Almoços Grátis. série 3 [15]

Hoje escolhi uma japonesice que aparecia no menu. Um rolos de salmão a envolver uns pedaços de peixe manteiga misturados com um queijo que, não duvidando que proviesse duma vaca, já não ponho as minhas mãos sobre aquilo que a dita pastaria ou pastará. Não sei onde é que a L. desencantou aquelas ideias, mas revelou-se bastante bom. O restaurante estava à pinha, tive inclusivamente de esperar por uma mesa vaga, o que aconteceu pela primeira vez desde que lá voltei. Numa das mesas estava um antigo amigo da L. e , como seria de esperar, ela ia-se desmanchando em solicitude. De vez em quando fazia-me umas caretas, daquelas que podem dizer tudo mas que na realidade não dizem nada e nos deixam à solta numa equação de biorritmos. Chamei a rapariga dos molhos com o intuito de me meter com ela mas, como seria previsível, sou bastante melhor no improviso e saiu-me uma piada qualquer meio desconchavada que já nem me lembro bem. Certamente por educação riu-se e, hélas, passou-me (tecnicamente pode-se mesmo dizer que pousou) a mão pelo ombro. Um tipo quando se torna uma flor de estufa sentimental, quer por fragilidade quer por mera tática, desenvolve um potencial sensorial digno dum programa da national geographic, aliás um ser enamorado só não caça moscas com a língua porque a preserva para outras coisas. Ainda pensei em flirtar um bocadinho a rapariga só para ver a reacção da L. mas não quis correr o risco de descobrir que lhe era indiferente, ou, até pior, que tinha sido ela a indicar-lhe para se vir meter comigo, como quem pratica um desporto novo. E assim perdi uma hora de almoço com estes pensamentos elevados que só não fazem girar o mundo porque este está perro e totalmente dependente dum monte de gazes que convencionámos chamar sol.

Almoços Grátis. série 3 [14]

O tempo instável pregou-me uma partida e entrei no restaurante meio encharcado. Solícita, uma empregada bonitinha veio emprestar-me um turco para me secar « se desejar». Desejo, claro, eu nunca perco o desejo. No dia do juízo final terei mesmo de o fazer depor para me atenuar o balanço das penas. Fiquei indeciso entre as ovas e uns mexilhões panados que eram uma das novidades que ainda não tinha experimentado. Sentindo se calhar alguma solidariedade escolhi-os. «Boa escolha, estes são de mergulho» disse a rapariga dos molhos que por estes dias já não é capaz de passar sem largar uma da sua graça. A L. estava encostada ao balcão e quando me viu teve a tentação de se aproximar, mas rapidamente a reprimiu como que uma voz interior lhe tivesse soprado uma buzinadela. Não há pior desprezo do que aquele que resulta de um desejo reprimido, gostaria de lhe ter dito. Óptimos mexilhões. Também seria receita do cabrão do óscar? Movido por um impulso, daqueles ainda não explorados pela ciência nem pela indústria dos desodorizantes, acenei para a L. Ela, movida por um impulso certamente ainda menos estudado, veio ter comigo. Em vez do seu irritante clássico marcador de perímetros de segurança ‘Diga por favor’, sentou-se logo e esboçou-me um sorriso que me pareceu sincero. Já me mentiu várias vezes mas ainda gosto de pensar nela como uma pessoa sincera comigo. Eu, estupidamente, nunca lhe menti. Pergunto-lhe se quer comer um tiramisu a meias. Antes comíamos muitas coisas a meias. Ela acede e manda trazer um prato com dois garfos. Chega um garfo, digo eu, e acrescento com uma certa solenidade romântica: se não te posso beijar então deixa-me pelo menos tocar nos vestígios dos teus lábios. «Continuas parvo, isso é a teu favor». Rimo-nos os dois. Há quanto tempo não ríamos juntos? Se pudesse escolher uma tumba escolheria os lábios dela e neles a minha carne repousaria em descanso. Requiescant in labrorum. Não soa muito bíblico mas nem tudo o que os discípulos fizeram vem descrito nos Actos dos Apóstolos.

