Ur command is my wish, sir!


Egon Schiele, 1912. Nach vorn Akt mit blauen Strümpfen. Guache e lápis s/ papel (37,5 x 28,9 cm). Leopold Museum, Wien

E que seja tudo, genuflexão e pecado da carne incluídos se bem que hoje ainda não seja sexta-feira, para o bem do tormento (sacrifício é pouco...) quaresmal que pràqui tem andado.
Quaresma XXVIII

Ora aqui estão então contributos do...

«Enquanto o homem normal admite uma categoria de actos acidentais não necessitando de motivação, categoria em que coloca uma parte das suas manifestações psíquicas e actos falhados, o paranóico recusa às manifestações psíquicas de outrem qualquer elemento acidental. Tudo quanto observa nos outros é significativo, logo susceptível de interpretação. Donde lhe vem esta maneira de ver? Aqui, como em muitos outros casos análogos, projecta provavelmente na vida psíquica alheia o que existe na sua própria vida em estado inconsciente. Quantas coisas se comprimem na consciência do paranóico e que, no homem normal e no nevrótico, existem só no inconsciente, onde a sua presença é revelada pela psicanálise. Quanto a este ponto, o paranóico tem então, em certa medida, razão, pois vê qualquer coisa que escapa ao homem normal, a sua visão é mais penetrante que a do pensamento normal, mas o que retira ao seu conhecimento todo o valor é a extensão aos outros do estado de coisas que apenas é real na medida em que só diz respeito a ele, paranóico.


... Sigmund em ‘Psicopatologia da vida quotidiana’ ( ed Rel.d’Agua, pg 285), o tal livro que nos chega a exasperar ao relatar lapsos para todos os gostos e feitios ( mas hoje cortei-me a trazer para aqui exemplos) E agora até me apetecia relatar o episódio ( que também vem no citado livro) da Lou Andreas-Salomé e do seu terrier Ami, que lhe bebia a leitinho que transbordava para o chão quando fervia, mas detive-me, para ver se esta tasca ainda tem algum leitor quando chegar a semana santa.
Oh... mas há poucas coisas melhores que uma bela paranóia: por exemplo esta de pensar que alguém com consciência lê isto. Mas o consciente não existe, freudasse.
smsantologia

Sucumba a ideia que a razão instiga
A esclarecer-me; que a mente entregue à intriga
Do entendimento não logra mais que engano.

Natália Correia, Sonetos Românticos, 1990
Quaresma XXVII

Isto, para não variar muito, não interessa nem ao menino Jesus, mas...

«O clandestino que prospera não é aquele que se esconde nas caves como um rato, que foge da luz e da agitação social: industrioso, participa activamente na vida natural da comunidade, com as suas paixões e fraquezas; parece mergulhado no fervilhar existencial, ocupado em algo que toda a gente compreende, e tem o direito de dedicar parte do seu tempo e das suas forças, mas a sua actividade essencial decorre em segredo, paralela, e decorre tanto melhor quanto mais organicamente estiver ligada com as suas ocupações públicas quotidianas. Simplicidade óptima: conduzir as actividades secretas em ligação com as actividades públicas. (...)
A ideia entrou nele como o ar que respirava: dedicar-se (...) sobretudo e primeiro de tudo, ao comércio com a revolução como apêndice. (...) Havia algo de genial neste casamento do comércio com a revolução.»


...como não estamos no Natal e sim na Quaresma, aqui vai uma passagem de ‘Lenine em Zurique’ de A Soljenitsine ( D. Quixote, pg 179-181, neste caso referindo-se a Alexandre Helphand – ‘Parvus’) que acaba por revelar as verdadeiras intenções revolucionárias da globalização. Mas palavra puxa palavra, chego a uma frase essencial referida no ‘Arquipélago de Gulag’ (ed Bertrand, II vol, pg 255) : «O homem não é um demónio, mas é difícil viver com ele». Daí que amanhã, se calhar, irei ao Sigmund F., até porque o russo ainda dizia: « Que é mais difícil de traçar, uma linha recta ou uma linha curva? Para uma linha recta são necessários instrumentos; quanto à linha curva, um bêbado seria capaz de a descrever com as pernas. É a mesma coisa com a linha da vida»
Quaresma XXVI

Só coisas assim...

«O coração bateu-lhe mais e mais depressa, à medida que o rosto dela se apaixonou do seu. Sabia que quando beijado esta rapariga, e para sempre consorciado as suas indizíveis visões ao imperecível hálito dela, a sua mente não voltaria a vaguear, como Deus, pelo infinito. Esperou, pois, mais um instante para tornar a ouvir o diapasão de prata que ressoara, batendo numa estrela. Então beijou-a. Quando os seus lábios a tocaram, ela abriu-se como uma flor e a encarnação foi completa»

... como esta de Scott Fitzgerald em ‘Grande Gatsby’ ( ed Presença, pg 116) me fariam citar aqui o Nietzsche com 'o amor perdoa até o desejo ao bem amado’, sem recear - em demasia -a decadência do espírito. E fazem-me ainda recuperar um recorte de jornal que marcava esta passagem do citado livro, na qual Fátima Maldonado, referindo-se ao escritor e à sua amada (bela palavra, hem), escrevia: «Ambos calcinavam os sítios do amor, mas enquanto ela se pregava à muralha da insanidade, como um despojo sangrento, ele ia edificando literatura com os cacos da paixão» (in ‘Expresso’, 10 Agosto de 1991). Felizmente que isto do amor é coisa de mulheres.
Quaresma XXV

Ainda a fazer a depilação do existencialismo...

«La gente ha buscado siempre en el arte corroboración ingeniosa de vida. Pero la literatura y el arte son subversivos porque perpetúan y evidencian la distancia entre el hombre y la naturaleza. No es cierto que seamos unas bestias sumisas de la Creación, sino que en algún momento se produjo la ruptura y el hombre está atenido sólo a si mismo. Esa ruptura, las religiones la han capitalizado como caída, como mal.»

…F. Umbral em ‘La noche que llgué al café Gigón’ ( ed Destino Libro, 1980, pg 168), memórias dos seus primeiros tempos em Madrid, numa altura em que procurando o estado de graça ainda não era tão engraçado. Não falava ainda da roupa interior da mme Bovary mas já dizia isto…

«Frente al culturalismo de los críticos, los pintores, en su tertulia de café, casi nunca hacían estas virguerías sino que hablaban de tierras y cocinas, de la calidad de un lienzo (…) o de un barniz, y hasta de los marcos hablaban mucho. De lo que nunca hablaban, benditos sean, era de Metafísica. Conocían su oficio como el tornero conoce su torno, y eso era todo.»

… e o mal de muitos é não se ficarem pela terebentina.
Quaresma XXIV

Afazeres relacionados com a decadência da nossa condição levaram-me a que só apanhasse a parte final daquele maravilhoso programa do PPortas, no preciso momento em que ele recomendava um livro da Inês Pedrosa. O céu ganha-se com estas pequenas coisas, isso é sabido, Deus recompensa aqueles que protegem os seus filhos mais desabonados da fortuna do bom senso. E a propósito, eis pois que, relembrando uma leve promessa aqui feita, recupero, de forma obscenamente recortada e baralhada, umas passagens relacionadas….

