mandar uma piada por issso, e até nos acenarem com a cabeça em sinal de comunitária satisfação, e inclusivamente um ou outro aperto de mão cúmplice sem cheirar ostensivamente a coiratos.
Puros – O que nem Abraão, nem Malthus, nem Darwin podiam adivinhar é que Adão tinha duas costelas parideiras e que, enquanto era cometido o pecado original, uma outra moça, que estava noutra zona a apanhar ameixas para fazer compota, se manteve fora da grande queda primodial e deu origem a uma genealogia de homens puros e bons, mas que, por força duma gama de espermatozoides mais escrupulosos e cuidadosos, nunca se reproduziram excessivamente. Estes homens e mulheres simples apenas sentem o seu destino de zelar pelo bem comum, e embrenham-se por toda a sociedade, incluindo congressos e feiras de enchidos do pingo doce, como pequenas luzes de esperança e amor, procurando apenas disseminar uma mensagem de confiança em lideres a quem um dia um anjo apareceu num sonho.
Pobres de espírito – Mistura de contornos bíblico-rabelaisianos, e que define o espécime do homem da polis que gosta de pensar com a sua cabeça, desde que esta não destoe muito da dos que estão ao seu lado.
Pragmáticos – Designação que acolhe nas mais diversas teorias com a designação de ‘oportunistas’, mas que no fundo caracteriza filosoficamente o tipo de pessoas que prefere a certeza dum lugar à incerteza duma ideia.
Desocupados – Abrange o género de pessoas que tanto podiam estar ali como na feira da Malveira a apalpar melancias. É talvez o grupo sociologicamente mais válido e coerente, e com maior potencial de concentração onírica.
Encalhados – O congresso parece-me um lugar fadado para o engate. E com características que se encaixam tanto no género tímido como no género marialva. Reparemos por um lado na enorme facilidade na escolha de temas sofisticados para desbravar conversas com potencial de intimidade (ex. o penteado voluptuoso de Mª de Belém, a enigmática virilidade de Maria de Lurdes, ou os lábios idilicamente carnudos de António Costa), e por outro lado na imensidão de momentos de pausas simbólicas para as fulminantes trocas de olhares (por exemplo, um suspiro de Almeida Santos, um raciocínio rápido de Jaime Gama, ou mesmo uma descarga neuronal de António José Seguro). E já nem falo de apagões.
Sacristães – Incapazes de viver longe de quem oficia as cerimónias, mas certos de que a migalha é a antecâmara do papo-seco, este tipo realiza nos congressos um dos seus momentos de glória, onde se faz sentir exuberantemente que sem alguidar de plástico não há lava-pés.
Curriculumeiros – Trata-se do vulgar representante do grupo dos ‘esteves’. Eles estiveram lá é a sua máxima vitae. Naquele Março de 2009, no apagão, foram eles que arranjaram o primeiro petromax para que o líder pudesse ligar para a mãe a avisar que afinal ia jantar. O seu currículo é uma lista de peregrinações a momentos de culto, e muitos ainda guardam a primeira pastilha elástica que Soares mascou quando Ramalho Eanes lhe renovou democraticamente a goela e a bilis.
Carentes – A necessidade de qualquer tipo de companhia é uma marca d’água das sociedades modernas. Não se trata aqui nem de engate, nem de solidariedade ideológica, é apenas a simples e discreta companhia. Alguém que olhe para nós com um sorriso que não seja piedade cristã, ou simples cortesia, não, é aquela coisa de estar na mesma sala do Jorge Lacão ou do Narciso Miranda, e ninguém nos mandar uma piada por issso, e até nos acenarem com a cabeça em sinal de comunitária satisfação, e inclusivamente um ou outro aperto de mão cúmplice sem cheirar ostensivamente a coiratos.
