Os pendentes de cristine

Apesar de não se saber ao certo qual a verdadeira face e o papel do FMI na cena financeira internacional, Lagarde terá certamente vários pendentes para o ano que vem. Daí que seja importante analisar que tipo de brincos enquadrados nesta categoria ela utiliza. E então gera-se(-me) o pânico: Largarde abusa mais que a conta do brinco em pendente. Sabe-se desde tempos imemoriais que o brincos foram a maior falácia que se instalou no mundo do embelezamento feminino, trazendo consigo aquela ideia peregrina de dar uma luzinha à cara, de dar amplitude às feições, rasgos de personalidade e mais o caneco. O mundo está num virote e Cristina, podendo-se limitar a uma perolazita discreta apenas para fazer o gosto à parolice, não, de vez em quando brinda a já de si sensível comunidade internacional com um par de pendentes que descontrolariam qualquer tarado em fase de negação. O pendente lobular é um atentado ao bom gosto e um óbvio recuo no contributo que o feminino tem de dar à humanidade pós jardim das delícias. Façam-se experiências estéticas com girafas mas, por amor de Deus, preservemos a mulher senão qualquer dia teremos uma celine dion em cada esquina. Nunca será tempo perdido aquele que utilizarmos a denunciar este crime que lesa a beleza e o papel da face humana no desenvolvimento da espécie em geral e do carinha laroca em particular. Já vimos civilizações destruídas por muito menos que isto. Não sei se o sistema financeiro dominado pela especulação e a incerteza aguentará mais merdas penduradas desta forma. Disponham sempre.

treta à terça

Só há duas atitudes esteticamente decentes a tomar em relação àquilo que não se percebe: ou se idolatra ou se escorraça. Este ano o nobel da literatura foi entregue a um caramelo sensível portador dum veículo de comunicação chamado 'sueco', algo que se mostra tão incapaz tanto para fazer relatos de bola (o verdadeiro teste a uma língua) como para engatar miúdas (inclusivamente as suecas, que, como se sabe, adoram pretos subsarianos por causa das línguas que utilizam e semióticas afins). Para além dessa deficiência, um indivíduo que se dá a conhecer por um nome a roçar o desenho animado americano, decidiu introduzir-se nos meandros da indescritível arte de juntar palavras simulando pequenos partos sem dor e que nalgumas culturas peripatéticas se convencionou chamar de poesia. Dessa escolha para a vida resultaram pequenas obras de marcenaria sem madeira denominadas poemas e que foram bastante apreciadas inclusivamente por gente que tem de profissão apreciar, designadamente os apreciadores, de tal forma que o referido prémio foi dado por todos e mais alguns como muito bem entregue. Possuído por aquele sentido de cidadania responsável que me caracteriza fui em busca da expressão poética impressa do supracitado sueco, e convencido fiquei quase logo à primeira com uma tradução para a língua de cervantes & casillas que o apresentava dotado d' «um equilíbrio controlado entre o fantástico e o exacto, entre a liberdade e a consciência lógica» que me deixou palpitante, mesmo tomando comprimidos diários para controlar a palpitação, registe-se. Insuflado já com o figurão que aqui viria fazer com o último verso do ano percorri com dedicação aquela versejaria já devidamente traduzida, calculando que o difícil seria escolher, e vendo-me já a fazer de domingos a olhar para o luxuoso banco de suplentes dos lagartos. Infelizmente, não contando com a tirada em que «cada pessoa é uma porta entreaberta /que leva a uma sala para todos», não fui epifanizado pela sua escrita e isso reflecte-se num grande vazio interior que agora me atormenta, algo digno dum poeta, note-se, e inclusivamente sinto uma piquena vertigem, espero agora que «a suave pendência se vá acentuando/ e imperceptivelmente se transforme em abismo», pois dizem os especialistas que é esse abismo que separa os poetas dos vendedores de electrodomésticos, inclusivamente (aí vão dois) vou lançar uma empresa de excursões para poetas ali à boca do inferno; refeições não incluídas porque a fominha também faz parte, e hoje em dia vê-se muito poeta com a barriguinha em dia. Mas eu estou benzinho, não se tranströrmem comigo e continuação de boas festas, extensivo à Sinead O'Connor.

e boas festas aos mercados também


nº 2 do governo espanhol



nº 2 do governo português



Boas Festas

Acordo Monetário da Praia do Meco


artigo 1º

Face à inoperância do discurso da tanga, do pintelho e do marimba, e não se vislumbrando evolução favorável para o contexto internacional de desequilíbrio entre a riqueza produzida e a quantidade de activos monetários em circulação.


artigo 2º

Considerando que faliram os conceitos de moeda refúgio, moeda padrão, moeda símbolo, moeda valor e moeda gorjeta.


artigo 3º

Levando em conta que as várias dicotomias que dividiram os homens, e as utopias que os uniram, se mostram tão desactualizadas como actuais.

                                                                                                                  
artigo 4º

Tentando recolocar Portugal novamente na linha da frente daquelas Nações que souberam fazer a diferença e inclusive a multiplicação e a soma.


artigo 5º

Decidiram os signatários promover a criação duma moeda com funções de símbolo-padrão, e que garantirá uma estrita convertibilidade nas condições que este acordo expressamente consagrará.


artigo 6º

Não ficarão revogados quaisquer dos acordos já firmados pela República Portuguesa, seja sob a forma de tratados inter-governamentais, seja sob a forma de lírica comunitária, pelo que não decorrerá daqui interferência directa com nenhum sistema monetário no qual o País esteja legalmente inserido, designadamente os do euro, o que venha a resultar de qualquer modelo de aglutinação pastosa de dívidas públicas, ou o da petinga frita.


artigo 7º

Fica desde já consagrado que a base real que suporta este acordo de natureza monetária é a existência inequívoca duma quantidade muito apreciável de reservas de areia fina nas praias da costa portuguesa.


artigo 8º

Associada a esta base real e comprovável é criada uma nova unidade monetária doravante denominada: O Meco.


artigo 9º

O Meco terá o seu valor com paridade a 1 (um)  litro de areia de praia , limpa, com teor de humidade inferior a 50%, sem restrição de granulometria e portadora de uma cor entre os Pantone ® golden yellow 15-0953 TPX e o pastel yellow 11-0616 TPX, visualizado às 12 horas GMT do solstício de verão.


artigo 10º

O Meco, por ser constituído no seio dum país que faz já parte duma união monetária específica, iniciará o seu valor (paridade base) cambial 1,50 euros.


artigo 11º

O Banco Central do Meco, doravante aqui denominado por BECO, poderá emitir, até finais de 2012, quinhentos mil milhões de Mecos (500.000.000.000),  o correspondente a 500 milhões de metros cúbicos de areia fina e a 750 mil milhões (750.000.000.000) de euros.


artigo 12º

A distribuição pelos diversos tomadores firmes institucionais da nova moeda-areia, doravante designados por 'Sandiners', far-se-á de molde a que, pelo rateio, nenhum possa residir em território nacional e nenhum possa individualmente possuir mais que 1 (um) por cento de todo o volume monetário em circulação, garantindo-se assim que nenhum Sandiner possa reclamar que é demasiada areia para a camioneta dele.


artigo 13º

Os Sandiners terão acesso privilegiado e sem restrições a toda a informação que esteja disponível no BECO, desde que provem ter rezado diariamente uma avé-maria em ambiente de terço , ou oração equivalente (conforme lista anexa), com os extractos virados para o Meco.


artigo 14º

O encaixe de setecentos e cinquenta mil milhões de euros, correspondente à emissão e colocação dos quinhentos mil milhões de Mecos que ocorrerá durante o ano de 2012, ficará à disposição do Banco de Portugal sob condição de que só poderão entrar nas suas instalações funcionários devidamente identificados e algemados.


artigo 14 A

O BECO designará uma quadriga para o acompanhamento da aplicação deste depósito, composta por: um nadador salvador, um professor emigrado, um ex-governador do banco de portugal e um vendedor de bolacha americana.


artigo 15º

A posse de Mecos produzirá um direito de space-sharing virtual: por cada lote de 100 mecos o seu detentor (Sandiner)  poderá dizer que possui um naco de 1 (um) m2 de praia na costa vicentina.


artigo 16º

O controlo do volume de mecos em circulação será efectuado no último dia útil de cada mês e estará a cargo da comissão CALHAU (Contagem de Areia Livre de Humidade e com Ausência de Urina). Esta comissão será eleita anualmente pela Associação Nacional de Vendedores de Bolas de Berlim com Creme após consulta ao conselho de administração do Desmaker Consulting Group (D.C.G.).


artigo 17º

O índice Kmc, que reflecte o rácio entre o volume de Mecos em circulação e a quantidade de chapéus de sol importados da China nos meses de Abril a Agosto, deverá manter-se dentro do intervalo entre 70 a 80%.