Gwendolen – (…) parece-me mostrar que ainda lhe esta um pouco de vergonha. (…) Em coisas desta importância, o estilo, e não a sinceridade, é a coisa vital
(…)
Cecily – Só a sua voz inspira credibilidade absoluta
(…)
Miss Priss – Não conheço ninguém com uma noção tão elevada do dever e da responsabilidade. (…) Gracejos ociosos e trivialidades não têm lugar na sua conversa.
(…)
Lady Bracknell – E uma hesitação de qualquer espécie seria um indício de decadência mental.
(…)
John – (…) Mas o facto é que não me agrada o seu carácter moral. Desconfio que é mentiroso
(…)
Cecily – (…) Espero que não tenha levado uma vida dupla, fingindo ser mau, e sendo, na realidade, sempre bom.
(…)
Lady Bracknell – (…) Devo dizer que me parece revelador de uma natureza um tanto impaciente. (…) Parece estar a dar mostras de trivialidade. (…) Quem me dera que ele chegue a alguma conclusão!

… e apanhadas nas falas dos personagens de ‘A importância de ser Earnest’ de Óscar Wilde (ed Relógio d’água, do 2º e 3º acto) certamente acompanhando a SIC notícias naquele momento. Mas não queria também deixar de aproveitar a oportunidade de incluir estas outras deixas…

Chasuble – Mas, depois de casado, o homem não tem o mesmo poder atractivo?
Miss Prism – O homem casado não tem poder atractivo senão para a esposa.
Lady Bracknell – A sociedade de L. está cheia de mulheres que, por sua livre escolha, permanecem há anos nos trinta e cinco
John – Então não nos resta mais do que um apaixonado celibato

… para quem viva em debute sentimental. Todos, no fundo.
Quaresma XXIII

Isto não é especialmente verdade, nem está especialmente bem escrito, nem é especialmente novo...

«Descobri que a diferença principal entre os bairros pobres e a baixa, é que as pessoas são mais verdadeiras nos primeiros. Suponho que não têm outro remédio. Aí uma prostituta é uma prostituta; um chulo é um chulo; um ladrão é um ladrão; um maricas é um maricas; um filho da mãe é um filho da mãe.
Na baixa era diferente – mais complicado. Uma prostituta por vezes era uma senhora de sociedade; um chulo podia ser um dandy; um ladrão podia ser um executivo; um maricas podia ser um playboy; um filho da mãe era uma pessoa desajustada e com problemas.

... mas é da ‘autoria’ de alguém que está por detrás duma das vozes mais singulares que se podem ouvir, e que, mesmo não sendo tão brilhante como o padre António Vieira, ainda ‘disse’...

«Naquela altura as pessoas ficavam admiradíssimas se vissem um branco com uma negra e hoje em dia continua tudo na mesma...podia tratar-se de Marian Andersen com o seu agente; ou uma bailarina com o seu chulo. Não interessa que aspecto tinha o casal, mas os filhos da mãe achavam que se estivessem juntos era só por um motivo. Talvez fosse, talvez não fosse. Mas se não fosse era o mesmo que ser , porque ninguém acreditava(...)
Isto torna a vida uma chatice permanente(...) pode-se lutar, mas não se pode vencer.
A única altura em que vivi livre disso foi quando era prostituta e tinha fregueses brancos. Ninguém nos chateava. As pessoas perdoam tudo o que for preciso se for para ganhar dinheiro.»

...Billie Holiday na sua 'biografia ditada'- ‘Lady sings the blues’ (1992, ed Antígona, pg 115, 125) e aparentemente controversa. Menos controversa será a sua voz gemida, que, como José Duarte refere no prefácio :«não deixou descendentes nem discípulos».
E talvez um dia eu ainda comece a escrever mais sobre bola. Hademver.
Quaresma XXII

Como um ....chamado Olegário Benquerença me..... o serão...

«il faut mettre ses principes dans les grandes choses. Aux petites, la miséricorde suffit.»

… agora só dá mesmo para esta coisita dos ‘Carnets’ de Camus (vol III, Galimmard, pg 19). Que Deus perdoe o .... do árbitro porque eu agora não estou a conseguir. E que a omissão dos palavrões me conceda a indulgência em conformidade. No entanto, uma pitada de misericordia também já ajudava.
Quaresma XXI

Esta passagem (tipo Love boat em versão Kursk) …

«De modo que a união física era para mim como que garantia do verdadeiro amor.(…) Direi agora que essa ideia foi uma das muitas ingenuidades minhas. (…) Longe de me tranquilizar, o amor físico perturbou-me ainda mais, trouxe novas e torturantes dúvidas, dolorosas cenas de incompreensão, cruéis experiências. (…) Os meus sentimentos (…) oscilaram entre o amor mais puro e o ódio mais desenfreado(…) de súbito assaltava-me a dúvida de que era tudo fingido. Por momentos parecia-me uma adolescente pudica e de repente parecia-me uma mulher qualquer (…) Em tais ocasiões, não podia evitar a ideia de que representava a mais subtil e atroz das comédias, (…) eu tinha a certeza de que (…) conseguíamos comunicar um com o outro, mas de forma tão subtil, tão passageira, tão ténue, que ficava logo mais desesperadamente só do que antes, com essa imprecisa insatisfação que experimentamos ao querer reconstruir certos amores de um sonho. (…)

…do ‘O Túnel’ do Ernesto Sabato demonstra que não há melhor tema literário que a obsessão amorosa, aliás, não há mesmo nada mais saudável para o nosso equilíbrio que assistir uma obsessãozita doentia em prosa, e ainda acrescentaria, sem medo, que a melhor maneira de aferirmos da nossa sanidade é acompanhar a capacidade interna de gerirmos uma boa obsessão como quem põe mostarda num cachorro ( sem lamber). E, seguindo para bingo: o amor sem insegurança assemelha-se à irrelevância duma certidão do registo predial rasurada a garantir uma livrança protestada, ou seja, se ninguém passou por isto : «Sentia un amor vertiginoso por Alejandra. Com tristeza pensó que ella, en cambio, no lo sentia. Y que si lo necessitaba a él, Martin, no era en todo caso com el mismo sentimento que él experimentaba hacia ella.» que com simplicidade diz também Sabato em ‘Sobre héroes y tumbas’ ( ed Seix Barral, pg 92), então é melhor começar tudo de novo, com sapatos engraxados e roupa interior lavadinha. A certeza dum amor correspondido é uma sensaboria.
Quaresma XX

E agora daquele livro que a Peggy ofereceu ao Beckett ( gajas inacessíveis geralmente oferecem livros a tipos de deficiente socialização) …

Sempre que Oblomov se encontrava deitado absorvido num sonolento letargo ou agitado pelos arroubos da fantasia, na antecâmara dos seus sonhos havia sempre uma mulher (…) alta, graciosa, com olhos meigos mas altivos, e expressão sonhadora, a cabeça graciosamente assente nos ombros, os braços serenamente cruzados sobre o peito, repousadamente sentada no meio das trepadeiras da varanda, (…) a cintura oscilando compassadamente. (…) Imaginava-a em primeiro lugar junto do altar envergando um longo véu e coroada de flore, à cabeceira do tálamo conjugal com os olhos recatadamente velados(…) Imaginava o sorriso dela, não um sorriso de paixão, mas de simpática compreensão para com ele .(…) imaginava os olhos dela, não incandescentes de paixão, mas meigos só para ele. (…) Não queria luar nem melancolia. (…) Não é a secreta aspiração de todos os homens e de todas as mulheres obter do seu par uma tranquilidade sem oscilações, um fluxo permanente e regular de sentimento. (…) Dar à paixão uma saída legítima, deixá-la fluir numa certa direcção como um rio para benefício de toda a província, é o problema de toda a humanidade. (…) Uma vez resolvido o problema, não pode haver nem infidelidade nem arrefecimento, mas apenas uma saúde moral permanente, o bater igual de um coração calmo e feliz. (…) Oblomov teria fugido horrorizado da mulher que subitamente lhe desfechasse um olhar ardente, ou tombasse a gemer sobre o seu ombro num apertado abraço.»