Almoços Grátis. série 3 [13]

Hoje escolhi franguinho da guia. É uma receita que a L. já costumava fazer antes e que eu apreciava especialmente. Não tem nada de original, mas é muito saboroso e eu hoje não queria correr riscos. Sentei-me numa das mesas mais próximas da entrada da cozinha e apelei a todas as minhas reservas de curiosidade para tentar perceber o que se passava do lado de lá. Reparei que havia uma televisão nova na parte de dentro do balcão, talvez a L. quisesse acompanhar mais de perto as notícias nestes tempos de tsunicómio e austeridadismo utópico, ou então estava mesmo apaixonada por algum enterteiner…Bocejei uma ou duas vezes e a rapariga-dos-molhos não perdeu tempo a perguntar se me tinha deitado tarde. Respondi-lhe que ter um harém às vezes rebenta-nos com o sono. Foi aos risinhos para a cozinha e depois trouxe-me o franguinho com um recado inesperado: «sabe que a dona L. agora vai todos os dias ao cabeleireiro?». Com a primeira asa trinquei a língua, com a segunda rasguei o esófago. Este esquema dos recadinhos a entremear conversas sem eira nem beira parecia estar a tornar-se a fruta da estação. Comecei a pensar naqueles dias em que lhe agarrava o cabelo numa mecha de oiro velho, a beijava como quem beija uma bola de cristal e ela me focava ternamente com olhos-de-quem-gosta. Ter-me-á mesmo trocado por um óscar qualquer e agora vai fazer gato sapato da minha dúvida, alimentando-se dela como um tempero para o seu novo devaneio romântico? Deixei a salada de tomate para o fim e comi-a como se fosse uma penitência. Pedi um café e deixei-o esfriar. Pedi outro e deixei-o esfriar também. Pedi um terceiro e trouxeram-me um limoncello com um recado escrito nas costas dum talão da conta de manicure: ‘se gosta frio é melhor que seja isto’.

Almoços Grátis. série 3 [12]

Hoje passei por uma livraria antes de ir para o restaurante. Levava comigo uma novidade absoluta por debaixo do braço e iria desfolhá-la entre pratos. Peguei de forma compenetrada no menu e pedi algo que já andava há dias para experimentar: ‘Delícias de bacalhau’ , e sobre a qual já assistira noutros dias a imensa animação pelas mesas. A rapariga dos molhos quando recolheu o pedido não resistiu a lançar-me um «estava a ver que não pedia este». A L. estava deslumbrante. Não desfazendo nos outros dias, hoje havia qualquer coisa de valha-me deus naquela mulher: um vestido cor de caramelo muito justo e um novo corte de cabelo que me parecia estar mais alourado. Penso que fariam doses familiares de baba de camelo só com a minha cara a olhar para ela. Numa das suas passagens pela sala (hoje estava muito solícita para uma mesa onde estava um jornalista da televisão – as mulheres derretem-se com um certo tipo de homens que, bem, que se lixe) olhou para mim com ar de que me queria dizer alguma coisa, ou pelo menos passar uma mensagem. Mas como ela sabe que eu sou básico como receptador de enigmas cedo percebeu que tinha de se explicar melhor. O prato era de facto bastante bom, algo da família da meia desfeita de bacalhau e com um grão-de-bico ao qual também se poderia dizer que estava al dente, como as massas. Julgo que ela ficou intrigada com o livro que eu de vez e quando abria, já com alguma pitada de provocação, tenho de reconhecer, de tal forma que ela a certa altura fez uma franzidela de face (daquelas gerais do queixo à testa) como que a dizer-me: não sejas parvo mostra-me lá o que estás a ler. Respondi com uma coçadela de polegar na base do lábio inferior que queria dizer: ‘se quiseres saber vem cá’ à qual juntei um ligeiro movimento nervoso com o indicador no queixo que significava ‘ai se te ponho as mãos em cima’. Bem, pedi um cheesecake para acalmar. Passei por uma ou outra página tentando não ser atraiçoado por algum movimento estúpido de pestanas ou sobrolho e aguardei. Sentou-se trazendo consigo uma fatia de bolo de chocolate para ela. Infelizmente não me saiu logo nenhuma piada rápida que não fosse totalmente ordinária e tive de lhe dar a dianteira dialéctica: «Humm…o livro do Herberto Helder que saiu hoje, sim senhor, muito em cima do acontecimento», « Ah, foi coincidência, como sabes também ocorrem» - foi a resposta que também me ocorreu. «Senti muito a tua falta, sabias?» - avançou ela entre fatias - «…gostaste da meia desfeita?» Duas perguntas nos antípodas da sensibilidade masculina tornam-me irritadiço e respondi «estás pendular…isso também é efeito dalguma receita do óscar?» Riu-se, sem levar muito a cabeça para trás…e disse: «tu às vezes transformas o nosso amor numa antecâmara do inferno, sabias?» Já era o segundo ‘sabias’ em menos de um minuto e não resisti em responder como vem na página 99: «meu amor, o inferno é o teu corpo foda a foda alcançado». Saí logo e esqueci-me lá do livro.