artigo 18º

Sempre que se verifiquem valores fora deste intervalo, o BECO deverá emitir instruções de condicionamento à importação de chapéus de sol ou enviar brigadas de cães mijadores para a costa, consoante.


artigo 19º

Para evitar os riscos de confrontação cambial com outras moedas mais fracas, o mecanismo denominado 'Atirem-me Areia para os Olhos' poderá ser activado ao abrigo do presente acordo e permitirá ao BECO colocar Mecos no mercado até este se considerar satisfeito.


artigo 20º

Considera-se que o mercado está satisfeito quando já se consegue construir uma réplica das mamas da Cicciolina na Praia da Arrifana durante a maré cheia.


artigo 20ºA

Para facer face aos ataques especulativos ou outros à moeda ora criada, fica desde já autorizada a criação dum Banco que permita a estabilização dos movimentos atípicos. Este banco, o BADAMECO (Banco de Apoio ao Desenvolvimento Autosustentado de Meco) actuará no mercados sob a forma de aquisição de Mecos, não podendo, no entanto, possuir mais de 25% de toda a quantidade de moeda, salvo em situações específicas de erosão da costa.

artigo 21º

O BECO e o D.C.G desejam a todos os depositantes, subscritores, reguladores, firmes tomadores, governadores, comissionistas, cambistas e demais banhistas, um Natal Feliz, recheado de rabanadas, e o máximo cuidado com as virilhas assadas.

verso à terça

Cedo ao rasto de restos que
me tenta até ti (...)

Posso
disturbar
o teu espaço? Entrar e ficar a ver?

(...) Procuro
com a precisão de poros a
mulher dentro da pedra.

(...) Desenrolas (...) o
novelo que te veste (...)
lavo-o até
ao teu cheiro até respirar de ti
o perfume verdadeiro.

[abandalhamento de: ]

João Luís Barreto Guimarães, no poema 'Imersão', em Rés-do-Chão

- Romy, que pensas sobre esta merda?
- Não sei o que te diga, acho que saí no momento certo
- Mas acabaste por não me conhecer
- sim, foi pena, mas vejo-te agora daqui
- Mas aí há filtros, não me tocas
- Todos temos mais que uma dimensão
- Porra, isso é conversa, em cada momento só há uma dimensão
- O segredo está em não viver os momentos
- Aquele sifilítico maluco do bigode está aí ao pé de ti?
- Sim, passa por aqui de vez em quando para falar com a Lou
- Foda-se, essa gaja está aí contigo?
- Sim, mas fazia mais sucesso por aí...
- Não me digas...
- Por aqui já não resulta aquele esquema do finge que vai e não vai
- Pois é, isso aí para as mulheres é mais ingrato...
- Que queres dizer com isso, oh ajóta?
- Sabes bem, as mulheres são sinuosas por causa daquela coisa da serpente
- Olha, queres uma boa, noutro dia estive com ela!
- Com quem, com a serpente!?...
- Sim, e olha que nem me pareceu má rapariga
- Estás a brincar, a serpente era uma gaja?
- Sim, o Adão tinha mais que uma costela
- Mas isso abana todos os alicerces
- Não leves isso tão a peito
- Como assim?
- Olha, por aqui o pessoal anda calmo, noutro dia o Trostky até ofereceu um chá
- E convidou o...
- Não, estava lá a Bukharina e podia haver molho...
- Ena pá, Romy, isso era uma bronca...
- Mas aqui nós temos todos de assinar primeiro um termo de responsabilidade...
- Deus Nosso Senhor pensa em tudo, chiça...
- Sabes que aquela cena do Genesis foi mesmo verdade?
- Não me lixes, Romy...
- Estava só a ver se tu caías...
- Isso não é bonito, pá, a fé é uma coisa muito melindrosa
- Querido ajóta, tenho mesmo pena de não te ter conhecido na altura certa
- Não tens mais pena que eu
- Um dia, quem sabe
- Achas que vale a pena ter esperança?
- Uma pessoa depois de estar aqui uns tempos vê que tudo é possível
- Olha, querida Romy, então não é muito diferente daqui.

autobiografia instantânea

A bateria só tem 15 minutos, rasguei-me um pouco ao lado do picotado e saiu um pó esverdeado, típico duma soberba reprimida à base de cacetadas bem dadas de moralismo cirúrgico, mas persistente; apresento um cheiro adocicado quando virado para a luz, acre na sombra, deitei-me um pouco no pires, ao mais pequeno contacto com a  humidade real começaram as bolhas de susceptibilidade, o metal da lâmina da faca foi acolhido primeiro com desconfiança, depois com crueldade e finalmente com resignação, sim faca, para me mexerem bem teve de ser com uma faca, ria-me quando vinham para mim às colheradas. Feito em montinho - já só tenho 10 minutos de bateria - pareço impreparável para o contacto com o leite e muito menos com o forno. A minha pasta inicial é repelente, sou desajustado para amores à primeira vista, quando chega o primeiro garfo cheio de proselitismos deixo-me ir, ponham mais leite que se lixe, serei tarte, serei torta, bolo, rolo, seria o que quisessem. Sete minutos. Encaixo-me na forma fingindo ser um espírito irrequieto, o melhor que consigo é ficar com um farrapo de fora, uma pila de robespierre, aceito todos os celsius que o forno me pôs à disposição e saio de lá com um interior duro e uma capa mole, não era o que estava previsto. Faltam 4 minutos. Desenformei fácil. A travessa em calha tinha um friso doirado que me parecia não merecer. Assentei despreocupadamente, irresponsavelmente afinal, já só sentia saudades do calorzinho do forno. Aguardava-me o refrigério. Numa prateleira do meio, entre melões e requeijão, invejando a puta da mostarda sempre a ir e a vir. Esperavam que saísse de lá rijinho; pode ser que sim, pelo menos já teria a cara de broche. Dois minutos apenas. Sou cheirado. Dei conta até duma curiosidade genuína, dois elogios forçados e três esguelhas. Vai acabar a bateria, adeus, talvez venha a combinar bem com gelado de baunilha, quem sabe, ou então ponham-me muito chantilly e chamem-me foda-d'anjo.

austeridade

Ela pediu-lhe para ele descrever uma cena com os dois de mão dada a ver o luar. Ele ficou relutante pois sentia que perdera momentaneamente o jeito para escrever com as emoções ao colo. Afinal de contas ele não era um escritor, um escritor tem de saber escrever em qualquer circunstância, tal como um canalizador tem de saber desentupir um cano mesmo que a mulher lhe tenha posto os cornos. Mas ele sentiu-se desafiado, qualquer coisa lhe mexeu no cordelinho da lírica competitiva e pôs a imaginação e as letras ao caminho. Pensou nos dois com as caras encostadas, entre o encosto suave do acaso e a tangente do desejo, primeiro a tentarem distinguir a tabela periódica dos cheiros e depois, já com um cheiro comum bem constituído, a avançarem para a Corte do céu. Dá muito trabalho construir um cheiro comum mas depois ele faz muito milagre por conta própria. Um céu estrelado a dois é uma moeda seguríssima, quem a possui pode considerá-la uma recordação de refúgio. Ele, entretanto, na história, segredara-lhe de repente qualquer coisa, poderia ser um simples amo-te tanto, ou um quero-te muito, ele gostava mais dos tantos do que dos muitos, ela impingira-lhe o clássico medo aos sempres, mas acabavam fatalmente naquele riso gramatical, nem a lua, em qualquer fase que fosse, lhes impedia de brincar com as palavras, tinham-lhes perdido o medo depois dum primeiro adeus mal parido e dum regresso bem sofrido. Na história já se beijavam, mas ainda os parágrafos se conheciam pelos nomes já ela o afastara por duas vezes porque queria ver melhor as estrelas, e ele já reclamara da sua curiosidade astronómica pois nenhum homem nasceu para ser acólito de telescópio, nem para ter que concorrer com uma lua armada em disco voador. Sob as estrelas o homem sabe que é o sexo fraco, prefere as grutas desde que não tragam nenhuma alegoria filosófica de brinde ou fava. Quando deram o primeiro beijo prolongado já a ursa maior parecia ter apanhado um jeito nas costas de tanto esperar. Quando o musgo recebeu o primeiro rolar de dorsos já se gemiam palavras sem significado definido, apenas decifradas por aquele desmontador de códigos que são dois lábios húmidos organizados em flor. Quando na história ele lhe mordeu um local sem designação científica autónoma, ela - feita critica literária - disse que o romantismo estava a ir pela ravina, ele corrigiu a passagem e pôs-lhe um novelo de falangetas por uma zona que não via planetas há bastantes anos, então ela sorriu, com um sorriso aberto, um sorriso de constelação, e umas pupilas em rotação, mas agora já não consigo distinguir se foi na história, se foi na imaginação, ou se foi mesmo uma manobra da sua mão.

verso à terça

É apenas que este calor e este movimento são como
o movimento e o calor de uma mulher.