… ‘Oblomov’ de Ivan Goncharov ( pag 281 e segs da ‘tradução’ portuguesa’ para a Civilização) . Uma ‘Comedy of Alienation’ como lhe chama Milton Ehre no livro ‘ Oblomov and his creator’ ( ed Princeton Univ. Press, pg 154, uma grandessíssima seca e então sem pistachios nem queiram saber) curiosamente citando Beckett numa passagem de ‘Waiting for Godot’ em que Estragon em brasa com Vladimir, desdenhando do tempo e do espaço, ( um pouco como Gontcharov) diz: «All my lousy life I’ve crawled about in the mud! And you talk about scenery!». Tenho no entanto de vos confessar que censurei uma passagem do ‘Oblomov’ que dizia «sim, a paixão deve ser limitada, domada e destruída pelo casamento». É que ainda tenho uma leve esperança que este blog sirva de consulta obrigatória para a pastoral da família. (escusam é de acompanhar com o ‘LCD Soundsystem’, como eu faço agora, porque não deve haver sacramento que resista esta sanfona). É pá isto da Quaresma são mesmo quarenta dias? Valha-me Sto Ali Babá. Mas também não queria deixar de chamar a vossa especial atenção - para o caso de terem sido espertos e terem passado ao lado do texto - para a passagem: «obter um fluxo permanente e regular de sentimento». Os tipos do Evax ultra andam distraídos.
Quaresma XIX e 1/2

E para contraponto, até porque hoje é domingo, e vai-se tudo deitar mais cedinho...

«Senhor meu. Casa limpa. Mesa asseada. Prato honesto. Servir quedo. Criados bons. Um que os mande. Paga certa. Escravos poucos. Coche a ponto. Cavalo gordo. Prata muita. Ouro a menos. Jóias que se não peçam. Dinheiro o que se possa. Alfaias todas. Armações muitas. Pinturas as melhores. Livros alguns. Armas que não faltem. Casas próprias. Quinta pequena. Missa em casa. Esmola sempre. Poucos vizinhos. Filhos sem mimo. Ordem em tudo. Mulher honrada. Marido cristão; é boa vida e boa morte.»

...o último parágrafo da ‘Carta de Guia de Casados’ de D. Francisco Manuel de Melo ( ed Europa-América). E depois não digam que eu não avisei; percam tempo com porcarias, percam.
Quaresma XIX

Isto não é lá muito bonito dizer-se, mas a verdade é que já estou fartinho desta coisa de só enfiar práqui coisas que outros escreveram, e ainda vamos a meio da liturgia. Acho que se tivesse assentado na vida como xintoísta com uma loja de sumos afrodisíacos no Sri lanka nunca teria de passar por esta grande porra da penitência. Foi galo, mas pronto, adiante, vai-se vivendo a abstinência celebrando por vezes aqueles que pouco a praticaram, vejam só esta moça...

«A pesar de que aprovechaba todas las ocasiones que se cruzaban en el camino, durante un año estuve totalmente obsesionada por aquel extraño personaje llamado Samuel Beckett. (...) Era un irlandés alto y desgarbado de treinta años, con enormes ojos verdes que nunca te miraban directamente. Llevaba gafas y siempre parecía estar en las nubes, solucionando algún problema intelectual; hablaba muy poco y nunca decía estupideces. Era excesivamente cortés y bastante antipático.(..)
Los trece meses que estuve enamorada de él, recuerdo aquellos días con gran emoción(...) estaba muy influenciado por Joyce, pero tenia ciertas ideas extrañas y morbosas bastante originales y un sentido del humor fantástico y sardónico.
Lo que más me gustó de nuestra aventura era que nunca sabía qué hora del día o de la noche iba a aparecer.(...)
Le hice leer ‘Oblomov’ y, naturalmente, él también vio la similitud con aquel personaje extraño e inactivo que al final de su vida ya ni siquiera tiene fuerzas para salir de la cama.
Mantener una conversación con Beckett era una heroicidad. No solía estar muy animado y hacían falta muchas horas y muchas copas para sacarle de su estatismo silencioso.(...) Tenía poca vitalidad y siempre optaba por las soluciones más fáciles. (...) no sabía escoger sitios con gracia y su educación protestante siempre le hacia descartar las cosas agradables de la vida»
Mas como ela não era de muitas intrigas:« le dije que me veía obligada a tener muchos amantes para poder conservarle como amigo y le reproché que fuera el causante de mi doble vida.» Por estas alturas já andava enrolada com o Tanguy; entre outros, claro.

... a Peggy Guggenheim, nas suas memórias ‘Out of this century’ (tradução em espanhol pela ed Parsifal, 1990, pgs 178 e sgs). Concluindo, ( para dar ideia de que alguma coisa foi iniciada) e apesar de parecer contraditório com os títulos dos posts, isto está a tornar-se um autêntico blog-de-encher-chouriços. Até pode ser que alguma marca de charcutaria fina se interesse por isto lá pela Pascoela.
Quaresma XVIII

Mas nem havia quaresma a sério sem falar desta gajita, que agora anda aos pulos que nem uma cossaca...

«She’s tart but delicious, she’s campy but coy, she’s the pop world embodiment of personality-as-art»

… a dançar num maillot do mateus rosé, descrita assim numa ‘People’ de 1985, e citada numa das suas ‘Madonna-Unautorized biografy’ ( Chistopher Andersen, ed island books, pg 181 - o que eu gosto de ler estas merdas). Mas o que é realmente uma pena é que Picasso não a tenha conhecido ( Warhol dessa forma nunca teria existido – isto é mais uma previsão em VPV style), e vejam só o que ele podia ter feito com aquela... personalidade...

« In Henri-George Clouzot’s 1955 film ‘Le mystère Picasso', Picasso is photographed at work drawing. The sequence in which the drawings develop is wonderment – Picasso becomes a magician materializing objects from thin air. He starts drawings in totally unexpected places, both on the page and in the anatomy of the figure. A squiggle in the center of the page evolves from an embryonic mystery to a hand that eventually grows a body, more vegetal than animal in the process.»

… face a este parágrafo do fabuloso ‘The sketchbook of Picasso’ ( ed Thames and Hudson).
No fundo, no fundo: we are all flowers. Uns desabrocham mais que outros. Mas nem sempre no desabrochar está o ganho, como sabemos. Afinal era ‘Pólen eris pólen reverteris’, olhai os lírios do campo. Madonna, as parvoíces que me fizeste escrever, filha.
smsantologia

"O amor é o amor - e depois?
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?..." (i)

"(pois amor não há feito)" (ii)

Alexandre O'Neill, (i) O Amor é Amor (1960) e (ii) Retrato (1962)
Quaresma XVII

Vias sacras alternativas na correspondência de Dostoievski...