Almoços Grátis. série 3 [11]

Pelos vistos estamos na semana dedicada aos doces. Sentia-se até um certo cheirinho pela sala, e, talvez, um ou outro sorriso mais aberto. Os doces são, de longe, onde a L. mais se realiza e onde consegue dar mais enfase ao seu cunho pessoal. Se a expusessem ao discurso psicanalítico julgo que os mecanismos perversos da livre associação a levariam rapidamente a chamar-me de ‘melgaço’, uma mistura de melga com melaço, que será como o seu inconsciente me trata em momentos de exasperação. Apesar do episódio do último dia hoje eu também estava bem disposto e até receptivo a alguma ironia, inclusive daquelas que só se distinguem do escárnio porque são ditas em ritmo de murmuração, o que lhes dá um poder encantatório a que nenhum homem resiste. Confesso, até podem sussurrar ao ouvido de um homem que ele é a maior merda desinteressante do universo que ele entenderá isso sempre como um convite pre-coital.
Pedi lulas recheadas. Ó séculos que eu não comia umas lulas recheadas. Recheadas com quê? Não percebi. Tentei sacar uma explicação a um dos empregados mas ele apenas me disse ‘óscar secret’. Já percebi que vou ter de lidar com o fantasma desse óscar e decidi não dar parte de fraco. Pedi um gelado de baunilha com um café entornado por cima e ainda fiquei uns minutos a observar o movimento da sala. Gente mais nova que o normal, grupos de miúdos de consultoras a esturrarem os primeiros ordenados, ainda todos com o viço da ingenuidade bem misturado com uma competência ainda por comprovar. Tristes dos que já não têm nada para provar. A L. ainda veio a tempo de me acenar do balcão. Poderia ter vindo à mesa, ter-me dado um beijo, uma festa, um sussurro, posto a mão na perna, recitado um soneto do camões, comido um pudim flan a meias, qualquer coisa. Estou na fase qualquer coisa. Não é que eu me contente com qualquer coisa, mas. Qualquer coisinha, porra.

Almoços Grátis. série 3 [10]