Não é que haja no ar alguma imagem,
Nem o fim nem o princípio de uma forma:

Há o vazio. Mas uma mulher em oiro puro
Queima-nos com o roçar do seu vestido

E uma dispersa abundância de ser,
Mais definida por aquilo que ela é -

Porque ela é desencarnada,
Transportando os cheiros dos campos estivais

Mostrando o taciturno e no entanto indiferente,
Invisivelmente nítido, o único amor.

Wallace Stevens, in The Auroras of Autumn (trad. de Maria Andresen de Sousa, para 'Antologia')

'Souverainirs'

A soberania é um tema relaxante. Seguindo a velha máxima de que só damos verdadeiro valor àquilo que perdemos, acho que devemos perdê-la um pouco. Essencialmente para: darmos uma boa causa aos nossos netos. Diz-se que só lhes vamos deixar dívidas, montes de velhos para mudar as fraldas, ideologias esclerosadas, auto-estradas para manter, lares e hospitais sem verbas para mudar fronhas, então para compensar temos de lhes deixar uma causa decente para eles voltarem a lutar por algo digno. Estou pois de acordo em perdermos um pedacito dessa coisa que se convencionou chamar soberania, uma espécie de domínio político sobre nós próprios, aquilo que no nosso corpo biológico chamamos de controlo da incontinência; sim, estou de acordo, por uns anos, só mijaremos quando, onde e como uma troika qualquer nos condescender, e a dita soberania passará a ser apenas un bom recuerdo, algo entre o cheiro da castanha assada e os brincos pendentes de filigrana. Renascerão assim os espíritos verdadeiramente exaltados, as almas livres virão à praça verter a sua energia, insultaremos com vigor os que nos acorrentam a vontade e então passaremos dignamente esse fervor aos nossos filhos. É, neste momento, a nossa melhor possibilidade para um legado decente: gerações de novos restauracionistas. Gente já instruída, gente que saberá insultar os nossos novos conquistadores usando várias línguas, citando inclusivamente os wagners que os pariram. Claro que é uma estratégia arriscada mas também o pior que nos poderá acontecer é tratarem-nos um poucachinho mal nos livros de história, o que diga-se, no quentinho do céu, mais ou menos purgado, será para o lado que dormiremos melhor, olhando cá para baixo, para as nossas proles a estrangularem bravamente um desses neuróticos middleuropeus esparramando-se à beira mar à espera que lhe sirvam um sacana dum besugo grelhado, ou então a fazerem-lhe uma colonoscopia com um galo de barcelos.

the sense of a pending

Estamos rodeados de dívidas eternas que apenas podemos gerir: o nosso sócrates (tão nosso património como o fado) deu um exemplo que originou uma colecção outono-inverno de vestes rasgadas, mas tem obviamente toda a razão. À semelhança da dívida que um filho tem para com os pais, dum aluno com um professor, tal como o que se passa num amor não correspondido, ou com uma vacina dada no momento certo, já para não falar do maravilhoso mundo do religioso, toda a experiência humana está cheia de dívidas eternas que apenas administramos o melhor que a nossa precaridade galáctico-filosofica nos permite nesta economia mística de meios.
[Aliás, a dívida perpétua, saberão muitos, é um instrumento absolutamente normal, equilibrado, e que se pode e deve aplicar a situações às quais se adeqúe, como num banal empréstimo à habitação (os filhos e os netos e os bisnetos que vão pagando os juros pois podem lá continuar a viver) e é um instrumento financeiro recorrente. A dívida resulta dum excedente e se falarmos de um excedente perpétuo com uma boa remuneração já não escandalizaria tanto]. Sócrates poderá até ter na manga um novo choque, desta feita, o filosófico mas, uns porque sabem que ele tem razão apenas não fica bem dar-lha, outros porque nem sabem bem o que dizer tal a fragilidade em que estão enfiados, todos em conjunto reflectem na perfeição o estado da arte: a verdade está pendente. Quando menos se sabe o que a eternidade significa mais se deve apostar nela.

verso à terça

E muitas coisas
É preciso manter, como sobre
Os ombros o peso
Da Lenha. Mas os atalhos são
Adversos. Pois dissociados,
Como cavalos, avançam os unidos
Elementos e as antigas
Leis da Terra. E há uma ânsia
que sempre impele para o desregramento. Porém muito
É preciso manter. E a fidelidade urge.
Porém nem para a frente nem para trás queremos
Olhar. Deixamo-nos embalar, como
O barco que no mar baloiça.

F. Hölderlin, in Hinos Tardios (Trad. de Mª Teresa Dias Furtado)

O Destino das Espécies

O vocábulo de origem italiana (se bem que introduzido por cá via o francês ou espanhol charlatan) ciarlatano, eventualmente fusão dum vocábulo turco dzar-la (falar ruidosamente) com cerretanus (habitante de Cerreto, local na Úmbria onde terão aparecido na Idade média os primeiros vendedores ambulantes reconhecidos pela bela da lábia a vender remédios milagrosos), deu origem no muito nosso charlatão, conceito que deverá ser tratado com uma dignidade à prova de balas, tratados e moedas únicas. Antes de tudo eu defendo a tese de que existe uma alma charlatã, uma espécie de aperfeiçoamento dum transcendental aristotelo-kantiano, que impregna todo o conhecimento e todo o relacionamento, e introduz mais uma gloriosa inversão no maravilhoso mundo da realidade: é a ilusão que fundamenta a verdade. Como qualquer categoria de primeira ordem que se preze, o charlatão tem direito a uma caracterização rica e multifacetada e é a isso que o dicionário não ilustrado hoje se vai dedicar, dedicadamente. Mais interessante que a origem das espécies é o seu destino [entradas 1407 a 1413]

charlatão carente - é o tipo de charlatão que se introduz no coração alheio procurando as suas zonas por um lado mais vazias e mais debilmente ventiladas e por outro as mais ávidas de segregar compreensão e amparo. A carência afectiva está para o charlatão como o caldinho de carne está para as bactérias. Este charlatão deve radicalmente distinguir-se do vulgar engatatão, pois não está em causa a conquista erótica do objecto mas sim apenas levá-lo à adesão a um benefício previamente bem definido do charlatão. A gestão de carências é essencialmente um processo de preenchimento de espaços e este tipo de charlatão nesse ambiente é uma autêntica formiguinha laboriosa e insaciável num boião de açúcar.

charlatão subversivo - A utilização do método subversivo é geralmente atribuída ao clássico charlatão-revolucionário. No entanto a subversão é um composto charlatânico bastante mais vasto e engloba técnicas de surpresa, sedução e visionarismo que ultrapassam a mera proposta de alteração das normas vigentes. O mecanismo subversivo introduz-se na mente do objecto charlatanado pela via da sua debilidade conservadora, pois todo o nosso lado conservador, por mais intelectualmente aparelhado que esteja, deixa sempre de fora um complexo, o complexo do carro-vassoura: olharmos para a realidade de uma forma tão tão estática e distante que acabamos por confundir a perspectiva com a moldura.

charlatão iluminado - Pode abordar-se este tipo como uma autonomização da versão visionária do modelo subversivo. Só que neste processo dá-se a verdadeira geração duma nova categoria completamente consolidada: o charlatão que consegue ser percepcionado como aquele que vê, aquele que reflecte, aquele que refracta, aquele que atrai todas as luzes do universo e as jorra num quasar de certezas mirabolantes. Ganhar este estatuto no exigente ranking charlatânico geralmente consegue-se à custa duma tripla ganhadora: convicção, sorte e ciclo astral. Quer isto dizer que as duas primeiras têm de se conseguir juntar numa órbita que coincida com a fase basbaque do povo charlatanado, algo que, diga-se, acontece mais frequentemente que a maré vazia.

charlatão omnívoro - Este clássico do charlatanismo é um valor seguro da espécie. Trata-se do charlatão que já comeu de tudo e por isso pode falar com total propriedade do que provou. Desde gémeas virgens a espremedores com sucção turbo e filtro electrónico passando por desvalorizações cambiais progressivas tudo é passível de ser considerado experiência de consumação. O charlatão que já papou de tudo um pouco tem um efeito de força gravitacional impressionante pois a curiosidade humana é a maior fraqueza desde que nabucodonosor se deixou enrabar por causa da cor dos olhos dum gato angora.

charlatão de oportunidade - Se bem que a gestão da oportunidade tenha de estar presente em todas os representantes deste catálogo, existe um tipo muito específico que se define por estar sempre à espreita. Nalgumas correntes teóricas também é denominado de charlatão-caçador, no entanto optei pela presente denominação para afastar todos e quaisquer indícios equívocos de vocação predatória.  Este charlatão de oportunidade é por definição um generalista e uma espécie de gestor de clareiras, ou seja, espreita espaços abertos mas devidamente circundados, sendo também um especialista em iscos e motivações reprimidas. Regra geral actua rápido e talvez seja aquele que faz a melhor combinação das duas performances básicas do comportamento humano (a que um dia voltaremos nesta sede do saber) a empática e a estratégica.