«Je ne sais pas écrire des lettres»

Il ne sait non plus terminer une lettre, multiplie les post-scriptum,(…) des vœux de santé et des embrassades, comme un paysan.

« Je ressens douloureusement et mieux qui quiconque mon vice littéraire : la prolixité, mais je ne parviens pas à m’en débarrasser»

A côté des négligences de syntaxe, d’emploi impropre de vocables, il s’est crée une ponctuation à lui où abondent les tirets, parfois doubles ou triples, combinés avec des points, et qu’il charge d’un sens particulier ; il abuse des parenthèses, il les inclus même dans autres parenthèses, il met une majuscule après les point virgule, mélange les chiffres romains et arabes»

.. descritas no prefácio do III vol da sua correspondência completa, traduzida por Nina Gourfinkel ( ed Calmann- Levy) e que se desculpam, pois como ele diz numa destas cartas: «pardonnez la négligence,(…) n’y voyez pas un manque d’égards». É isso, tudo se perdoa a quem não falta com um olhar, ou como explicam os seus heróis: transportamos os nossos limites e os nossos castigos, naquela tragédia que é o pensamento à nora com a paixão, a leis humanas e a moral.
Mas calma, isto passa-me, bastam duas conjugações maradas, um atropelamento de artigos, e meia dúzia de pronomes indefinidos postos à toa.
Quaresma XVI

Como ainda é quinta feira...

«o presidente Domingo, intelectualmente, é um tipo terrível, mas fisicamente não é o fenómeno de feira que vocês pretendem. Recebeu-me, vestido com um fato cinzento, aos quadrados, num quarto bem iluminado pelo sol. O quarto dele é limpo, os fatos correctos, tudo parece em ordem, o que ele tem de um tanto assustador é ser distraído. Por vezes os seus enormes olhos brilhantes cegam por completo, durante horas esquece-se de quem está com ele. Ora a distracção num homem mau é uma coisa terrível, imaginamos ao maus sempre alerta. Não podemos conceber um indivíduo perverso que seja também, honesta e sinceramente, sonhador, porque não podemos imaginar um homem mau só consigo próprio. Um distraído é um bem intencionado, é um indivíduo que, se reparar em nós, pede desculpa. Mas já imaginaram num distraído que, se nos vir, nos mata? Isso é que esgota os nervos, a abstracção combinada com a crueldade. Os homens já o sentiram por vezes, quando, ao atravessarem florestas selvagens, tiveram a sensação de que os animais eram simultaneamente inocentes e impiedosos, ou não fazem caso ou trucidam. Gostariam de estar, durante dez horas, numa sala com um tigre distraído?»

...e nunca se sabe com quem subimos o elevador, aqui fica uma passagem de ‘O homem que era quinta feira’ do G.K. Chesterton ( ed, Estampa, pg 178); e o facto de eu me ter lembrado deste tipo, mostra certamente que, ou ando distraído, ou é já a decadência a marinar na senilidade.
Quaresma XV

O galego em verso trouxe-me à lembrança a frase dum personagem de ‘ Trabalhos e paixões de Benito Prada’ de Fernando Assis Pacheco, quando ele dizia que« fique-se com esta(...) na Galiza é tudo pequeno, a começar pelos grandes». Evitando ter de dizer o mesmo da nossa santa terrinha, pespego aqui o princípio meio delirante desse livro ( e também para temperar a ligeira brodebackização do template) ...

Quando o Padeiro Velho de Cademundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé.
O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado.
«Caramba», disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais velho, «é à segoviana!».
«Mas não lhe pões o dente», cortou o outro.
Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou:
«É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não tem préstimo senão no inferno.»
Se perguntassem ao Padeiro Velho o que mais queria naquele momento, teria respondido:
«Assar-lhe até a memória»

E mais comentários para quê. Acompanha com ginjinha, claro.
Quaresma XIV

e para celebrar o tricotamento templatico desta humilde casa desenrebanhada…

ALGUNS din, miña terra!
Din outros, meu cariño!
Y este, miñas lembranzas!
Y aquel, ou meus amigos!
Todos sospiran, todos,
Por algun ben perdido,
Eu só non digo nada,
Eu só nunca sospiro,
Qu’ó meu corpo de terra
Y ó meu cansado esprito,
A donde quer qu’eu vaya
Van conmigo.

(…)

Non fuxo, non, que aunque fuxa,
D’un lugar á outro lugar,
De min mesma, naide, naide,
Naide me libertará.

…nada melhor que excertos de dois poemas, em galego, da Rosalía de Castro. Para quem de direito. Infinito.
Quaresma XIII

choque das civilizações, versão para meninas, decifrado…

Averroes redactaba el undécimo capítulo de la obra Tahafut-ul-Tahafut (Destrucción de la Destrucción), en el que mantiene que (…) la divinidad sólo conoce las leyes generales del universo, lo concerniente a las especies, no al individuo. Escribía con lenta seguridad, de derecha a izquierda; el ejercicio de formar silogismos y de eslabonar vastos párrafos no le impedía de sentir, como un bienestar, la fresca y honda casa que lo rodeaba. En el fondo de la siesta se enronquecían amorosas palomas; de algún patio invisible se elevaba el rumor de una fuente;(…)
La pluma corría sobre la hoja, los argumentos se enlazaban, irrefutables, pero una breve preocupación empaño la felicidad de Averroes. No la causaba el Tahafut, trabajo fortuito, sino un problema de índole filológica vinculado a la obra monumental que lo justificaría ante las gentes: el comentario de Aristóteles. (…) Pocas cosas más bellas y más patéticas registrará la historia que esa consagración de un médico árabe a los pensamientos de un hombre de quien lo separan catorce siglos. (…) La víspera, dos palabras dudosas lo habían detenido en el principio de la Poética. Esas palabras eran tragedia y comedia. Las había encontrado años atrás, en el libro tercero de la Retórica; nadie, en el ámbito del Islam, barruntaba lo que querían decir. »

…em passagem, por Jorge Luís Borges, no conto ‘La busca de Averroes’, e que, sem prejuízo da importância que ele teve na história da Filosofia (vejam-se os ‘contrapontos’ que S. Tomás de Aquino teve de fazer), colocam na humildade do pensamento o centro da sua liberdade. E os sacanas dos gregos eram danados para inventar palavras. Hoje sabe-se que ‘tragédias’ e ‘comédias’ são formas de caricaturar epopeias envergonhadas. (eu aqui queria dizer apanascadas)
Quaresma XII

Os puritanismos…

«Tinha perdido qualquer atributo, cuja permanência fora essencial para a conservar mulher. Tal é muitas vezes a sorte, e tal o austero desenvolvimento, da pessoa e do carácter femininos, quando a mulher encontrou, e atravessou, experiências de uma severidade especial. Se for toda ternura, morrerá. Se sobreviver, ou essa ternura ficará esmagada nela, ou – o que não difere do aspecto anterior – calcada tão para dentro do seu coração que nunca mais poderá mostrar-se.
(…)
Grande parte da frieza marmórea, de que Hester dava a impressão, deve ser atribuída à circunstância de que a sua vida se tinha voltado, em alto grau, da paixão e da emoção para o pensamento. Sozinha no mundo – sozinha quanto a qualquer dependência da sociedade, e com Pearl para guiar e proteger – sozinha, e sem esperança de recuperar a sua posição, mesmo que não desprezasse o tê-lo por desejável, ela deitou fora os elos de uma cadeira partida. A lei do mundo deixara de ser lei para o seu espírito. (…) É notável que os indivíduos, que especulam com maior audácia, muitas vezes se conformam com a maior tranquilidade às regras externas da sociedade. Basta-lhes o pensamento, sem que precise de vestir a carne e o sangue da acção»