Não se pode dizer que hoje me tenha sido fácil ir lá almoçar. Devo ter entrado de cara carregada pois duas ou três pessoas fixaram-me o olhar e também não posso ser assim tão feio. Lembro-me que ia a pensar que aquele restaurante tinha respondido bem aos dias difíceis da austeridade. Não sei se era engenho ou arte mas havia até uma sensação de prosperidade crescente a impregnar muitos detalhes que definem uma casa daquelas. A L. tinha vestida uma saia burberry ligeiramente travada, uma blusa de seda creme bem cintada e via-se que tinha acabado de chegar de algum local que a tinha feito feliz. Se é de senso adquirido que se correm riscos desnecessários ao regressar a um local onde já fomos felizes, por outro lado devia ser aconselhável voltar a um sítio onde já fomos infelizes e que nos traga memórias desagradáveis, para fazer uma certa purga de maus passados, por assim dizer. Não sei se terei coragem de abordar a L. com um pretexto destes, assim tão vago e quase literário, ainda estou, digamos, com pouca confiança. Com quem é que ela teria estado. A escolher legumes é que não tinha sido de certeza. Pedi um folhado de marisco, algo também novo nesta ementa, se bem que já o tivesse provado em tempos distantes. Hoje a minha réstia de intuição dizia-me que ela se aproximaria de mim, se calhar até foi por isso que inconscientemente escolhi aquele prato, tentando demonstrar apreço pelas suas mudanças de menu. Não há inconsciente mais bem treinado que o meu, é tão tão treinado que às vezes até parece consciente. Como é que se cativa uma mulher? Como? Quando ela passou perto da mesa saiu-me isto: «Olha que este prato está óptimo mesmo». Respondeu na ponta da língua: «Ah, foi ideia do Óscar!». ‘Óscar’, foda-se! Que raio de nome é este? Quem é este gajo? O Otelo é que tinha um nome de código ‘óscar’ durante a operação do 25 de abril! Será que ouve aqui alguma revolução e eu estou a fazer de marcelo caetano? Entornei o café em cima da camisa, deixei cair a cadeira ao levantar-me, bati com a cabeça na porta de vidro da saída que estava fechada, e obviamente tropecei no passeio. A rapariga dos molhos estava cá fora a fumar e ainda a ouvi dizer-me: Para a próxima não seja tão possessivo e descolonize a tempo.

Almoços Grátis. série 3 [9]

Hoje o restaurante inaugurava uma nova ementa. Pelos vistos ninguém estava à espera, fora um segredo bem guardado. A L. gosta de transmitir esse aureolado enigmático, mas também já deve saber que é um risco que corre, nem todos os estômagos estão preparados para absorver surpresas ao ritmo da sua imaginação (capricho - a imaginação feminina chama-se capricho). O novo folheto-menu tinha sido desenhado por uma amiga ( a L. gosta de mostrar que tem amigas – e amigos - para todas as ocasiões) e parecia saído dum conto de fadas tal a fantasia colocada no nome dos pratos. Reduziam-se as opções em carnes puras, aumentava a aposta em souflés, empadas, folhados e papas afins e o peixe voltava a ser o rei da festa. Mas o bombo da dita continuaria a ser eu. Pedi ovas de pescada grelhadas, uma novidade. Nada como atacar pelo lado da entranha feminina e esperar pela pancada. A L. rodava de mesa em mesa a auscultar as reacções, recebia elogios como uma estrela de cinema, puxando bem a cabeça para trás naqueles sorrisos abertos que procuram receber as energias todas que os céus tenham disponíveis. A rapariga-dos-molhos torneou a minha mesa, fez uma pausa de libelinha e deu uma revirada de olhos a indicar que ‘esteja descansado que ela ainda vem cá picar o ponto’. E veio. Sentou-se, depois de um trejeito qualquer de formalismo que já lhe é tão natural como esquecer-me, e aviou-me uma directa: «então, por cá outra vez!? Tiveste saudades ou apenas te deixaste corromper pela curiosidade?». Sem me deixar responder (um clássico), distribui: «se vamos entrar pelo capítulo das recriminações vou-me já embora!». Olhei para as ovas (era o que tinha mais à mão para repousar o espírito) e ainda tentava esboçar uma resposta meramente tática para ganhar tempo quando ela alça da terceira farpa curta: «podias ter escolhido a cataplana! É bem melhor que a paella que noutro dia ofereceste à tua amiga vistosa; já volto». Novamente só, com as minhas ovas, ainda deu para apanhar um piscar d’olhos furtivo de descodificação impossível, e saí, sem acabar as ovas, sem tomar sobremesa, nem café, nem nada, possuído pela angústia do homem gozado, a humilhação dos pobres de espírito que nem conseguem sequer ser rejeitados em público e transportam a sensação de que apenas servem de betume para tapar falhas. São os betumen.