charlatão espiritual - Será bom deixar já aqui claro que não se trata de um charlatão especializado em temas religiosos, de forma alguma (o charlatanismo de pendor religioso pode ser exercido sob qualquer uma das técnicas aqui descritas). Este tipo de charlatão é antes de tudo alguém que parece flutuar sobre a realidade dando a sensação de tocar em realidades que o comum dos mortais apenas tem uma leve sugestão de que possam existir. Não é também um espiritismo clássico, nada disso, trata-se muito mais da utilização duma pose estética semi-etérea associada a um discurso semi-enigmático e devidamente acolitado por um ritmo de intervenção com aquela intermitência típica dos grandes sedutores: sempre ausentes - sempre presentes, sempre a dar uma resposta - sempre a deixar-nos na dúvida.

charlatão desprendido - De longe o tipo mais sofisticado de charlatão e o representante mais ambivalente , para não dizer melífluo, do charlatanismo. Poderemos defini-lo como aquele que suspende a intenção. Ou seja, nada é com ele, de nada pode aproveitar, nada lhe é exigível, nada exige, a fronteira entre a aparência e a realidade é um risco que apenas ele conhece o local e o desenho, mas nem sequer disso faz questão. A sua capacidade de convencimento brota-lhe duma noção perfeita da dependência do charlatanado: ele é o dono do fio que os liga, e o seu trabalho prévio é o de fiar essa ligação, e ficar a conhecer na perfeição a suas especificações de torção, resistência e elasticidade. Vai, no entanto, deixando sempre no ar que tudo acontece com independência  da sua intervenção, mas como que a sua vontade fosse um graal que no dia em que realmente de dignar aparecer transforma toda a lesma mole em besoiro duro.

O perigo do método

Se há coisa em que sou medianamente especialista é em escolher métodos perigosos. Aplicar a freudojunguice às situações que menos lhe fariam apelo é uma das minhas predilecções. Gosto adicional e designadamente de inventar expressões e de dizer que foram de freud (ou de churchill ou até mesmo de dostoievski, e uma ou outra de picasso, - não podem ser personagens inventados, nem sequer pouco conhecidos ou obscuros pois movo-me em ambientes onde a credibilidade é um valor essencial ) , e como é impossível desmentirem-me costumo ser absolutamente contundente & convincente, desde que seja também bom e barato o que leve no cabaz, obviamente. Claro que lido intermitentemente com a indiferença, a desconfiança, o leve desprezo, (nunca dei azo a desprezos de nível olímpico), a surdez táctica e , obviamente, a insinuação educada de pura charlatanice. De todas estas situações a que mais me gratifica é a de charlatanice, pois acaba por reconhecer um talento genuíno e, mais, existe uma charlatanice benigna que transmite uma certa empatia, a do: ah se é isto o piorzinho que me podes fazer então compro. Uma das principais lições da freudojunguice é a de que cada caso é uma teoria, ou seja, o processo de generalização faz-se do particular para o particular, sendo a própria teoria um elogio à excepção. Ora, se temos de convencer alguém e nesse processo temos de o conhecer primeiro, a melhor abordagem de entrada é a abordagem charlatã: mostrarmos como somos vulneravelmente óbvios mas deixando a portinhola aberta para o poderosíssimo «mas e se...». O perigo deste método é o maior de todos os perigos que podemos encontrar na vida: acreditarem em nós. Acabar um processo de convencimento com o estatuto de credível é como terminar uma foda com cara de preservativo. A nossa personalidade precisa como do pão para a boca que desconfiem um poucochinho que seja de nós, e mesmo que, ainda assim, venhamos a desiludir, podemos sempre quase-citar o bom do churchill pedindo que nos perdoem pois somos apenas o esperto suficiente para não parecer ignorantes.

O Padrão Louro

A melhor moeda da história é a mulher. Evitemos a indignação fornecida pela aparência escandalosa da afirmação e concentremo-nos na análise. Tudo pode ser mensurável naquilo que quisermos e, portanto: em mulheres; por outro lado todos sabemos que existem umas mulheres melhores que outras e inclusivamente a famosa lei de Gresham (também famosamente revisitada por Cavaco) pela qual a moeda má expulsa a moeda boa, ao contrário do que se supõe, nasceu da experiência dele com uma prima cozinheira que o mantinha refém à conta duma receita de entrecosto estofado com cominhos mas que acabou a coser meias para um orfanato depois de ter aparecido uma outra moça que colocava o seu entrecosto em zonas que Gresham nem supunha possuir.

Se no caso do decadente papel-moeda o seu valor sempre foi único, ou seja, uma unidade de moeda , qualquer que ela seja, vale tanto seja para comprar batatas seja para comprar fivelas para sapatos Valentino, no caso da mulher-moeda esta permite um salto verdadeiramente revolucionário na teoria monetarista pois deixaríamos de ter como únicas e incontornáveis variáveis a massa monetária, o juro e a inflação e introduziríamos uma sofisticação que facilmente se compreende quando, por exemplo, pomos lado a lado uma gaja boa com uma gaja que faça bem polvo à lagareiro, ou seja: cada mulher pode alimentar um sistema monetário inteiro. A mulher como objecto sexual puro (uma espécie de franco suíço se não quisermos perder ainda uma ténue referência ao actual sistema monetário) é uma bom índice para sintetizarmos a nossa análise. Dividamo-las em 3 tipos:  a) a mulher-sexual-activa ( ou seja, uma mulher-moeda adaptada a tempos de excesso de austeridade) ; b) a mulher-sexual-enjoadinha ( a mulher-moeda que deve ser protegida em momentos de bolha especulativa) ; c)  a mulher-sexual-tímida (tipicamente indicada para momento de excesso de liquidez). Será de fácil constatação que uma economia que se baseie num elemento de troca desta natureza tridimensional tem todas as condições para viver constantemente ajustada aos tenebrosos ciclos económicos, que mais não são que meras transferências epistemológicas do mais famoso ciclo da natureza que é o ciclo menstrual.

Serve este preambulatório para vos apresentar um economista hoje quase esquecido, Jaime Rodrigo de Alarcão, um venezuelano radicado em Lyon em meados do séc XVIII e que para além de ter sido um libertino conhecido da época ( eventualmente já poderão ter ouvido falar do 'apalpão à alarcão', um tipo de apalpão em que a mão rodeia e conforta a coxa deixando o polegar fazendo movimentos ora verticais ora circulares naquela zona em que o lombo foi justa e nalgamente promovido pelo criador)  desenvolveu aprimoradamente várias teorias em torno do conceito de mulher-moeda e deixou para a posteridade aquilo que hoje é o seu maior contributo perdido: o Padrão Louro. Para Jaime Rodrigo a riqueza e base monetária duma nação, ou dum qualquer sistema economicamente homogéneo, residia no número e qualidade de mulheres que se dispusessem à gratificação da sociedade em geral e dos portadores de pénis ( dickholders) em particular. No entanto, Jaime sabia - até por experiência libertina própria (o libertino está para a mulher-moeda como o banqueiro para o papel-moeda) - que a proliferação em quantidade e a indestrinçabilidade da mulher seriam bastante nefastas para o sistema, ao introduzir muita insegurança e decorrentemente volatilidade na equação monetária.
Foi assim com algum brilhantismo que Jaime Rodrigo ao reparar que a mulher loira se tornara um refúgio para os homens com maiores carências, pois nela identificavam uma combinação ideal de malandrice com maternalismo que os deita irremediavelmente de beiços e por terra, considerou que o número de mulheres em circulação deveria estar estreitamente indexado ao número de mulheres loiras em reserva.  Nasce dessa forma a sua Teoria do Padrão Louro. No seu primeiro opúsculo intitulado 'La force des blonde', recentemente descoberto na biblioteca municipal de Clermont Ferrand, Jaime d'Alarcão desenvolve um modelo já bastante completo e que , segundo ele, permitiria aos sistemas socio-hormonais manterem-se equilibrados, e que não surgissem nem pressões inflacionando certos elementos (como é a clássica e cíclica sobrevalorização dos tornozelos ou das portadoras de receitas de torta de laranja) , nem deprimindo excessivamente outros (já verificado também em casos relacionados com mamas pujantes, ou mesmo com mulheres especialmente dotadas para a piedade ou para as receitas de bolo de chocolate com ou sem cobertura). Este modelo tinha a virtude de ser claro e explicativo. Por exemplo por cada 10 loiras naturais em reserva (o seu palácio foi colocado como hipótese académica para banco central) poderiam estar em circulação: 25 loiras artificiais, 150 portadoras de rabo arrogante (hoje chamadas de jenniferlopez), 50 fazedoras de brincadeiras com a língua, 10 anãs, 15 estrábicas, 30 equilibristas, 150 morenas com tendência para recitar estrofes de dante enquanto as suas coxas simulavam os movimentos de reagrupamento de proas da armada invencível, 50 especialistas em sopa de cação e 30 cheesecakers. Na altura, as primeiras reacções vieram dum economista-libertino rival, o corso Victor Balestini, que considerava a ausência no sistema proposto de ruivas com jeito para pietás uma falha crítica e que iria potenciar o aparecimento das famosas madeixas que acabaram por inflacionar tanto o sexo pós-prandial, como distorceram as relações de toca com sistemas menos eficientes onde a mulher-moeda ainda era vista com desconfiança face por exemplo ao chocolate ou à sardinha.