… eram outros, no tempo de ‘A letra escarlate’ de Nathaniel Hawthorne ( ed. D. Quixote, com tradução do Fernando Pessoa, pags 208/9, 1988), mas esses tiques próprios dos campeonatos da fidelidade-à-letra—feita-doutrina ( calvinista naquela altura e caso) existiram sempre e provocarão também sempre ( e utilizo agora a corruptela duma frase da Agustina B. Luís…) ‘almas viciadas’ em todas as frentes da batalha. (… ouvida ontem numa entrevista à – inenarrável, pela deferência quase demencial - MJAvilez , enquanto a sra dona do carrapito lá lhe dizia que « quando escrevi isso ( ‘a alma é um vício’) nunca foi para ter de explicar»; tal como a história de Hester)
lá se fazem, cá se pagam


smsantologia

«My father is standing outside the front door.
Pointing out to me the Plough and the North Star.
He says, ‘look up child, just as far you can’.
I see freckles join up the back of his hand.»

Vona Groarke, ‘Nearer Home’
Quaresma XI

back in business (in hard module for air cleanig )…

«(…) há muitas almas que tirarão mais proveito de outras meditações do que na da sagrada Paixão pois, assim como há muitas moradas no Céu, há muitos caminhos. Algumas pessoas aproveitam considerando-se no inferno, outras no Céu – e afligem-se a pensar no inferno – outras na morte. Algumas, se são ternas de coração, doem-se muito de pensar sempre na Paixão e regalam-se e tiram fruto em contemplar o poder e a grandeza de Deus nas criaturas e o amor que nos teve, o qual se manifesta em todas as coisas. E é admirável maneira esta de proceder, não deixando no entanto muitas vezes a Paixão e vida de Cristo, que é donde nos veio e vem todo o bem.»

…com a Stª Teresa no seu ‘Livro da Vida’ ( cap XII) , pouco depois de ter ainda escrito que «bastantes anos passei em que lia muita coisa e não entendia nada; e também muito tempo em que, embora mo desse Deus a entender, não sabia dizer palavra para o dar a compreender». Problema diferente do que teve Pascal ( nº 245 dos ‘Pensamentos’ - deve-me estar a febre a aparecer ao me dar para falar deste artista) quando escrevia que « a religião cristã não admite (…) aqueles que crêem sem inspiração. Não que exclua a razão e o costume: pelo contrário. Mas é preciso abrir o espírito às provas, confirmarmo-nos pelo costume, mas oferecermo-nos pelas humilhações às inspirações, as únicas que podem fazer o verdadeiro e salutar efeito: ‘a fim de a cruz de Cristo não ser desvirtuada’ ( de S. Paulo aos Coríntios)»
Mas no fundo é só isso: muitos caminhos, muitos caminhos. Happily, afinal de contas.
Quaresmal break

Porque a carne é fraca, do espírito nem se fala, mas então a palavra tem fortes possibilidades de me levar a passar uns tempos a fazer tostas mistas na kitchenette do Lúcifer

CCS e VPV , certamente duas vocações perdidas de taxistas com estudos, nos dias que tomaram conta do espectro blogáfrico ...


Disseram mal de cavaco
Disseram mal de jpp
Disseram mal do sócrates
Disseram mal do neves, césar das
Disseram mal do mendes, marques
Disseram mal de sampaio ( versão teixeira gomes e restantes)
Disseram mal da alves, clara ferreira
Disseram mal do amaral ( versão Freitas)
Disseram mal do patriarca ( versão cardeal)
Disseram mal da nacional ( versão selecção, entre muitas outras)
Disseram mal da dinamarca ( versão pós Hamlet)
Disseram mal do irving ( versão o bigode do hitler era postiço)
Disseram mal dum miranda ( versão João, mas ao certo, ao certo, quem é esse gajo, já agora?)
Disseram mal dos pastorinhos ( versão milagre do sol sem lentes protectoras)
Disseram mal da n. s. de fátima( versão fenómeno do entroncamento)
Disseram mal do blair ( versão anti- excêntrica)
Disseram mal da justiça ( versão minha querida fátinha)
Disseram mal do joão ( versão alberto, 'bandido gordo')
Disseram mal da beleza ( só encontrei na versão Leonor, faça-se justiça)

( chega...)

Pelas minhas contas apenas faltou dizerem mal deles próprios, da família mais chegada, da madre teresa, do mobutu e da pintassilgo ( versão Mª de Lurdes, que o Senhor a tenha). Num acto pré quaresmal vi ainda um esboço comiserativo para com louçã, certamente o bastante para ganharem o céu.

ps. faça-se justiça: disseram bem do Chateaubriand ( se calhar por terem confundido com a pressa que era uma marca de queijos) e do Larkin ( que por acaso também dava uma boa marca de electrodomésticos)

ps. e como já não usava um superlativo há imenso tempo, aqui vai a frase melhor que li ( mesmo agora) nos últimos … anos, vá; do Bruno: «No fundo é uma oportunidade para me porem no meu lugar. Por omissão.»

segue a Quaresma.
Quaresma X

Búzios, chanatas e empalitanços...

«Há muito tempo já eu preferia as fábulas relativas aos amores e às querelas dos deuses aos comentários ineptos dos filósofos sobre a natureza divina. Aceitava ser a imagem terrestre daquele Júpiter tanto mais deus quanto é homem, protector do mundo, justiça encarnada, ordem das coisas, amante dos Ganímedoes, e das Europas, esposo negligente de uma Juno amarga. (...) Teria podido, por meio do divórcio, desembaraçar-me dessa mulher que não amava. (...) Mas ela importunava-me muito pouco, e coisa alguma, na sua conduta, justificava um insulto público. Jovem esposa, melindrara-se com os meus afastamentos, como o seu tio se irritara com as minhas dívidas.(...) Como muitas mulheres pouco sensíveis ao amor, compreendia mal o poder; essa ignorância excluía ao mesmo tempo a indulgência e o ciúme. Inquietar-se-ia apenas se os seus títulos ou a sua segurança estivessem ameaçados. Não lhe restava nada daquela graça de espanhola que outrora me havia brevemente interessado (...) Dava-me satisfação que a sua frieza a tivesse impedido de ter amante; agradava-me que ela soubesse usar com dignidade os seus véus de matrona. (...) Acontecia-me pensar naquele casamento fictício (...) entre a sacerdotiza e o hierofante, casamento que não é uma união, nem mesmo um contacto, mas que é um rito e, como tal, sagrado»

...na versão de Marguerite Yourcenar em ‘As memórias de Adriano’ ( Ulisseia pgs 143/4)

Demostrando que para superarmos verdadeiramente uma vida de aparência só mesmo com uma de ilusão.
Quaresma IX

Como me sinto bastante próximo da personagem do Herman que dizia «eu é mais bolos»...