Almoços Grátis. série 3 [8]

Quando entrei hoje no restaurante levava comigo uma estranhamente-estranha-estranheza espalhada por todo o corpo. Tentei sacudi-la com duas ou três parvoíces mentais da família das boas recordações mas essa estranhamente-estranha-estranheza esbarrava sempre com os poros da pele fechados não a deixando sair.
Sentei-me numa das poucas mesas livres, a casa estava bem compostinha como nos velhos tempos dos deficits glamorosos, e anda nem tinha coçado convenientemente a testa já a rapariga-dos-molhos me vinha provocar com um previsível (encomendado?) «então hoje não trouxe nenhuma das suas amiguinhas?». Como andei a treinar olhares corri-a com um do género dos fulminantes que a fará desaparecer para a freguesia dos couverts durante uma semana.
Foi substituída por um rapaz de toque apaneleirado, qualquer restaurante que se preze tem de possuir um exemplar desses, e a L. quando toca a escolher paneleiros esmera-se. Ainda pensei que me fosse sugerir salsicha em couve lombarda, mas não, ficou-se por uns lombinhos de porco preto que eu, só para o contrariar, troquei por picanha.
Diz a vida, enquanto a mãe de todos os ensinamentos, que elas acontecem quando menos se espera, e foi precisamente enquanto eu pensava em rigorosamente nada de interesse, algo que faço com particular esmero e intensidade, que a L. se chega à mesa e pergunta se se pode sentar, usando aquele seu ar formal que me irrita mais que picante em colon inflamado. «Não gostaste do meu empregado novo?». Como aproximação pareceu-me interessante, bem melhor que perguntar-me o que teria acontecido a uma fatia importante do meu cabelo desde a última vez que nos víramos. Ri-me para ela, talvez por instinto, pois devo julgar que ela gosta de me ver sorrir e que isso a desarma um pouco. Está explicada a estranhamente-estranha-estranheza, pensei, e ainda fui a tempo de ouvir «ficaste mudo, ou quê?». Estava a pensar o que te faz prender agora tanto tempo na cozinha – respondi, ainda com o sabor da manteiga de alho a betumar-me o céu-da-boca. Tenho andado apenas a ganhar tempo junto ao quentinho do forno – disse L. com uma rapidez de resposta que me deixou intranquilo. Depois, tocou-me na mão, como já fizera milhares de vezes, levantou-se e desapareceu no horizonte. Mas, para mim, naquele momento, 20 centímetros à minha frente já era horizonte. Inda agora não sei como acabou aquele almoço, devem-me ter posto numa ambulância e descarregado no escritório com uma tabuleta ao pescoço dizendo: canja durante dois dias e deixá-lo ressuscitar ao terceiro sem fazer muitas perguntas.

Almoços Grátis. série 3 [7]

Hoje levei comigo a S. a almoçar. É uma mulher que se enquadra na tipologia clássica de ‘parar o trânsito’. É minha cliente, tem um negócio em fase de stress, já a salvei de muitos apuros, mas hoje leva uma vida semi-regalada. É casada com um tipo porreiro, pachola e bom rapaz, um pouco estúpido até. Não quis vir. Certamente acha, e bem, que eu não lhe desencaminharei a mulher, ou melhor, que a mulher não se perderá por minha causa. Não abona muito nas minhas capacidades, mas também ninguém sabe. Dois segundos depois de termos entrado a L. já tinha toda a fotografia da situação fornecida pelos espiões de sala, cada um atento e especializado ao seu detalhe, aliás o que tinha o pelouro de medir a altura das mini-saias não disfarçou muito. A S. tem umas pernas de capa de revista (para além de um rabo de vitrine, um busto de republicana, uma cintura de sereia e uma carinha de anjo em fase de magnificat). Pedimos ambos uma paella, fica sempre bonito comer a meias com uma mulher daquelas. Falou-se de negócios e a rapariga-dos-molhos fazia a sua inspeção técnica em cada 5 minutos, de tal forma se focava nas nossas caras que devia ser a responsável pelo departamento das covinhas na bochecha. L. apareceu duas vezes na sala. Na primeira passou juntinho à nossa mesa, fez um sorriso à S. a que esta retribuiu, e que a predispôs a perguntar-me se eu costumava lá ir muitas vezes. ‘De vez em quando’, se bem que daria mais efeito ter dito ‘de quando em vez’. O almoço foi inesperadamente decorrendo sem incidentes de maior. Ou o ciúme já não é o que era, ou fui mesmo colocado entre o açucareiro e a vinagreira. O que é um facto sem interferência de especulação é que saí de lá de barriga cheia mas de mãos a abanar.

