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Acreditares imaginados em roda livre (V)

Um dia sugeriram-lhe que para rejuvenescer a sua fé teria de passar de vez em quando uma temporada sem Deus. Para lhe vir a sentir a falta, supunha-se, testando assim na fé as técnicas mais básicas do amor humano, para conferir se a falsa leveza afinal poderia pesar como chumbo. Mas quais seriam as condições para aceitar aquela prova, sabendo ele que nem todas as excursões fornecem percursos de regresso. Uma coisa era certa, a fé em Deus prega mais partidas do que a indiferença, é muito mais exigente do que qualquer moral ou ética pública ou privada, e pede mais freios e contrapesos à alma e ao corpo do que um liberal encartado a um governo de iluminados.

Quando numa primeira fase clássica de aproximação táctica se decidiu a pôr Deus no scrabble, entregando-o ao destino traçado por vogais e consoantes tiradas do saco, viu que o seu Deus se safava bem no desafio dos jogos de paleio e, ao cardápio das omniências, ainda teve de acrescentar a prerrogativa de Deus aguentar bem todos os significados, desde os mais abstractos aos mais comezinhos, pois tanto era verdade e amor, alfa e omega, acto, energia e alegoria, como era o gajo barbudo que lhe piscava o olho ao seu fraquinho por filmes de diabos à solta ou de mulheres perdidas nos pecados da carne.

Mas haveria que fazer o teste derradeiro, o teste da perda de todas as referências, o fazer de curva ora da procura ora da oferta sem eixos doirados onde se agarrar. Com pais e filhos apenas presos ao ADN e ao NIB, sem amores nem causas, tudo seria um preço. E Deus rapidamente assumiria em pleno a sua insólita característica de ser desnecessário por natureza.

A selva apareceu-lhe assim sem a mínima indicação de zona de presa ou zona de predador; bom selvagem ou lobo faminto, teria agora o prazer de descobrir por sua conta. De lei natural, nem preâmbulo; de Deus, nem bafo.

Voltou. Voltou velho. A ausência de Deus tinha-lhe afinado o calculismo, exigira-lhe uma maior percentagem de oxigénio na mistura respiratória, desgastara-se a pensar onde teria bastado um instinto medianamente polido, e tinha-se lançado de cabeça onde caberia algum esclarecido livre arbítrio.

Olhou então Deus de frente, tipo cara a cara mas sem cara. Se Deus tivesse ombros naquele momento tê-los-ia encolhido.

Se Deus tivesse um fetiche seriam os filhos pródigos.
Acreditares em roda livre (IV)

Ela tinha grande relutância em acreditar num Deus de cartilha. Seria talvez medo de perder graus de liberdade, seria medo de ter de conviver com coisas que não percebia, seria apenas falta de pachorra. Enfim, ia-se sublimando em virtudes humanas, em éticas de atestado, num suspiro de racionalismo filigranado com técnicas de sobrevivência desenvolvidas para savanas áridas e desertas. É de facto preciso ter alguma paciência para se ser crente e é preciso ter uma alma com aptidão para se aparvalhar e ao mesmo tempo para se concentrar nem que seja em serviços mínimos. Num belo dia de crepuscular encomendado numa casa de postais ilustrados, a brisa do rio poderia ter-lhe dado inspiração para raciocinar assim: ora se para levarmos uma vida cosmologicamente sadia nos basta pensar que provavelmente aquela merda da lei da gravidade e da atracção dos corpos está certa e a porra da lua não nos vai cair em cima dos cornos um dia destes, então porque é que não poderia ser suficiente pensar que provavelmente existe um Deus misericordioso e omnipotente que nos acompanha duma forma íntima ainda que dissimulada para se ir estabelecendo um princípio de conversa para uma vida religiosamente também sadia. Todos temos uma vida religiosa – o ateísmo só existe conceptualmente, é mais ou menos como a electricidade, é algo que não existe e que apenas se convencionou chamar àquela trampa que faz andar os carrinhos de choque – todos temos uma ligação por mais ténue que seja com algo que nos transcende ontologicamente, e ninguém com as micoses controladas acredita naquela porra do ciclo da mãe natureza, género sermos o cruzamento genético dum aterro sanitário com uma estação de tratamento de águas, em co-incineração apocalíptico-escatológica ao som dos Verve e aliviados com a aromoterapia do ‘deixa andar’. Eu sei que não fica assim muito jeitoso dizer-se mas Deus parece-me em primeiro lugar, mesmo, um ser bem plausível.
Comecei com ela mas fui-me desviando - A fé também alimenta tiques ensimesmantes. Ela não era pessoa de se manter sempre no mesmo patamar, exigia que a acompanhassem aos saltos, punha-nos à prova, não abusando dos historicismos nem dos canonicismos, honra seja feita, mas tratando dos nossos pensamentos como uma gourmet exigente e experimentada; só que os mecanismos da fé assemelham-se mais a uns revueltos extremeños do que a pratos de nouvelle cuisine, e um Deus que nos exigisse sem dar muitas justificações e que depois nos justificasse sem exigir nada, continuava a ser um balanço racional demasiado rústico para ela. Gostava de coisas simples mas tinham de ser duras, densas, cortantes. Uma religião que se tivesse de preceituar para se degustar e consumir não lhe agradava, mas acabava por ir gerindo eficazmente as regras duma sociedade aparentemente contraditória e desapiedada. Assim, parecia que um Deus que se baseasse essencialmente no amor às criaturas ainda era pouco para ela dar a volta, pois até já Darwin demonstrara que um mero universo servira para criar e sustentar animais e seres humanos saudáveis, e, já agora, que estes seres humanos nem precisavam de tanta ordem assim para sobreviverem. Mas ele, agora apareceu ele, finalmente, olhava sempre para ela com um carinho genuíno. Sabia de fonte segura que Deus ainda brincaria de Darwin-man no coraçãozinho dela, tratando-a como uma tartaruguinha nuns Galápagos banhados pelo sol.
Acreditares imaginados em roda livre (III)