«O homem compõe-se de que tem e “do que lhe falta”. Se usa os seus dotes intelectuais num longo e desesperado esforço não é simplesmente porque os tem, mas, pelo contrário, porque se encontra precisado de algo que lhe falta e para o conseguir mobiliza, claro está, os meios que possui. O erro radicalíssimo de todas as teorias do conhecimento tem sido não se aperceberem da inicial incongruência que existe entre a necessidade que o homem tem de conhecer e as “faculdades” com que conta para isso. Somente Platão entreviu que a raiz do conhecer, diríamos, a sua própria substância, está precisamente na insuficiência dos dotes humanos, está no facto terrível de que o homem “não sabe”. Nem Deus nem o animal têm esta condição. Deus sabe tudo e por isso não conhece. O animal não sabe nada e por isso tão-pouco conhece. Mas o homem é a insuficiência vivente, o homem precisa de saber, compreende desesperadamente que ignora. Isto é o que convém analisar. Porque dói ao homem a sua ignorância, como podia doer-lhe um membro que ele nunca tivesse tido?»

... acabo por não ter especiais dores nas cruzes ao ler Ortega y Gasset nas suas lições - ‘O que é a filosofia’ ( editadas pela Cotovia, 1994, pg 195). Tudo tem a ver com a forma doce com que tento encarar a nossa condição, agradecendo a diversidade biológica em relação aos gatos, algum afastamento genético de Freitas do Amaral e de Perez Metello, a incapacidade moral para o sado-masoquismo, e alleluiando ( ainda que fora de época) o Ortega por ter escrito umas páginas antes (129) que : « o descobrimento da subjectividade tem duas fundas raízes históricas: uma negativa e uma positiva. A negativa é o cepticismo; a positiva é o cristianismo. Nem aquela sem esta, nem esta sem aquela teriam podido dar tal resultado». Só um cristão se consegue ver metafísica e decentemente ao espelho.
Quaresma VIII

Praticamente um plano tecnológico, na versão...


- «Mas realmente, não terá sequer uma ponta de sensibilidade artística? exclamou, ( Ana Sergueienva) apoiando-se na mesa e aproximando, com esse movimento, a cara da cara de Bazarov. – Como pôde prescindir dela?
- Permita-me antes que eu lhe pergunte: para que é necessária?
- Quanto mais não fosse, para poder conhecer e estudar as pessoas.
Bazarov sorriu.
- Em primeiro lugar, para isso, temos a experiência da vida, e além disso, era capaz de lhe demonstrar que o estudo das pessoas, isoladamente, não vale a pena. Todas as pessoas se parecem, tanto no físico como no espírito: todas temos cérebro, baço, coração, pouco mais ou menos de idêntica estatura, e todos acusamos as mesmas qualidades chamadas morais: as pequenas diferenças nada significam. Basta um só exemplar humano para julgar todos os restantes. As pessoas são afinal como as árvores do bosque, nenhum botânico se preocupa em particular de uma espécie vegetal isolada.
- (...)
- (...) Na sua opinião não há diferença entre pessoas estúpidas e inteligentes, entre pessoas boas e pessoas más?
- Claro que sim, como entre doentes e sãos. Os pulmões do tísico não estão nas mesmas condições dos nossos, conquanto a sua estrutura seja idêntica. Sabemos aproximadamente a que se devem as doenças físicas; mas as morais são filhas da má educação, da má organização da sociedade. Numa palavra, corrijamos a sociedade, e acabar-se-ão as enfermidades.
- (...)
- E porventura está convencido de que , corrigida a sociedade, não haverá mais néscios e malvados? – perguntou Ana Sergeievna.
- Pelo menos, numa organização perfeita da sociedade, será indiferente que um homem seja estúpido ou inteligente, mau ou bom.
- Sim, já compreendo, todos terão o mesmo baço.
- Precisamente Madame.»

... de Turgueniev, em ‘Pais e Filhos’ ( numa edição da Presença. 1963, pg 125/6) sem referir o intestino grosso. E eu assim deixo-me ir levando por aquele torpor bom, olhos semicerrados, formigueiro na nuca, acreditando que isto se resolve numa argamassa de reformas sucessivas, com cinco de boa vontade e uma de iluminismo; só que depois lembro-me sobressaltado da descrição de Ana Sergueievna umas páginas à frente:
«Despida de preconceitos de toda a espécie, e ao mesmo tempo sem profundas convicções, não retrocedia diante de nada e em parte nenhuma se encontrava com gosto. Via claramente muitas coisas, muitas lhe interessavam e nada a satisfazia por completo, e em verdade nunca procurava completa satisfação. A sua inteligência era ao mesmo tempo perscrutadora e indiferente; as suas dúvidas nunca se aquietavam a ponto de as esquecer, nem tão pouco se exacerbavam até à inquietação. (...) Uma vez por outra também os sonhos lhe bailavam como arco-íris diante dos olhos, mas o certo é que respirava mais livremente quando estes se desvaneciam, e não tinha saudades deles. A sua imaginação, em verdade, bordejava os limites do que regra geral é permitido pela moral convencional; mas ainda mesmo então o sangue lhe corria serenamente, como sempre, pelas veias do seu corpo belo, harmonioso e tranquilo».
E fico sem conseguir dizer muito mais.
Mas isto é a receita do costume: epidural e deixar o sonho, perdão, as instituições funcionar. E concluo que o cidadão modelo devia ser assim: nem aquietar ao ponto de esquecer, nem exacerbar ao ponto de inquietar.
Quaresma VII

Isto podia ser uma página qualquer, mas…

«Sim, acontecia esquecer-me não apenas de quem era, mas que era, de esquecer-me de ser. (…) A maior parte do tempo mantinha-me na minha caixa que não conhecia estações do ano nem jardins. E era melhor assim. Mas, lá dentro, é preciso ter atenção, levantar questões, por exemplo, a de saber se ficamos ali para sempre e, se não, quando é que aquilo acaba e, se sim, quanto tempo ainda irá durar, não interessa, mas algo que vos impeça de perder o curso do sono. Colocava a mim mesmo questões, naturalmente, umas a seguir às outras, apenas para as contemplar. Não, não naturalmente, com um motivo, a fim de me julgar sempre ali. (…) Chamava a isso reflectir. Eu reflectia quase sem parar, não ousava parar. É talvez a isso que devo a minha inocência. Ela estava um pouco murcha e como que comida nos bordos, mas estava contente por tê-la sim, bastante contente. (…) E as palavras que eu próprio pronunciava, e que deviam quase sempre ligar-me a um esforço de inteligência, causavam-me sempre o efeito de um zumbido de insecto. Isto explica por que razão eu era pouco conversador, ou seja, esta dificuldade que eu tinha em compreender não apenas o que os outros me diziam mas também o que eu lhes dizia a eles. É verdade que, com muita paciência, acabamos por nos entender sobre que assunto, pergunto-vos e com que objectivo?»