Almoços Grátis. série 3 [6]

Hoje o restaurante transmitia uma boa disposição para a qual eu não conseguia encontrar explicação, nem sequer impressão, nem sequer aquele instrumento híbrido da mente (eventualmente fusão dos dois anteriores) que é a célebre intuição. Não percebo mesmo como nunca apareceu nenhuma corrente filosófico-artistica chamada intuicionismo (tipo gnosticismo laico) que aqui me daria certamente elementos para caracterizar o ambiente de frescura e alegria que se vivia naquele restaurante. A L. apresentava uma espécie de melancolia da família do desgosto leve, mas bem disfarçada por uma pose absorta, como que indicando que as mamas estavam na sala mas a alma ficara a marinar junto à batedeira numa tigela com piranhas em vinagrete. De todo o modo, hoje foi o primeiro dia, desde que tinha voltado ao restaurante, em que pude observar bem o corpo dela. Não sei se foi de propósito mas o que é um facto é que ela várias vezes se encostou ao balcão com aquele ar de diva em pleno exercício do seu múnus gastronómico, parecendo querer ilustrar o momento do Génesis em que Deus Todo Poderoso, depois de hesitar, decidiu arredondar mais o corpo da mulher qual ampulheta a mostrar ao homem que por vezes têm areia a mais para a sua (deles) camioneta. Pataniscas e arroz de tomate, nada mais adequado para um dia com tais enquadramentos, e ainda uma passagem da rapariga-dos-molhos pela minha mesa, com um ar de vampira a servir raminhos de salsa, largando a enigmática deixa: « ‘Ela’ manda dizer que ao senhor também lhe caia bem uma dietazinha». Touché. Será que se avizinha uma concordata pelo lado do cardio-fitness? A carne tem razões que o molho desconhece. Saí intrigado mas animado. O homem encontra esperança onde um qualquer outro animal apenas descobriria um sítio para mijar à vontade.

Almoços Grátis. série 3 [5]

Ontem era, e foi, dia da espiga. Entrei no restaurante com um estado de espírito animado, levando o bilhete no bolso de fora do casaco, ali à mão de semear mas de forma a poder fazer aquela encenação do que ‘não sei bem se o trouxe ou onde o pus’ se tal viesse a ser necessário. Todas as mesas tinham um toque decorativo alusivo ao dia (tentará a L. exigir da decoração aquilo que o coração não lhe dá?), ora uma espiga, ora um malmequer, ora uma margarida e preparava já para me sentar numa qualquer quando a rapariga-dos-molhos me dirige, sem possibilidade de apelo, para uma mesa que se destacava com uma certa imponência por ter um ramo completo e rico a servir de astro rei no centro. Uma mesa com dois pratos postos: «Hoje vou-lhe trazer um rolinho de carne especial». Fiquei semi anestesiado, com a imaginação a dar mais voltas do que um encefalograma conseguiria apanhar, e procurando pela sala todos os sinais que me pudessem indicar se iria acontecer alguma coisa que alterasse o meu futuro, ou até o passado, quem sabe. Veio o dito rolo de carne, com o previsível molho de orégãos, e eu fui saboreando-o qual palatofílico compulsivo à procura de algo que me dissesse que a L. o tinha preparado para mim (para nós ?). Entretanto o outro talher da mesa foi-se mantendo sem comensal, e o prato vazio ia-se rindo para mim dizendo: ‘lembras-te daquele outro dia da espiga, há uns anos atrás, em que ficaste à minha espera e eu não apareci?! Devias ter percebido que era uma premonição, e que eu algum dia te deixaria apeado. Talvez hoje percebas’. Entretanto a L. apareceu, vinha servir a uma das mesas uma garrafa de tinto da casta Nero d’Avola, um vinho brilhante, da Sicília, que eu adoro, mas ela nem sabe. Também não pode saber tudo. Passou os olhos por mim como se eu fosse uma sombra de crepúsculo, franziu o nariz e voltou para a caverna onde certamente estará algum cabrão dum Platão. Quando saí do restaurante estava convencido que isto já só lá vai com a suprema prova de todos os amores: o ciúme. A universal, exclusiva e infalível forma de saber se alguém gosta de nós. Foda-se, é que por mais voltas que se dê, apenas na bancada do ciúme se pode comprovar a experiência do amor. Até o microscópio dá saltos.