Alimentava a fé de bons sentimentos. Era um risco, já lhe tinham avisado, mas a fé dele tinha-lhe aparecido no calor dum berço e não a concebia fora do alcance dessas brasas que são uma consciência tranquila e um coração apegado a valores seguros, mesmo não se entendendo a esmiuçar demasiado quem os segurava. A mística profunda perturbava-o, os Doutores da Igreja pareciam-lhe de quando em vez ora distantes ora envoltos em demasiada apologética, e ele sentia que não precisava de fortalecer a sua convicção com tácticas intelectualmente desesperadas, antes considerava essencial ter capacidade de aceitar zelosamente, de perdoar e de se esquecer o mais possível de si próprio: tinha aprendido que nos podemos perder no reino do nosso eu subjectivo; não o percebia por completo, mas convivia serenamente com essa lacuna metafísica. Só que era um risco, já lho tinham avisado, ter uma fé de suaves assimilações, sem desequilíbrios, só que ele dava-se bem assim, considerava-se tão mais livre quanto mais simples e embalado. Só despreza um encarrilamento quem nunca levou com uma locomotiva nas trombas. Chegou a ter dúvidas, sim, mas esqueceu-as, não lhe estavam a aquecer o coração. A Fé conserva-se no calor, tinha ele aprendido, só o frio enganaria. Vieram-lhe com imagens de aquecimentos em excesso a provocar degelos inoportunos e descontrolados, mas ele pura e simplesmente sabia de fonte segura que Deus também toma conta da sua camada de ozono. Ainda lhe falaram de raspão do efeito anestesiante duma fé assim. Riu-se. Como os bebés depois de lhes passar a primeira cólica, seguros dum colo para toda a eternidade.
Acreditares imaginários (II) com sequelas em roda livre

Tinha ouvido dizer ao Ortega que «os homens podem dividir-se em três classes: os que se crêem Don Juan, os que acreditam tê-lo sido e os que acreditam que o poderiam ter sido, mas não quiseram» e então, no intervalo entre dois pecados veniais e uma Ave-maria rezada às arrecuas, decidiu-se por deixar Deus fazer o servicinho à maneira d’Ele. Começou num estilo calvinista, metade cantado metade dançado, compatível com paleio de entardecer, e definiu para si dois ou três complexos do foro intimo para o acompanharem e que lhe garantissem pelo menos um aspecto intelectualmente interessante mas piedosamente aconchegavel. Foi acometido do dom apostólico da versatilidade e tanto reconfortava viúvas que extravasavam indulgências como concubinas que deficitavam carências. Na afectividade fácil e no verbo afoito encontrava o adubo que lhe faltava na doutrina débil, e nos dias de soberba mais acicatada achava-se um S. Francisco de bordel, um missionário nas terras do gineceu profundo e longínquo. Era especialista em ameaçar com a frase do ‘atire a primeira pedra’ e chegou a apaixonar-se por uma filha pródiga que tinha saído mal da parábola dos talentos. Baralhava tudo mas sentia-se transversal, Deus pagava-lhe o acreditar marialva com uma existência que dispensava grandes profundidades de carácter. Afastado o credo da boca acabava por transportá-lo nos bolsos a fazer de contra peso ao andar gingão e ao facto de só invocar o santo nome de Deus em vão. Tinha sido dispensado dessa tábua da lei a troco de envernizar talhas corrompidas e de tirar o caruncho a confessionários com escritos.
Contos de acreditares imaginados

Deus já tinha entrado no coração dele antes de ler Ratzinger escrever que «a experiência com Deus – a experiência a que chamamos fé, só quem entra nela consegue descobrir alguma coisa; só quem participa da experiência formula perguntas, e só quem pergunta recebe respostas.» Nunca se tinha identificado na angústia pascaliana, nunca tinha sentido o apelo a alguma inevitabilidade da submissão da razão, e também nunca tinha encontrado suficiente segurança e consolo num resumo jesuítico género ‘no que é necessário, unidade; no duvidoso, liberdade; em tudo, caridade’. Preocupava-o aquela lógica de que a fé era algo difícil de se viver sozinho, mas acabava por só ganhar força acreditando em algo que outros já tivessem acreditado com lucro, procurando não desperdiçar nem Graças, nem Vontades. Não tinha coração nem cabeça para contradições, e safava-se melhor com mistérios e scrabbles de heterodoxias, fugindo a sete pés da ‘salvação alcançada num cepticismo que limpasse o dogmatismo intimo que sofria’. Sentia que só um bom labirinto nos afasta dum abismo.

Nota: algumas frases, que estão 'assinaladas' , são adaptadas – se bem que descontextualizadas – do Unamuno.