São desconhecidas as razões que levaram à queda no esquecimento desta notável teoria do Padrão Louro em ambiente de mulher-moeda, e a viragem definitiva para sistemas de papel moeda (com o recurso ou não a padrões de reserva como o ouro ou o dólar)  acabou por nunca conseguir produzir modelos consistentes, e inclusive promoveu desequilíbrios relacionados com as disparidades de produtividade - agora amplamente tromboneadas - que evidentemente a adopção da mulher-moeda nos deixaria isentos, face à enormíssima homogeneidade de valor que se atribui , por exemplo, a uma qualquer loira com o seu par de pernas em posição de elevação de rating, saiba ou não ela fazer arroz de tomate malandrinho.

Conversa à terça

A situação trágica grega é: o que deve ser será. Daqui o maravilhoso dos deuses, que fazem acontecer o que desejam; daqui, as normas mágicas, os tabus ou os destinos, que devem ser cumpridos; daqui, a catarse final, que é a aceitação do deve ser. (...)
O poético dos gregos é que esses destinos, tabus, normas, parecem arbitrários, inventados, mágicos. Talvez simbólicos.

Cesare Pavese in Ofício de Viver (trad. de Alfredo Amorim, entrada de 26 de Setembro de 1942)

bónus:

Estás só. Ter uma mulher que fala contigo não é nada. A única coisa que conta é o abraço dos corpos. Porquê, porque é que não o tens?
«Nunca o terás». Tudo se paga.

idem, entrada de 8 de Fevereiro de 1946

bomba de triliões

seiscentos mil milhões para aliviar os descendentes de rómulo e remo, quinhentos mil milhões para sacudir a pressão dos reinos de leão e, mais mil milhão menos mil milhão, outros tantos para outras tantas paragens todas elas com história, património e inclusivamente santos protectores. Ou seja, está descoberta a nova bomba que mata dividas soberanas sem estragar a pintura: o trilião. Basicamente, juntam-se vários milhares de milhões com outros milhares de milhões, põe-se no acelerador de biliões do fmi, dá-se ao pedal e no fim temos uns quantos triliões para bombear com aspersão opcional. No fundo a finança e a politica unidas saberão concluir aquilo que a física nuclear andou apenas com tímidas ameaças a tentar dar uns jeitinhos. Ora o novo triliãozão é uma espécie de partícula que resulta da fusão entre o trilião normal e o eurobond com rating acelerado, ou seja, pegamos em dois triliões ainda acabadinhos de sair do forno, polvilhamos com 100gr de eurobondes em pó e de seguida embrulhamos em obrigações do fed. Esperamos 2 a 3 minutos, perdão, séculos, e quando sentirmos o cheirinho a enxofre é sinal que o triliãozão está pronto a ser enviado para derreter a muralha da china que entretanto tinha sido revestida de azulejos viúva lamego com motivos alusivos à antiga nota de vinte paus.

Comam bolos

O lirismo é a única fórmula com provas dadas para tratar o tema das relações amorosas. Face a este êxito num ambiente tão hostil como o do amor julgo que é no mínimo um desperdício senão mesmo uma negligência grosseira não tentar explorar a fonte lírica para abordar seriamente a relação política, querendo eu dizer com isto a relação entre o soit disant cidadão e o seu governante, tenha este último saído de eleições, da tomada pela força, ou até mesmo caído do céu. O lirismo político que geralmente vem associado na linguagem corrente à ingenuidade, não deverá de nenhuma forma confundir-se com este conceito pois tal seria, tanto na sua natureza como no seu conteúdo, algo de bastante nefasto. O lirismo político, poderíamos enunciá-lo (e vou mesmo) da seguinte forma: o governante quer sempre do bom e do melhor para os seus governados e este últimos têm de fazer um esforço por compreender os primeiros no caso destes não compreenderem os segundos. Se a mensagem cristã manda dar a outra face, a mensagem lírica manda dar a outra nádega. Neste momento poder-se-ia pensar que estávamos perante uma teoria de pendor jocoso, mas desenganem-se, pois nem sempre onde está uma metáfora anatómica sub-lombar está uma brincadeira de mau gosto, e é precisamente o que se passa na teoria que arrolámos para este texto.

A relação política tem em comum com a relação amorosa o seu equívoco principal que é o mecanismo da incompreensão. Geralmente a relação amorosa só funciona quando uma das partes assume um qualquer tipo de submissão (que nalguns casos se pode chamar de inferioridade, noutros descriminação, noutros apenas come-e-cala-te-ismo), sendo que esta submissão assumirá contornos dos mais diversos, desde os mais simples como: pronto tu escolhes o que jantamos às terças, até aos mais sofisticados como: tudo menos gostares mais das minhas mamas do que dos meus sentimentos. Ou seja, o sucesso radica em compreender onde está a pedra angular do outro, saber qual é aquele pelinho que ao ser arrancado deixamos-lhe toda a careca à mostra. Na política trata-se do mesmo. O governante é um ser muito sensível, gosta de saber que é amado, gosta de saber que quando nos doem as articulações dos joelhos nós percebemos que é para o nosso bem e, regra geral, gosta de ser retribuído , gratificado, em resumo: compreendido. A relação política deve assim ser libertada, tal como a relação amorosa, de todos os empecilhos próprios das relações causais (ou ditas científicas), o que no fundo quer dizer que a exaltação do governante é um elemento essencial do seu sucesso e do sucesso da relação em geral. Por isso, devem ser urgentemente recuperados o encómio e o louvor como formas privilegiadas de relacionamento com o poder, abandonando o discurso irónico e até sarcástico, e muito menos o crítico, que no fundo só provocam inevitavelmente o progressivo afastamento entre governantes e governados, potenciando discórdia e, no limite, muita tristeza. Tudo o que fuja disto, já se sabe, dá no que dá.

A impertinente sedução

Esta é a história de como um lapso condicionou a vida dum rapaz que até tinha algumas possibilidades de vingar na vida, designadamente na vida que interessa em momentos de dívidas soberanas, que é a vida amorosa, considerando que a moral é de um campeonato diferente e não está sob a ameaça dos mercados. Soeiro Vicente era bancário e ganhava a vida ajudando o seu patrão - mesmo que anónimo - a sacar comissões de descoberto a comerciantes dum centro comercial. Fruto dessa ignominiosa actividade foi criando uma rede de contactos que o levou sem especiais percalços a travar conhecimento dalguma forma intima com Sónia Luz, competente vendedora duma loja de relógios, moça com boa apresentação e que nem abusava do doping cosmético, se bem que não conseguia fugir da alavanca do salto alto, uma verdadeira vertigem para quem tem de sobreviver abaixo duma certa métrica. Um bancário discreto e uma vendedora de relógios parecia garantir um equilíbrio de forças com boas hipóteses de sucesso quer emocional quer até nas outras amanuências adjacentes à paixão. No entanto, Soeiro achava-se pouco atraente e, mesmo que não enciumasse em excesso , não poucas vezes fechava a agência pensando autobotonicamente em que pulso estaria nesse momento a sua Soniazinha a segurar, tentando impingir um par de cronómetros que, já se sabe , são tão falsos como o amor e os pêssegos que largam caroço. Geralmente dois suspiros e um alivio no elástico das cuecas e a ansiedade passava. Mas certo e não previsível dia, a sua irmã Lurdes deu conta da insegurança de seu irmão e foi peremptória como são quase sempre as irmãs nestes temas: tens de aplicar a sedução, mano. Infelizmente tal conselho foi-lhe dado no rescaldo duma intromissão periscópica em certos e determinados canais do seu interior gástrico e, inevitavelmente, pelas leis reveladas ao universo por um moço vienense de maus fígados, Soeiro interpretou que tinha de aplicar uma sedação em Lurdes para a libertar dessas putativas tentações com os pulsos dos clientes, e um dia, ao fim da tarde, aviou-lhe um spray pelo bucho. Sonia relaxou, inebriou, toldou-se-lhe a luz e ficou-lhe nos braços. Foi nesta altura que Soeiro pegou na gramática e com espanto reparou que se um verbo avançava para seduzida o outro se afastava para sedada. Agora, nada a fazer, ajeitar as almofadinhas, e esperar pelo despertar de Sónia: viria à superfície como uma sereia agradecida pelos feitiços do seu morfeu, ou como uma bulldozer pronta a dizer, prepara-te, meu cabrão, que aqui vou eu. No fundo o dilema de todos os homens que mesmo sem se enganarem nas terapias ficam com uma mulher nos braços. Soeiro, bancário de comissões a descoberto, afinal fora esperto, teve-a na mão, nem que fosse à base duma lapsada sedação, mas passou o resto da tarde nas compras, a aliviar da pulsão que levou nas trombas.

