Almoços Grátis. série 4 [5]



No dia anterior o almoço tinha terminado numa duna. Só deserto aplainado pelo vento, sem trilhos. Assim hoje entrei no restaurante em total concentração. Como só um homem se sabe concentrar: meio caçador meio presa. Era um rally nas dunas; ora se há altura em que não devemos andar de cabeça erguida é quando existe a possibilidade de capotarmos, mas o orgulho, entre várias outras performances, torna-nos estúpidos. Sentei-me de tal modo que me podiam confundir com um catavento no cimo duma igreja. Como se não bastasse pedi ovas grelhadas, um clássico do restaurante mas que sempre me fez imaginar na cozinha a inseminarem pescadas in vitro. A proveta do peixe assado é o pirex. L. estava toda entretida com um grupo de comensais, olhou para sim e fez aquele olhar que equivale a um até-já-sem-pressa. Por mais irritante que tenha de confessar é um olhar francamente atraente, seja ele feito numa fila de supermercado seja feito em cima dum colchão. Já estava a dominar uns profiteroles quando L. veio ter comigo. Ontem quase não me disseste nada, disse ela, não percebi se a provocar-me se apenas a treinar os glúteos da conversa de circunstância. Tudo o que eu te diga não vale nada por isso tanto dá, foi a minha resposta quase obrigatória. Olha, e que tal tens comido por aqui, disse ela inesperadamente colada à realidade. Mas eu quero lá saber da realidade, porra! E ela sabe isso! Ela sabe que não me interessa nada a realidade. A realidade é apenas aquilo que impede a ilusão de se dissipar no ar. Ela sabe que a realidade é apenas uma embalagem. Ela sabe. Por que raio insistiu ela nesta merda. O restaurante é uma fachada do nosso amor. Para quê esta merda. Uns lavam dinheiro à escondida, nós lavamos corações. O café estava inesperadamente doce mas sem aquele toque meloso que estraga tudo. Já estava no táxi e ainda me sabia bem lamber o céu da boca, assim até dá gosto engolir em seco.

Almoços Grátis. série 4 [4]



Talvez tenha sido a vez que entrei mais hesitante no restaurante. Sentia que iria apenas demonstrar inferioridade, dependência, submissão. Todas aquelas marcas que receamos e que geralmente fazem o diabo tomar conta dos acontecimentos. Para além disso qualquer homem sabe, de cultura e técnica sólida, que não conquista nenhuma mulher com manobras de aproximação. Sem dar bem conta de nada já estava sentado a comer creme de cenoura. Saboroso como se fosse um veneno dócil na mão duma feiticeira. A cenoura acalma-me, põe-me nos braços da minha mãe, transporta-me para aquele reino de felicidade estúpida que não sabemos explicar. Era o momento certo para a L. aparecer porque eu seria irremediavelmente sincero. E assim me apareceu ela à mesa. Mais gordito, hem? Como aproximação não foi má: não mata, aleija sem sangrar, rasteira sem fazer cair, abre espaço para uma resposta não comprometedora, permite um sorriso estúpido mas que parece apenas surpresa, não exige nenhum coração aos saltos, o corpo pode ficar inerte, e não surge aquela vertigem de fugir que geralmente todos tememos. Bem, só agora à posteriori é que consigo fazer estas considerações, na altura, ora na altura, eu tenho sempre uma saída, qualquer coisa com piada. O maior mito moderno é que as mulheres gostam de tipos com piada. Só se for para os levarem para as sapatarias. A minha memória esmagou o que se passou a seguir como quem desfaz beatas ao passeio.

Almoços Grátis. série 4 [3]



E ao terceiro dia a brincar aos mártires no restaurante, a minha intuição dizia que desta vez é que seria. O restaurante estava cheio e tive de esperar a minha vez. Foi um teste à tática de observado passivo. Um dos empregados mais antigos passou por mim e disse-me: senta-se já na mesa do costume. Ora se há coisa que nunca tive foi mesas-do-costume. Detesto combinações do costume, e L. sabe isso, era uma afronta típica. Iria provocar um desencontro e não queria ficar como a má da fita. Num espaço pequeno, fechado, confinado, é difícil usar o expediente do telemóvel esquecido, mas uma mulher quando despreza gosta de fazer de boazinha. O substantivo incompreendido quando é declinado no feminino tem outro requinte. Já sentado foi-me oferecido um amuse bouche com recado: petinga de escabeche. Não lhes toquei, quis ver a reacção. Nenhuma. Conclui que já estava a jogar o campeonato do desprezo. L. ainda nem sequer tinha aparecido, nenhum empregado tinha feito qualquer alusão a pratos especiais, eu nem sequer já servia para fazer de arlequim. Era um indigente, alguém a quem suportavam pelos serviços prestados no passado à Senhora. Uma refeição social de inserção, um faz-te à vida em forma de escalopes de vitela. A mulher quando muda de homem torna-se uma máquina demolidora de humilhação. Pedi mousse de chocolate antes de tocar no que quer que fosse. Comi-a saboreando o doce como se fossem as batatas marcianas do Matt Damon e saí de queixo empinado para ser atropelado com estilo.