‘A vida não é argumento’ [2/9]

Uma das falsificações que mais me entusiasmou foi a de um suposto original inédito (dactilografado) de Beckett. Na altura ainda hesitei entre ele e a Gertrude Stein, mas tive receio da opção pela americana pois, mesmo sendo literariamente mais fácil de falsificar, corria o risco de não poder apresentar uma história consistente sobre como me tinha chegado às mãos. Escolhi um conto breve, semi-labiríntico, brincando com as palavras ‘amours' e ‘moeurs’, encaixada cronologicamente entre a tradução francesa de Murphy e o original de Molloy, e não me foi difícil provar a consistência do texto, torneado à volta duma cena em que Miriam (a protagonista, digamos assim, se é que alguma coisa era protagonizada) repele o seu amante à base do arremesso de cadeiras chippendale em pau santo e de traições de índole sexual com um marceneiro de Lille. O alfarrabista de Rouen a quem vendi o dito produto não fez muitas perguntas, nem discutiu o meu preço (o suficiente para aguentar 10 Júlias em primeira mão durante 3 meses) e apenas indagou se eu sabia a marca e modelo da máquina de escrever. Hesitei, mas disse que efectivamente isso não sabia, tinha obtido o exemplar dactilografado em troca de mudar a fralda durante um ano a uma baronesa russa relativamente incontinente. O que faz um falsificador de sucesso é saber qual o momento certo em que deve ser sério.

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