‘A vida não é argumento’ [7/9]

Tenho de confessar que o meu maior desafio como falsificador deu-se quando vendi uma obra falsa ao próprio artista falsificado. Tal aconteceu em meados dos anos 90 quando apostei forte na falsificação dum curioso Rauschenberg. Tratou-se duma peça baseada em combinações de caixas de cartão de embalagens de pistachios do Lidl e do Printemps, alegadamente criada pelo artista no princípio dos anos 70, e em que a forma periférica do conjunto fazia lembrar uma mistura entre o altar dos Jerónimos e um guarda fatos do Ikea. Lembro-me que demorei apenas um Sábado de Aleluia a fazê-la, mas ainda tive de pedir à minha vizinha de baixo uma etiqueta de Sonasol para lhe dar alguma corzinha. Saliente-se que ficou um conjunto harmonioso, apesar de ter corrido alguns riscos da minha mulher-a-dias o ter aviado pela conduta abaixo, e até acabou por me dar vazão – numa colagem a imitar pegadas de urso polar- a uns bilhetes de metro de várias cidades europeias que eu coleccionara em miúdo, e dos quais me estava a custar sentimentalmente desfazer. Há sempre uma fase na vida dum falsificador maduro e confiante na qual este tem o impulso de deixar algo de seu, de secretamente pessoal e intimo, nas obras que falsifica.
A forma que encontrei para convencer o próprio Raushenberg de que se tratava duma obra sua, e da qual ele certamente já não se lembrava, foi cuidadosamente elaborada. Encontrámo-nos em Londres, num restaurante de bifes argentinos, e ele, mais o seu agente, estavam fascinados com a minha história: o meu tio-avô era coleccionador de canecas de cerveja alemãs do sec.XVIII e, num leilão nos arredores de Munique, na compra dum lote de 200 canecas em faiança tirolesa, ofereciam aquilo, a que diziam ser: ‘uma obra de fermentação moderna’, precisamente um genuíno Rauschenberg, colado numa base de contraplacado marítimo que tinha servido para tampo de mesa durante a Oktoberfest no histórico ano de 89, e poucos dias depois como andaime na destruição do muro de Berlim. Encantados com a famosa coincidência, e entusiasmados até por poderem reaver um cardboard com tanta história, nem encontravam palavras para me agradecer, e cheguei mesmo a entrever-lhes um ou outro sorrisinho malandro ao contactarem com a minha inocência. Registe-se que o cúmulo de satisfação para um falsificador é quando sente que o seu cliente até está convencido que é ele próprio que se está a aproveitar dum pobre incauto. Foi-me paga uma quantia generosa, no tempo em que o dólar ainda não servia apenas para bailotar, acrescida dum original do próprio Rauschenberg (uma colagem de calendários da nossa senhora de Lurdes com rótulos do Ajax limpa vidros) que acabei por oferecer para o enxoval duma enteada daquela Júlia com quem tinha jantado em Monte Carlo. Como retribuição também lhe dei uma caneca com uma ilustração do Luis da Baviera vestido de Cristóvão Colombo. Um falsificador é sempre um homem que deve reconhecer onde começa a sorte e onde acaba a arte.

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