… esta passagem de Beckett em ‘Molloy’ representa fielmente o que se iria passar na cabeça do nosso Sampaio durante estes anos todos em que foi o nosso 1º cavalheiro. E como ele acabou por se esquecer de agraciar o Samuel, eu faço-o neste post, de forma póstuma, portanto; (teve de ser um trocadilho sem incitamentos de base carnal-erótica, face à época quaresmal) ainda cheguei a pensar no meu preferido ‘Murphy’ mas achei-o demasiado agitado para retratar o marido da Mizé Rita. É pá, agora vejo, vai falar o Portas; que Deus me perdoe, mas eu não sei se vou aguentar a Quaresma toda sem falar do Portas. Já sei : vai ser no dia de lembrar o Óscar Wilde em ‘A importância de ser Ernesto’.
Quaresma VI

Do tempo em que os gajos não perdiam tempo a arrastar-se pelas livrarias (*)…

DON JUAN (apercevant Charlotte) – Ah! Ah! D’où sort cette autre paysanne, Sganarelle? As-tu rien vu de plus joli ? (…) D’où me vient, la belle, une rencontre si agréable ? Quoi ? dans ces lieux champêtres, parmi ces arbres et ces rochers, on trouve des personnes faites comme vous êtes ?
CHARLOTTE - Vous voyez, Monsieur.
(…)
DON JUAN – Vous vous appelez ?
CHARLOTTE – Charlotte, pour vous servir.
DON JUAN – Ah ! la belle personne, et que ses yeux son pénétrants !
CHARLOTTE – Monsieur, vous me rendez toute honteuse.
DON JUAN – Ah ! n’ayez point de honte d’entendre dire vérités. (…) Tournez-vous un peu, s’il vous plaît. Ah ! que cette taille est jolie ! Haussez un peu la tête, de grâce. Ah ! que ce visage est mignon! Ouvrez vos yeux entièrement. Ah! Qu’ils sont beaux! (…) Pour moi, je suis ravi, et je n’ai jamais vu une si charmante personne..
(eu aqui acho que fazia melhor)
CHARLOTTE – Monsieur, cela vous plaît à dire, et je ne sais pas si c’est pour railler de moi.
DON JUAN – Moi, me railler de vous ? Dieu m’en garde ! Je vous aime trop pour cela, et c’est du fond di cœur que je vous parle.
CHARLOTTE – Je vous suis bien obligée, si ça est.
DON JUAN – Point du tout ; vous ne m’êtes point obligée de tout ce que je dis, et ce n’est qu’à votre beauté que vous en êtes redevable.
CHARLOTTE – Monsieur, tout ça est trop bien dit pour moi, et je n’ai pas d’esprit pour vous répondre.
( isto é deficit de contraditório, claramente)
DON JUAN – Sganarelle, regarde un peu ses mains.
CHARLOTTE – Fi ! Monsieur, elles sont noires comme je ne sais quoi.
DON JUAN – Ha ! que dites-vous là ? Elles sont les plus belles du monde ; souffrez que je les baise, je vous prie.
(aqui acho que ele esteve bem, nada como um superlativo relativo)
CHARLOTTE – Monsieur, c’est trop d’honneur que vous me faites, et si j’avais se ça tantôt , je n’aurais pas manqué de les laver avec du son.
DON JUAN – Et dites-moi un peu, belle Charlotte, vous n’êtes pas mariés sans doutes ?
CHARLOTTE – Non, Monsieur ; mais je dois bientôt l’être avec Piarrot, le fils de la voisine Simonette.
DON JUAN – Quoi ? une personne vous serait la femme d’un simple paysan ? Non, non c’est profaner tant de beautés. (…) car enfin, belle Charlotte, je vous aime de tout mon cœur (…) c’est un effet, Charlotte, de votre grande beauté, et l’on vous aime autant en au quart d’heure qu’on ferait une autre en six mois.
(parece-me bem esgalhado, mas arriscado)
CHARLOTTE- Aussi vrai, Monsieur, je ne sais comment faire quand vous parlez. Ce que vous dites me fait aise, et j’aurais toutes les envies du monde de vous croire ; mais on m’a toujours dit qu’il ne faut jamais croire les Monsieux, et que vous autres courtisans êtes des enjôleus, qui ne songez qu’à abuser les filles.
(isto é no que dá ir atrás de quem lê muitos livros)

… escrito por Molière em ‘Don Juan’ ( ed Librio, pgs 34/36), e quando também ainda não havia cowboys, nem as mulheres vestiam Versace para realçar as formas, e o mais parecido que havia com a Paula Rego eram as partes de trás dos quadros do Caravaggio. Mas por essa altura Shakespeare escrevia:
‘For as the sun is daily new and old
So is my love still telling what is told»


(*) felizmente é Quaresma e eu não posso dissertar sobre este empolgante tema
missing links

1.

Picture yourself in a boat on a river,
With tangerine trees and marmalade skies
Somebody calls you, you answer quite slowly,
[...] - The Beatles


2.

Curious things, habits. People themselves never knew they had them. - Agatha Christie
Quaresma V

Acabaram-se estes…

PARTAGAS
Presidentes
perfecto


«Goût à froid: très puissant, riche et épicé, il s’impose fortement au palais, à la limite de l’agression.

Parfum à froid : bouquet très personnel, tannique, sucrée et épicé.

Goût en combustion : puissant, mielleux, c’est un goût de fleur sucrée, qui développe toute sa puissance dès le deuxième tiers du cigare, jusqu’à fin.

Arôme en combustion : la fumée du Presidentes est lourde, très présente, très marquante, avec un arôme enivrant de miel et d’épices.

Caractéristiques – la forme conique du Presidentes en fait un cigare plein de surprises. On commence par des valeurs discrètes, puis le goût s’amplifie violemment et devient très puissant. Peu produit, c’est un cigare de haute qualité, dans la grande tradition corsée de Partagas.

Conseil : sa puissance évidente l’interdit aux néophytes. Mais, pour les amateurs avertis, c’est un cigare à découvrir absolument, à déguster après un repas sérieux épicé. »

… e agora fica só o texto da casa ‘Gérard Pére et Fils’ de Genéve, no seu ‘Guide de l’amateur de Havane’ ( ed Solar, 1990, pg 166/167). É literatura pura, tomara muitos, dispensa mais comentários, tirando a inesperada constatação de que eu acho que só escrevo decentemente ou com um pico repentino de febre, ou a fumar um charuto. A primeira situação é aborrecida, a segunda fica cara. Ecce homo, versão sem Gólgota, nem Tabernáculo.
Quaresma IV

A vida como ela não é...

«Não são as aguarelas que me interessam, mas o que quero fazer com elas.
(...)
Bartlebooth decidiu um dia que toda a sua vida seria organizada em torno de um projecto único, mas integral, intacto, irredutível (...)cuja necessidade arbitrária não seria outro fim para além de si mesma. (...) O dinheiro, o poder, a arte, as mulheres, não interessavam a Bartlebooth. Nem a ciência, nem sequer o jogo.
(...)
Não se trataria de uma proeza, não seria espectacular ou heróico, (...) mas excluía qualquer recuso ao acaso, (...) e, finalmente, (...) era inútil, com a sua gratuitidade como única garantia do seu rigor, o projecto destruir-se-ia a si mesmo à medida que se realizasse; a sua perfeição seria circular;(...). partindo do nada, Bartlebooth regressaria ao nada, através de transformações definidas de objectos acabados.
(...)
É o dia 23 de Junho de mil novecentos e setenta e cinco (...) Bartlebooth acaba de morrer. Sobre o pano da mesa, algures no céu crepuscular no quadrigentésimo trigésimo nono puzzle, o buraco negro da única peça ainda não colocada desenha o perfil quase perfeito de um X. Mas a peça que o morto segura entre os dedos tem a forma, há muito previsível na sua ironia, de um W.»