Almoços Grátis. série 3 [4]

Lombo. Hoje apeteceu-me mesmo um daqueles bifes de lombo. Redondo, cheio duma carne sem sombra de nervos, liso, quase artificial, mesmo produzido à base de um bocadinho de photoshop culinário. Comer como quem guia numa autoestrada vazia, sem ter de saborear, sabendo de antemão que o corpo vai receber aquilo com a mesma naturalidade de quando boceja ou tosse. Era o dia do aniversário do restaurante, havia um tiramisu especial, e a L. andava de mesa em mesa, numa roda-viva, entregando-se a todos com o mesmo esmero com que se dedicava a nem sequer dar nota da minha presença. A diferença entre presença e existência é que se a esta última chegamos a ela pela puta da filosofia, à presença só lhe tocamos mesmo quando sentimos que alguém gosta de nós. A L. já tinha gostado de mim, claro, há dois anos até me escreveu que o único sal que conhecia era o meu. Se calhar estava a mentir, um anjo pôs-lhe pimenta na língua para sempre e agora culpa-me por isso. Deixei metade do bife no prato, podia ser que ela o guardasse como relíquia, picasse, fizesse um rolo de carne e dormisse com ele embrulhado em papel de alumínio pulverizado com perfume de orégãos. Já ia a meio do tiramisu (ainda estive para o não comer por birra, não é bem birra, um homem adulto (mas não adulterado) não faz birras, é despeito, ressentimento, que se diz) quando ela passou ao lado da mesa. Inesperadamente deixa lá um bilhete dobrado e afasta-se num passo hesitante. Helás: toda a conquista (reconquista?) passa por uma hesitação. O papel fixou-se ali em cima da mesa e nem se mexeu, podia ser um daqueles papéis com asas mas não era. Eu iria ter de o abrir, mas tinha de fazer um movimento com alguma pose, não é Charlemagne quem quer, porra. «Por muito tempo». Só lá estava escrito «por muito tempo». Mas o que é esta merda!? Já nem um ‘até que a morte nos separe’ soube escrever. Ou será que eu já morri e nem dei por isso? Pedi à rapariga dos molhos para me beliscar e ela fugiu: meio assustada, meio sem saber se havia de contar à patroa, meio corada. Parecia inchada, daí os três meios.

Almoços Grátis. série 3 [3]

Sexta-feira e sala cheia. A proximidade do fim-de-semana descontrai-nos e põe os sentidos mais disponíveis para o lado deseconómico da existência: comer mais do que precisamos, correr mais do que precisamos, descansar mais do que precisamos, pensar mais do que necessitamos, conviver mais do que necessitamos, beber mais do que necessário e etecetera e tal mais do que necessitamos. Como que a compor o ramalhete L. trazia vestido uma saia também um pouco mais curta do que aquilo que seria necessário para ela, mas um pouco mais comprida do que seria necessário (e proveitoso) para mim. Ainda me lembro da primeira vez que lhe vi as pernas (um bom bocado delas, para ser mais rigoroso) despidas pela primeira vez ali junto ao rio. Já levava a memória um pouco acima do joelho dela quando fui impelido a escolher o menu pela empregada-dos-molhos. Reparo de caminho que ela também é benfeitinha, benza-a deus , e escolho bacalhau à Brás sem perder muito tempo a exercitar o pouco livre arbítrio que ainda me resta. Já vou no terceiro dia que retomei as minhas idas ao restaurante e a L. ainda não me dirigiu palavra nem sequer se aproximou a menos de 15 metros. Haverá criminosos com medidas de restrição menos exigentes. Via-a a sair da cozinha a rir-se, seria certamente uma piada boa porque se manteve num estado quase efusivo durante mais de 10 segundos. A última vez que eu a tinha feito rir assim já fora à custa de muito esforço. Acho que agora terá a minha imagem fixada mais como um filho da puta do que propriamente como um gajo engraçado, mas nem sequer um grande filho da puta, apenas aquele tipo de filho da puta que ainda recentemente foi desmamado de tipo-sem-interesse. Chegou a sentar-se junto dos clientes que estavam na mesa mais próxima do balcão, notava-se que eram clientes que se tinham tornado mais regulares recentemente, e ainda alimentou alguma galhofa técnica, o suficiente para fixar o charme necessário para um negócio em fase de ivas majorados. E foi assim, entre necessários, suficientes e insuficientes que acabei por tomar um café já frio; bem a condizer. Estupidamente fui até ao balcão sob o pretexto de pagar a conta mais rapidamente e ainda tive tempo de ouvir do lado de lá da cortina de ferro: ele sabe que aqui nunca pagará nada. Saí como se fosse um Barrabás em corpo de Lázaro.