Puros – O que nem Abraão, nem Malthus, nem Darwin podiam adivinhar é que Adão tinha duas costelas parideiras e que, enquanto era cometido o pecado original, uma outra moça, que estava noutra zona a apanhar ameixas para fazer compota, se manteve fora da grande queda primodial e deu origem a uma genealogia de homens puros e bons, mas que, por força duma gama de espermatozoides mais escrupulosos e cuidadosos, nunca se reproduziram excessivamente. Estes homens e mulheres simples apenas sentem o seu destino de zelar pelo bem comum, e embrenham-se por toda a sociedade, incluindo congressos e feiras de enchidos do pingo doce, como pequenas luzes de esperança e amor, procurando apenas disseminar uma mensagem de confiança em lideres a quem um dia um anjo apareceu num sonho.
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Sublimação & pevides
Tudo já foi escrito sobre o poder. Afrodisíaco, Corruptor, Fascinante, Alienante, Funcionário, Solitário, Carismático, Circunstancial. Todos já o experimentaram e experimentam, seja ele mais explícito, mais exposto, ou mais silencioso ou camuflado; seja ele magnânimo e empolgante ou, pelo contrário, mesmo decadente ou desesperado. Muitos não sabem viver sem ele, e transportam-no como um paramento, outros até se sentem incomodados quando ele se lhes depara, como que vestindo um casaco muito apertado.
Uma coisa é certa: o poder, em variadas circunstâncias, deixa as pessoas a viver em função dele, e retira delas - em simultâneo - o melhor e o pior. Poucas coisas têm essa influência nas pessoas.
Nietzsche, quando nos seus fragmentos dispersos sobre o modelo dionísico do homem completo e superado, escrevia que o «homem não sucumbia sob as contradições» e que, por isso, devia seguir o exemplo ‘grego’ de integração de todos os seus instintos, sentimentos, conhecimentos, mitos, vontades, hábitos, etc (ao invés do modelo asceta cristão que, alegadamente, produziria uma ‘moral de escravos’), olharia para o poder como uma componente directa, quase eremiticamente implícita, da Selbstuberwindung, da auto-superação, da sua construção de suposto homem verdadeiramente livre.
Hoje, verificamos que o exercício do poder é tudo menos essa epopeia romântica de Vergeistigung, Verfeinerung, Vergottlichung & Sublimierung que Nietzsche quase tornou num grande poema lírico.
O homem livre do poder, das suas miudezas e estertores, aparenta nunca poder vir a passar duma utopia antropológica, duma piedosa mitologia, dum sonho de verão.
É por isso que, quando se assiste a manifestações folclóricas, requentadas e postiças de poder, desse poder circunstancial e funcionário, desse poder forjado em massagens linfáticas da banalidade, desse poder que fornece tesão a viúvas, , parece-me muito legítimo pensar que ainda devem faltar muitas Quaresmas até chegar ao juízo final. Até lá, sublimação e pevides.
Uma coisa é certa: o poder, em variadas circunstâncias, deixa as pessoas a viver em função dele, e retira delas - em simultâneo - o melhor e o pior. Poucas coisas têm essa influência nas pessoas.
Nietzsche, quando nos seus fragmentos dispersos sobre o modelo dionísico do homem completo e superado, escrevia que o «homem não sucumbia sob as contradições» e que, por isso, devia seguir o exemplo ‘grego’ de integração de todos os seus instintos, sentimentos, conhecimentos, mitos, vontades, hábitos, etc (ao invés do modelo asceta cristão que, alegadamente, produziria uma ‘moral de escravos’), olharia para o poder como uma componente directa, quase eremiticamente implícita, da Selbstuberwindung, da auto-superação, da sua construção de suposto homem verdadeiramente livre.
Hoje, verificamos que o exercício do poder é tudo menos essa epopeia romântica de Vergeistigung, Verfeinerung, Vergottlichung & Sublimierung que Nietzsche quase tornou num grande poema lírico.
O homem livre do poder, das suas miudezas e estertores, aparenta nunca poder vir a passar duma utopia antropológica, duma piedosa mitologia, dum sonho de verão.
É por isso que, quando se assiste a manifestações folclóricas, requentadas e postiças de poder, desse poder circunstancial e funcionário, desse poder forjado em massagens linfáticas da banalidade, desse poder que fornece tesão a viúvas, , parece-me muito legítimo pensar que ainda devem faltar muitas Quaresmas até chegar ao juízo final. Até lá, sublimação e pevides.
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