... escrita por George Perec em ‘A Vida Modo de Usar’ ( ed. Presença, 1989), num dos bons tricotados literários do século passado, e lembrado a despropósito, num daqueles impulsos da memória arregimentada atrás das histórias do ‘acrobata que se recusava a descer do trapézio’ ( pgs 56/7) e do ‘homem que riscava palavras’ ( pg 265) ; esta ainda merece outro destaque: «Cinoc, que tinha então uns cinquenta anos, exercia um curioso ofício, era ‘matador de palavras’; trabalhava na actualização dos dicionários Larousse. Mas enquanto os outros redactores andavam à procura de palavras e sentidos novos, ele, para arranjar lugar para esses, tinha que eliminar todas as palavras e todos os sentidos caídos em desuso. (...) Fizera desaparecer centenas ou milhares de ferramentas, técnicas, costumes, crenças, ditados, pratos, cognomes, pesos e medidas. (...) devolvera ao anonimato taxinómico centenas de raças de vacas, espécies de pássaros (...) variedades de bivalves, plantas não exactamente iguais(...) fizera desaparecer na noite dos tempos cortes de geógrafos, missionários, entomologistas, Padres da Igreja, homens de letras, generais, Deuses e Demónios». Só se pode escrever sobre os modos de usar a vida vivendo a vida dos outros; senão é batota.
smsantologia

As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.

Helberto Helder, ‘lugar III’, 1962
Quaresma III

Asceses alternativas…

“Allendy é de facto um homem majestoso, um cientista intrépido, um estudioso, um homem que procura relacionar a ciência com o misticismo. É um chefe um professor. E Henry é o seu oposto. Henry é um sensualista, um anarquista, um aventureiro, um proxeneta, um génio louco.
(…)
Consolo June. Acaricio-lhe o braço. Henry chora também, sentimentalmente. Subitamente, a intuição de June explode, terrivelmente aguda. «Henry, tu és bom de um modo que eu não sou capaz de compreender, e mau de um modo que me aflige. Há algo em ti que não sou capaz de me apoderar. Não posso ser escrava das tuas ideias, és um homem demasiado espiritual. Sou a mulher errada para ti.
(…)
Quando encontro Artaud, ele está nobre, orgulhoso, com os olhos loucos de alegria, os olhos de um fanático, de um louco.(…) As suas mãos apenas pairam sobre mim, sobre os meus ombros, e, contudo, sinto o peso magnético delas.
Vim vestida de negro e vermelho e aço como um guerreiro, para me defender contra a posse. (…) O seu humor é quase satânico, sem alegria evidente, apenas alegria simbólica. (…) Nos seus movimentos há uma fixidez, uma intensidade, uma ferocidade, uma febre, que rebentam em suor no seu rosto. (…) Fala obscuramente, corteja-me, ajoelhando-se perante mim.(…) «Allendy disse-te que …mais tarde ou mais cedo irás desprezar-me. Não fui feito para o amor sensual. E isto tem tanta importância para as mulheres»”

… nos ‘Diarios de Anaïs Nin’ (ed Bertrand, 1983, vol 1, pgs 130-131 e 208) envoltas nalgum sexo cru e nalguma psicanálise de cordel. Mas sem rodriguinhos de sopas de leite, nem patéticas invenções de imagem e personalidade, mais próprias dos nossos tempos.
Quaresma II

Armado em Kundera…

«Que deve fazer um romancista que apresenta aos seus leitores tipos inteiramente ‘vulgares’, para não dizer pouco interessantes? (…) Na nossa opinião, o autor deve esforçar-se por descobrir matizes interessantes e sugestivos, mesmo nas pessoas vulgares. Mas quando, por exemplo, a características dessas pessoas reside na sua sempiterna vulgaridade ou, melhor dizendo, quando, apesar de todos os seus esforços para sair da vulgaridade e da rotina, recaem nelas irremediavelmente, então adquirem certo valor típico; tornam-se representativos da mediocridade que não quer continuar como é e que visa a todo o custo à originalidade e à independência, sem dispor de meios para a conseguir.
(…)
Nada há de mais vexatório do que ser, por exemplo, rico, de boa família, de aspecto atraente, razoavelmente instruído, nada tolo, bom até, e, não obstante, não ter qualquer talento, nenhuma característica pessoal ou até qualquer singularidade, não pensar nada por si; enfim, ser positivamente ‘como toda a gente’.
(…)
Há, por este mundo, uma multidão de pessoas desta espécie, mais até do que se julga. Dividem-se como todos os homens, em duas categorias principais: os que são limitados e os que são ‘mais inteligentes’. Os primeiros são os mais felizes. Um homem ‘vulgar’ de espírito limitado pode muito facilmente julgar-se extraordinário e original, e comprazer-se sem modéstia nesse pensamento.
(…)
A segunda categoria é muito mais infeliz que a primeira. Isso deve-se ao facto de um homem ‘vulgar’, mas inteligente, mesmo se se julga por vezes (e até durante toda a vida) dotado de génio e originalidade, não deixar de albergar na alma o verme da dúvida que o rói a ponto de lançá-lo em complexo desespero. Se se resigna, permanece, no entanto, definitivamente intoxicado pelo sentimento de vaidade recalcada. De resto (…) o destino desta categoria inteligente de homens medíocres está longe de ser tão trágico; quanto muito, sucede-lhes sofrer pouco ou muito do fígado ao cabo de certo número de anos: a isto se reduz a sua infelicidade.»

… escreve isto Dostoievski no ‘Idiota’ ( ed. Arcádia, 1971, pags 518-20), mas já bastante depois da cena em que o Príncipe Mychkine – numa misoginia reprimida, ou envergonhada, certamente - confrontado com a questão:
«- Deixa-se atrair pelo sexo feminino, príncipe? Fale sem rodeios.»
Responde:
«- Eu? Bem…(…) devo dizer-lhe… nada sei de mulheres.»
Ao que Rogojine reage:
«- Ah! Sendo assim, príncipe, és um verdadeiro visionário; Deus gosta das pessoas como tu.»
Quaresma I

Lista de compras...

Branco permanente -----------------------------------------------------------------
de prata ----------------------------------------------------------------------------
Azul cerúleo ------------------------------------------------------------------------
Cobalto -----------------------------------------------------------------------------
Prússia -----------------------------------------------------------------------------------
Amarelo cádmio limão (claro) -------------------------------------------------------------
de estrôncio ------------------------------------------------------------------------------
Laca cor de garança betume ---------------------------------------------------------------
azul e castanho --------------------------------------------------------------------------
violeta azul -------------------------------------------------------------------------------
Preto marfim ----------------------------------------------------------------------------
Ocre amarelo e vermelho ----------------------------------------------------------------
Lápis-lazúli claro e escuro ----------------------------------------------------------------
Terra de sombra natural e queimado ----------------------------------------------------
Vermelho persa -------------------------------------------------------------------------
Terra de Siena natural e queimado -------------------------------------------------------
Verde cádmio claro e escuro ---------------------------------------------------------------
Verde esmeralda ----------------------------------------------------------------------------
Japão claro e escuro ------------------------------------------------------------------------
Veronese ---------------------------------------------------------------------------------
Violeta de cobalto claro e escuro ----------------------------------------------------------

... da encomenda de cores de Picasso em 13 de Novembro de 1943, referida em ‘Conversas com Picasso’ de Brassai (ed Cosac & Naify, 2000, pg 121); pelos vistos numa escrita “menos espasmódica, mais aplicada que de costume”. “Como um poema(...) todos os heróis anónimos da paleta de Picasso saem da sombra, chefiados pelo ‘Branco Permanente’”.