Almoços Grátis. série 3 [2]

L. estava cá fora a fumar. Via-a ainda ao longe e obviamente hesitei. Ela deu conta da minha mal trabalhada hesitação, deitou fora a metade do cigarro ainda não fumado e sem esboçar qualquer sinal relevante entrou para dentro do restaurante. Minto, mostrou um certa indiferença daquelas arraçadas de comiseração. Mas por que caralho é que ela agora teria pena de mim? Será que já tinha coitadinho pintado na testa e até se via a mais de 100 metros? Quando entrei ela já não estava à vista. Contaram-me que agora passa mais tempo na cozinha e menos na sala. O meu hemisfério esquerdo diz-me que isso é porque tem um novo amante de imponente barrete branco mas o meu hemisfério direito diz-me que é porque não suporta ver casalinhos felizes a comer no seu restaurante (por óbvias saudades minhas). É a saltar de hemisfério em hemisfério que escolho um risoto à bulhão pato, novidade absoluta do menu, e para quem começou tardiamente na vida a gostar de comer pareceu-me uma boa opção, sempre podia imaginar que teria sido ela a abrir as ameijoas - uma a uma para mim. Estava bom o cabrão do risoto. Uma empregada nova veio-me perguntar se queria algum dos molhos da casa para temperar melhor. Acho que nem lhe respondi, para já, o que quer que seja que me perguntem soa-me a metade provocação metade ‘põe-te ao fresco’. É tão agradável sentirmo-nos mal vindos. Já estava na sobremesa quando a L. apareceu na sala. Queque de abóbora com gelado de canela. Olhou para mim e escreveu no ar com os olhos: amar-te-ei até que o tempo acabe. Trinquei a língua e pedi o livro de reclamações. Ficou lá plasmado para o delegado de saúde poder comprovar: neste estabelecimento as abóboras são bêbedas. Saí de nariz encarnado e feliz como só um parvo encartado consegue. 

Almoços Grátis. série 3 [1]

Passaram outra vez dois anos até lá voltar. Parecia ter tudo mudado estando tudo na mesma. Toalhas de pano com uma tonalidade rosácea, guardanapos cor de sangue, pratos verde pálido, copos roxos como que a querer disfarçar venenos novos. Uma paleta anunciando um arco-irís de sentimentos contraditórios. O faqueiro também era diferente, o garfo apresentava um inequívoco formato de forquilha, facas sem bico tentando simular suavidade e o contorno das colheres a esboçar a translação do astro que nos calhou na rifa. Nenhum músculo externo de L. deu sinal de vida quando me olhou pela primeira vez. Dos músculos internos não sei o que dizer. Comi costeletinhas de borrego, sem molhos, sem saladas, sem acompanhamentos, sem merdas que pudessem disfarçar qualquer porra que lá tivessem metido e que me pudesse dar cabo das glândulas. Quando pedi a conta, veio um empregado novo, bem parecido, a brilhar como que saído dum masterchef, trazendo-me um bilhetinho decorado com papoilas: «para ti é sempre à borla». Procurei o olhar dela à saída mas o que encontrei foi apenas uma silhueta encostada ao balcão. Vou pensar que me está a evitar. Evitar é sempre melhor que desprezar. Se não podemos ter esperança resta-nos a ignorância.