Citizen Claim

Afastadas as ilusões libertárias, conservadoras, estruturalistas, liberais, deterministas ou psicadélicas, (sendo que a ordem exposta é arbitrária) ou melhor ainda , sabendo como se sabe hoje que: seja: a) a sociedade como um todo; b) a sociedade como uma soma de partes; c) a sociedade como algo que nem sequer exista fora da letra impressa; d) o individuo como uma peça num puzzle; e) o individuo como uma peça numa engrenagem; f) o individuo como um ser independente e livre; g) o individuo como algo que nem sequer existe; h)  o individuo como uma marioneta sob o comando de mãos visíveis ou invisíveis - os modelos explicativos estão mais ou menos honrosamente esgotados, em qualquer destas hipóteses apenas nos resta uma solução que eu chamaria de 'misticismo acrobático'.  Ora esta corrente de pensamento (começou mesmo agorinha a correr) diz-nos essencialmente que é da junção entre a vontade do conhecido com a vontade do desconhecido que se organiza o mundo. Sendo que estas duas vontades se encontram muitas vezes em partes esconsas ou mal empoleiradas e muitas vezes mesmo em partes incertas, radica no coração do homem a alephização da coisa. Como já será de fácil previsão, o nosso coraçãozito, dada a sua natureza esponjosa, parece relativamente apto ao estica-para-ali-estica-para-lá e assim com alguma acrobacia acaba por chegar e encaixar-se em qualquer lado. Conclusão, pois todas as iniciativas humanas e dignas como esta exigem conclusões: temos de reclamar a Deus nosso senhor não só o clássico e canónico corações ao alto, mas igualmente o corações em baixo, apelando a um ajuste da nossa condição mais adequado ao desvanecer das características nobres para as quais o ser humano parecia estar talhado, desde o tempo dos primeiros mártires, pescadores de homens e inclusive decoradores de catacumbas. Assim, conseguiríamos produzir modelos de explicação do mundo mais consentâneos com o nosso aparelho digestivo e menos inspirados no nosso aparelho respiratório.

verso à terça

Força o inimigo, que é a tua estrutura, a descobrir-se. Se não pudeste entortar o teu destino, terás sido apenas um apartamento alugado.

Henri Michaux, in Poteaux d'angle (trad. de Júlio Henriques, para 'O Retiro pelo Risco')

hernianópolis


abre a boca,
respira fundo,
engole agora,
isto não é o fim do mundo
com calma,
pense só em respirar,
concentrado,
assim não vai dar,
faço imensas destas,
assim não,
se quiser segure-lhe na mão,
faça-lhe uma festa,
[segure-me antes na testa]
concentre-se na respiração,
assim não,
vá,
pode babar,
agora vou para outra zona,
não há azar
está tudo a correr bem,
não pense em nada,
[ai minha mãe]
é só uma impressãozinha,
nem doi
[rima com mariano rajoy]
não tarda acaba,
vou tirar um bocadinho,
deixe sair a baba,
à vontade,
assim não,
[deus, pátria, família, esófago]
respirar fundo,
vá,             
tão fundo não,
concentrado,
relaxado,
[decide-te cabrão]
é só mais um jeitinho,
só mais uma voltinha
[está ali, está ali]
não engole,
não engole,
agora não engole,
sim,
concentrado a respirar,
[a enfermeira não é assim tão má]
vai acabar,
já está.

res gate

Res, rei, é assim que se apresenta, em declinação sintética:  a coisa - na língua morta mais viva do universo. Apesar de hoje a coisa já estar extrema - e justamente, diga-se - valorizada, e a história mostrar-nos que tudo pode acontecer, inclusivamente coisas que nunca aconteceram, ou outras que nem podiam ter acontecido, não é excessivo lembrar que a coisa pode estar presa por fios, ou seja, pode estar para haver barraca na, e com a, coisa. A coisa, a nossa coeva res, presta-se a isso, evidentemente, põe-se a jeito, não sei se me estão a perceber, dá o flanco, a res desde que é coisa nunca soube ser discreta, e agora é isto: a res pode ser apanhada nas malhas da coisa; a res fez a cama em que se irá deitar. O nosso maior dilema será como lidar com o escândalo que vai estalar nesta res feita coisa. Olhar para ele como aquela coisa dos novos bárbaros, equipará-la antes a uma segunda vinda coisificada do Cristo, pensar nas pragas do egipto, pensar se virá dos herdeiros da grande marcha, ou dos herdeiros de bismarck, enfim há muitas formas de abordar, causalidar, prever ou simular o escândalo que pode despontar na res, tanto mais que «tranquilo é o fundo do mar que trago dentro de mim; quem adivinharia que oculta monstros divertidos?» como diria aquele outro maluco alemão dos bigodes farfalhudos. Uma coisa parece certa, a coisa não se mostrou digna da res e agora se alguém com lábia e jeito der com a língua nos dentes ao Altíssimo - que pode perfeitamente ainda estar anestesiado com aquela outra famosa coisa da liberdade como condição -  haverá bronca pela certa e um ou outro anjo vai ter de pôr as asinhas de molho à conta da escandaleira que rebentará cá no res do chão. Há até quem diga que a coisa está preta, e ainda a podem levar daqui para fora; para branquear.

made in woven #13

Inesperadamente aquele tecido com acabamentos tão intensos, tão profundos, com tratamentos dos mais sofisticados e persistentes, um dia, depois de passar por uma simples limpeza a seco, acordara cru, como um pano cru. Todas as cores o deixaram, todas as protecções, todos os efeitos especiais, tudo aquilo que o tinha feito um tecido cobiçado pelos mais afamados costureiros e pelas mais glamorosas modelos. Perdera o toque, o brilho, a subtileza, a queda suave, o passear ondulante, e era agora um pano liso, baço, teso, seco, empapelado. Nunca mais tocaria naquelas peles sedosas, nunca mais lhe passariam pelos poros os odores dos perfumes, nunca mais roçaria num corpo ardente de desejo. Tudo se fora naquela lavagem traiçoeira. Nas nódoas estava afinal o seu poder. Mesmo tendo sido fugaz a sua presença junto à vida do corpo que amava, agora estava preso na pureza estúpida do pano cru, virado para si próprio, em dobras e vincos feitos no rigor duma geometria de conveniência, feita moeda de compensação.

made in woven #12

Um porquê pode fazer uma dúvida, dois porquês podem fazer uma incredulidade, três porquês podem fazer uma indignação, quatro porquês podem fazer uma incompreensão, cinco porquês podem fazer um desespero, seis porquês podem fazer uma desistência, mas a partir do sétimo porquê revela-se aquela repetição que já só é própria do amor resistente.

made in woven #11

Os punhos e os colarinhos gastos são os principais sinais de envelhecimento das camisas. Muitas vezes podem ser substituídos e põem-nas como novas, aptas para novas etapas de vaidade e serviço. No caso do coração do homem o que se desgasta primeiro são as ilusões de correspondência, e depois são as frustrações de compreensão, no entanto, ambas as zonas são demasiado escorregadias para receber pano novo.

made in woven #10

O cerzir dos mercados: os violentos ataques à zona eurogena só podem ser combatidos com robustas fazendas púbicas.

made in woven #9

Há duas soluções para uma malha solta: ou nó ou nada.

made in woven #8

Compreender o esgaçado é meio caminho para condescender com o roto e três quartos do caminho para andar de mão dada com o nu.

made in woven #7

Quando foi alfaiate e se especializou em casacas de virar, o seu maior problema eram os bolsos: tinham de ser grandes em qualquer dos lados.

made in woven #6

Há duas hipóteses para quem se sente feito num trapo: ou torce e entrelaça com outro trapo podendo chegar a fazer de tapete, ou esfarrapa-se, mascara-se de fibra, e sonha em vir a encher almofadas. Se Jesus fosse filho de tecelão teria antes sentenciado: Panniculus eris et in panniculus reverteris.

made in woven #5

Toda a bainha pode ser folga, mas nem toda a folga pode ser bainha.

made in woven #4

Existem dois tipos de gajos chatos: os 'ferros de engomar' , que passam por cima dos outros como quem pensa que os estão a alisar, e os 'etiquetadores' , que estão sempre a indicar aos outros a que temperatura é que podem encolher.

made in woven #3

Era o seu último dia no tear. Destinara o derradeiro padrão já uns anos antes, e fora guardando os fios coloridos dos restos das colecções, alguns já bem esbatidos pela curtição do tempo; mas fizera-o com pouca convicção, mesmo que sem medo das nostalgias a vir, e apenas sabendo que um dia os usaria para tentar enganar o desespero com uma falsa bomba de saudade, e com uma mais falsa ainda bainha de compreensão. Quem depois de mim urdir, bom urdidor de mim fará, consolou-se sem razão de consolo.

made in woven #2

Primeiro fia-se depois trama-se.

made in woven #1


O hábito desfaz o monge.

o berçoulos da civilizanikas

evangelos venizelos não foi escolhido e lucas papademos colocou condições, vai daí karoulos papoulias também disse que não estava para aí virado, e muito menos samaras, pelo que se aguarda por filippos petsalnikos para suceder a papandreos; penélope mantém-se fiel a ulisses mas aquiles promete mundos e fundos com um calcanhar novo.

verso à terça (*)

No fundo da minh'alma há um terno segredo,
solitário, perdido e que jaz repousado;
mas às vezes meu peito ao teu vai respondendo,
todo a tremer de amor, vibrando desesp'rado

G. G. Byron , The Corsair (tradução de David Mourão-Ferreira)

(*) mas já quarta a fundo

gêum

Finalmente estou só. A grande questão para quem está só é descobrir se abandonou ou foi abandonado. Não há tema mais rico para uma consciência do que este de elaborar e fabular sobre a sua solidão. Melhor que a culpa, melhor que o arrependimento, melhor que o remorso, melhor que a inveja ou a vaidade, o abandono é o príncipe de todos os conscienciosos. Nada alimenta de forma tão proteica uma solidão do que deambular sobre o caminho que nos levou a ela, balancear entre vitima e carrasco, sorver em simultâneo das benesses que nos permite o determinismo e das virtudes do voluntarismo. O nosso destino e o nosso livre arbítrio juntam-se harmoniosamente na alma de quem está só. Hoje distraio-me assistindo ao grande espectáculo da minha consciência, deixando-me encadear por aquele foco milagroso que mostra o bem a vencer o mal nem que seja à tangente.

gêdéz

[Até] Deus precisou de nos apresentar os seus mandamentos. Está na nossa natureza pôr o amor acima de todos os outros sentimentos mas depois não sabemos nem como nem com quem, ou quem sabe como, não sabe com quem, e quem sabe com quem, não sabe como. É esta a visão literática da coisa, a visão prática diz-nos que tudo é possível até porque na prática podemos dizer que o amor não existe. A necessidade de nos aliarmos, essa sim, convive com a necessidade de nos isolarmos, sendo que cada uma tem o seu preço, praticamente desconhecido até ao momento em que chega a factura. Salve-se quem quiser é - uma parte da - mensagem decalógica, salve-se quem puder é a mensagem segura da sociedade das nações. Para esta procuram-se há séculos e séculos mandamentos que forneçam também uma serventia decente. Até agora parece não haver tábuas que cheguem. Deus disse para amarmos o próximo sem que isso implicasse aliarmo-nos com ele. No mundo a moral está toda por fazer.

gêssinco

Quando me voltares a amar fá-lo com mais jeitinho. Sei que não foi por mal mas da última vez deste-me demasiado crédito, eu abusei, depois perdemos o controlo à situação e agora tenho de ser resgatado por paixonetas de compromisso junto dos corações emergentes. Sabes que o coração dum homem pode ser um poço sem fundo, está destinado a desperdiçar recursos e a agarrar-se à primeira hormona que lhe cheire a especiaria, arrastando-se em cabos das tormentas como caravelas sem norte. Ama-me mas põe-me condições, faz-me uma grelha, define-me um padrão, diz-me até onde posso ir, que riscos posso pisar, em que buracos me posso enfiar. Até que letra podem ir os nomes das minhas amantes. Quando te perder outra vez quero ter a certeza que a culpa foi toda minha.

gêdois

Amo-te Dilma. Aqueles tempos com a Ângela foram um engano. Estou aqui, vês, voltei para ti. Prefiro de longe uma tropicobunda amazónica a uma eurobonda do reno. Fui atrás duma quimera empapelada e esqueci o oiro que tu já me tinhas peneirado. O trópico não faz exigências, nem põe austeridades na conta-corrente, não trocarei jamais uma boa inflação por qualquer promessa de eficiência. Estou reconvertido ao ónibus, reneguei o bus, podes vir confirmar, e ficamos só nós dois, tu e eu, no banco de trás, dizendo mal das traseiras duras dos volkswagens. Tu sabes o quanto eu sempre te achei charmosa, com ela foi apenas uma ilusão de óptica, dioptrifiquei num momento de fraqueza. Não lhes emprestes a eles, não, guarda-o todo só para mim, não te arrependerás se deixares que eu afague os teus reais, vais ver, e ela acabará por sucumbir de ciúmes quando nos vir juntos e a elogiar os teus dentinhos sexy com que um dia trincarás toda a bordinha da velha e gasta europa. Amo-te Dilma, e hoje eu sei que nunca deixei de te amar.

gêsséte

Quando o nosso amor era poderoso não precisávamos de alianças. Autosuficientes: Irreferendáveis, irrestruturáveis, irresgatáveis. Irra, éramos tudo. Criámos um nós à imagem e semelhança dos deuses. Mas vivíamos o desconforto da esmola grande. Quando a patine estalou no andor olhámos para a reserva de óleo de cedro mas ninguém quis pegar no pano. Deixa riscar. Hoje temos a clássica coisa em forma de assim, um assim à la carte, nalguns dias cozido, noutros assado, completamente à prova de emoções fortes, condimentado apenas com palavras de ocasião, mas verdadeiras alíneas de tratado; hoje amamos ao ritmo das cláusulas da conveniência, confirmando a tese de que afinal o amor é o sentimento que melhor serve todos os interesses.

gêtrês

Metralha e dor, foi o saldo. Tudo espalhado pelo chão. Agora ninguém quer limpar. Passeamos em slalom por entre os destroços. Olhamos de relance de quando em vez, mas sem lhes tocar. Brincamos ao jogo do querer e do poder. Perde sempre o poder. No homem a vontade é sempre mais forte, tão forte que muitas vezes se disfarça de possibilidade. Só tínhamos um cartucho para queimar e andámos a queimá-lo aos poucos, mas pondo um bocadinho de pólvora de lado não se fosse dar o caso de ainda termos de sacar de uma explosão. Ainda sobejou um bocadinho desta reserva. Cheiramo-la agora como que se fosse uma recordação. Pólvora seca. A nossa recordação é uma mão cheia de pólvora isenta de humidade, guardando a explosão reprimida como quem guarda um quisto de estimação.

gêvintium

Fechei bem os olhos para te ver. Tornei-me incógnito e entrei no teu sonho. Fingiste confundir-me com uma paixão de juventude. Hesitei em entrar no jogo, hesitar sempre foi o meu forte, sou o grande hesitador, faço da hesitação uma arte. O teu sorriso funciona como prova, o desenho dos teus lábios como demonstração e o teu andar faz de confirmação, afastando os contraditórios duma cabeça cheia deles. Desafino. Faço parte daquela minoria de desafinados que deixou o coração no intervalo das cordas atrapalhando-lhes a vibração. Quando me largaste para o teu amor de sempre já nem tinha força para morder os lábios; os meus. Saí do sonho de mãos a abanar. Com tudo a abanar.

gêvinte

Subiste pela minha alma adentro e puseste um ponto final no princípio das minhas frases; centraste-me a periferia; depois cansaste-me a fadiga, aceleraste-me a travagem e sussurraste-me aos berros: quem não estiver farto de si próprio levante a perna e dê uma braçada em frente. Foi então que gaguejei um assobio e assoei duas lágrimas. Palavra de mentiroso que estou desejoso de te ver pelas fuças, abraçar-te os joelhos e ajoelhar-te os ombros. Quero agradecer-te por tudo o que não me fizeste, desculpar-te todas as inocências. Não guardei nenhum dos teus segredos, não confiei em nenhuma das tuas inconfidências. Dir-te-ei sempre a verdade principalmente quando não me for possível.

verso à terça

Oh, bem-aventurados fingimentos,
Que nesta ausência tão doces enganos
Sabeis fazer aos tristes pensamentos!

Camões, Luisvazde

os três porquinhos

A loba Merkalina chegou justiceira à borda da floresta e viu a casota do porquinho Calotondreos acabada de construir em palhinha do Pireu colada com leite fermentado. Encheu os fartos peitos de ar e metade da palha voou pelas espumas do Egeu, pondo Calotondreos a correr de alívio pelos montes abaixo porque já estava farto de palha. Na louca perseguição que se seguiu, a loba Merkalina encontra a cabana que o porquinho Gaspar tinha conseguido construir à pressa com corticite embebida em baba de caracol. Saca imediatamente do seu famoso fôlego do Reno e, num ápice, a corticite vira torresmo pondo Gaspar e Calontondreos, que entretanto aí se tinha refugiado para passar o são martinho, a correr desvairados pela pradaria a caminho dum cadafalso com revestimento a sumaúma. Eis quando já quase sufocada pelos calores das acelerações a loba Merkalina dá de focinho numa casota em bela alvenaria da Provence, cores cálidas e arvoredo em redor, como que saída duma cezanneada ao entardecer. Lá dentro ouvia-se o ruído tricotado da roca, dois acordes de nemequittespas, e um odor camomiliado. Lesta espreitou pela fresta e foi levada pela comoção. Uma cena linda e pura atravessou-lhe o coração como um obus de ternura: o porquinho sarkozinho derramava uma lágriminha no colo abençoado da bela e doce Brunilde. Merkalina ainda subiu arrastada à chaminé, ainda lançou a corda com os restos da sua impiedosa severidade, ainda franziu a sua austera fronha, mas sucumbiu à vergonha e aos latidos de mel do leitãozinho petiz embrulhado em flor de Liz. Recuou, deixou a raiva passar, esqueceu Calotondreos e Gaspar, alisou o pelo reluzente da pata, e à porta deixou um enxovalinho de luxo: um eurobonde de prata e uma fonte de porcelana com repuxo.

The dark side of the wool # n + k


trabalho, conhecimento, crédito.
pastor, prado, lã.


exploração, charlatanice, especulação.
lobo, palha, borboto.

verso à terça

Pastai então, povos mansos, pastai!
Não vos acorda o clamor da honra.
Os dons da liberdade a um rebanho
À matança ou tosquia destinado?
Vossa herança é, por todo o sempre,
O jugo de chocalhos e a aguilhada.

Aleksandr Puchkin, in Ermo semeador da Liberdade (Tradução de Nina e Filipe Guerra)

Os grandes baluartes da civilização; uma actualização.


O Dicionário não ilustrado sai do armário (salvo seja) - as portas já estão destinadas a lenha para a lareira - e dá a sua contribuição para a compreensão do mundo que nos rodeia e inclusive penetra. (entradas 1396 a 1406)


Representatividade - mecanismo de índole peripatética que permite ao acto eleitoral concorrer com o acto sexual na sua performance masturbatória, ou seja o político está para o eleitor como a palma da mão está para as bordas da coisinha.

Equidade - variação do conceito de equinidade destinado a que as mulas possam pensar que são cavalos mesmo sendo tratados como bestas puro sangue.

Retroactividade - instituto legal que permite ao passado tornar-se futuro sem passar pela casa da partida mas não estando garantida a dispensa da prisão.

Igualdade - princípio de registo quimico-filosófico que determina a possibilidade de toda a essência humana poder esquecer os dilemas da existência ou da substância e encarar com tranquilidade a sua dissolução total na mamiferização do ser.

Presunção de inocência - misticismo jurídico que permite ao estigma ser promovido a chaga sem o pagamento de custas.

Função pública - tipo de desperdício que ao não ser enquadrável nas competências de reciclabilidade da sociedade ponto verde caminha alegremente para o aterro vermelho.

Direitos adquiridos - tipo de direito que nascendo torto só pode entortar mais.

Soberania - conceito fluido da ciência politica que determina que o dono do charco é o que tiver a mijinha mais amarela.

Voto - efeito sufrágico-decorativo que embeleza a ranhura das urnas com fundo falso.

Responsabilidade cívica - componente fundamental da ética republicana que permitiu aos sacos azuis que antes tinham dinheiro sujo hoje tenham facturas imaculadas por lançar. As imoralidades do excesso deram lugar às imoralidades da falta.

Obrigação fiscal - Receita especial de Empadão do Contribuinte que se obtêm juntando duas doses de sodomizante com uma de fellaciose.

Oração

Dai-nos Senhor outra bolha especulativa

E entretanto

num corte inglês perto de nós há uma semana de moda íntima. Nos tempos em que a intimidade foi posta de lado, dado que o importante agora é a coisa publica, felizmente a cadeia dos nuestros hermanos vem relembrar-nos que há um íntimo dentro de nós que deve ser acarinhado e inclusivamente tornado mais público, como que demonstrando que o público e o íntimo estão afinal de mãos dadas nesta espuma austera dos dias. Ora o íntimo austero pode e deve ser um exemplo para o público austero. Para quê um folho onde pode estar uma renda, mas quê uma gola onde pode estar um fio, para quê um quadrado onde um triângulo parece ser bastante. Para quê um lombo se podemos ter uma cintura. Ao sabermos decorar a nossa ( leia-se: delas ) intimidade daremos um sinal para a coisa pública, e esta poderá aparecer aos olhos de todos coberta por uma capa sedosa e brilhante mesmo que tentando disfarçar a carcaça decadente e chocalhante em que se transformou. Por último, as técnicas da moda íntima são igualmente uma lição para os poderes públicos: escondem sem esconder e mostram sem mostrar. Mas é ao povo confiscado que poderão dar uma lição ainda melhor: aprender a fodê-los só com o olhar. The last frontier of the citizenship.

verso à terça

Depois de nós, não é certamente o dilúvio,
e tão pouco a seca. Com toda a probabilidade, o clima
no Reino da Justiça, com as suas quatro estações, será
temperado, de modo que um colérico, um melancólico,
um sanguíneo, um fleumático poderão governar por turnos
de três meses cada.

Iosif Brodskii , in Paisagem com Inundação (tradução de Carlos Leite)

DSM VIII

A Perturbação de Excesso de Resistência foi uma patologia especialmente desenvolvida em Portugal no rescaldo da crise das dívidas soberanas no início da 2ª década do século XXI. Apesar de se associar inicialmente a focos localizados em torno de pacientes com o Síndrome de Auto-responsabilização, rapidamente alastrou para os mais debilitados pelas Perturbações de Privação de Subsidácios. No grupo mais exposto às Perturbações de É-Bem-Feito  a sintomatologia acabou por evoluir e juntamente com os que padeciam das Perturbações do Tem-Mesmo-de-Ser acabaram por apresentar de forma generalizada um historial de episódios intermitentes da compulsão resignativa de resistência associados a alta capacidade dissociativa, tendo sido inclusive encontrados casos de Compreensão Benigna dos Excessos de Poder, uma verdadeira antecâmara das perturbações esquizoafectivas. A prevalência aponta para índices acima dos 50% em espectadores dos canais de noticias por cabo com apresentadores de laço e 65% nos degustadores de mexilhão enlatado em vinagrete. Um subgrupo curioso acabou por se destacar e ficar conhecido como a Pananoia Orangette, assim designada por estar relacionada com comportamentos de base amarga mas socialmente adaptados de forma doce e responsável por forma a esconder a capacidade subversiva que inunda a alma humana desde que Abraão se dispôs a testar a sua fé com o pescoço de Isaac. A Perturbação de Excesso de Resistência acabou por evoluir para uma Anti-Cleptomania de segunda geração, quando o Estado aboliu todos os Impostos e instituiu a figura dos Repostos, ou seja, devolvendo-nos tudo com juros a partir do ano sagrado de 2278, provocando um surto de donativos aos partidos políticos e a todas as outras instituições de protecção da natureza, naquilo que ficou também conhecido como a Perturbação de Regresso à Fase Anal.

orangette #2

3/4 laranjas; 250 ml de água; 250 g de açúcar; 2 cravinhos; 180 gr de chocolate negro em tablete

Preparação das tiras de laranja:
1. Partir as laranjas em quartos e retirar toda a polpa, mantendo ao máximo possível da parte branca. Cortar os quartos em tiras com o máximo de 1 cm de largura. Colocar as cascas de laranja numa panela com água suficiente para cobrir. Levar a ferver. Escorrer toda a água. Repetir 3 vezes este procedimento a fim de retirar o amargo da casca. Reservar.
2. Fazer uma calda com água, açúcar e cravinho. Levar a levantar fervura até que o açúcar se dissolva completamente. Reduzir o lume para muito brando, juntar as cascas de laranja e deixar que as cascas cozam durante cerca de 1 hora até ficarem translúcidas. Retirar as cascas de laranja com uma escumadeira.
3. Colocar as cascas de laranja a secar, sobre uma grade ao sol (1 dia) ou no forno (na grelha do forno a 140ºC durante 1,5 hora).

Finalização com o chocolate:
4. Derreter o chocolate em banho-maria e, em lume muito brando, misturar com uma espátula até que todo o chocolate tenha derretido. Desligar o lume.
5. Mergulhar as tirinhas de laranja no chocolate, escorrer o excesso e colocar sobre uma grelha ou sobre papel vegetal de cozinha até secar.