My "whatever" side of the soul

(e já com o pescoço no cepo)

® JL, 97. Aguarela sobre papel. Colecção particular.
Uma questão de rimas

Não fora a tentação incontrolável de começar o dia experimentando o novo bâton Addict da Zulmira e diria que tudo voltara à mais perfeita e razoável normalidade. Bom, à Maria dos Prazeres lá do escritório olhei-a como se fosse a primeira vez: aquelas pernas a espreitar por baixo da secretária afinal não são roliças mas gordas e as, até ontem, angelicais madeixas loiras têm mais raízes à vista que um mangal em maré vaza! Ainda me passou pela ideia convidá-la a uma voltinha rápida de fim de tarde a ver as novidades da saison ali mesmo pelo ElCorte mas acabei por preferir o subestimado Umbelino. Nunca tinha reparado com atenção no moço (vê? não disse 'gajo'): o moreno mate a emoldurar os olhos cor-de-água e o sorriso tímido de "gato-das-botas" da pixar só me faziam vir à ideia que, entre três encadernações e vinte e quatro fotocópias de remessas congeladas, teria de seguir o conselho que um dia me dera e trocar os suplementos e brindes dos jornais pelo Gógol. Sempre tive um fraquinho inexplicável por intelectuais, admito. Aprecio-lhes a palidez e a fragilidade muscular, estimo-lhes a resiliência e a tosse encavada, louvo-lhes a paciência para a música minimalista ou atonal e fascino-me com as frases longas, pensadas, elaboradas como facas de papel a cortar a respiração. Quando o disse ao Lino (gosta que o chame assim), ainda meio envergonhado por esta súbita confidência, respondeu engolindo à pressa o pastel de bacalhau já a pingar-lhe gordura através dos dedos para a camisa "Sem ti...". Sem palavras, ainda fui à procura de um guardanapo para sacudir a nódoa maior mas só consegui entornar-lhe o café no colo antes de ele me ter dito "E de súbito desaba o silêncio." Respinguei logo "Não foi o silêncio que desabou, foi o óleo!". Olhou-me compassivo, com aquela infinita tolerância que se reserva aos pobres de espírito ou às crianças "É um silêncio sem ti, sem álamos, sem luas." Resignei-me à epifania do impensável: o homem era um poeta! E subitamente todas as vezes que, no passado, nos cruzámos, agachados, a substituir o tabuleiro das A4 no fotocopiador ou, empoleirados, a pregar punaises no placard das excursões a Torremolinos tornavam-se agora momentos de uma história única. Peguei-lhe nas mãos e ia revelar-lhe toda a minha compreensão quando o ouvi dizer "Só nas minhas mãos... ouço a música das tuas." Engoli em seco, o homem era um artista! Por alturas do Euro já tinha lido umas rimas daquelas num pacote de açúcar, acho eu, e devia ser bom porque lá dizia que eram de um tal Andrade (até penso que o primeiro nome era Eugénio mas não conheço muitos nomes de jogadores). E foi aí que comecei de novo a marear e a ver tudo vermelho: lá fora o sol caía tão depressa como se caísse no "coração do dia".
My "whatever" side of the soul

(dedinhos cruzados atrás das costas)

® JL, 97. Tinta da China e aguarela sobre papel. Colecção particular.

Traz-me os sais...

O primeiro, e não menor, dos problemas com que me confrontei ao acordar foi olhar-me ao espelho e dar de trombas com o cromo feminino que lá se plasmou: uma gaja ruiva ou loira, sei lá bem!, de cabelo espetado, pintalgada por milhões de sinais e sardas e práì 1,80 m completamente recheados de matéria orgânica. "Chiça", pensei, "isto é o raio do meu negativo ó quê?! se ainda fosse a sacana da Barkin... a Marceau não? nem a Garbo???" Depois descobri que não só tudo quanto as calças me apertavam na anca (até isto vim a descobrir no meu corpinho, antes só as conhecia pelo toque) me sobrava na cintura (e foi aqui que compreendi finalmente o veneno contido no recadito "tens de vender calças e comprar **") mas ainda que a camisa só servia se ficassem abertos os 3 ou 4 primeiros botões. Por outro lado a filha-da-mãe da gravata atada ao pescoço também não ficava nada bem que a minha ropinha de trabalho não é porra (só esta! até o Tiresias teve direito à indignação ou não?) nenhuma de versão feminina by YSL de smoking e aquelas duas calotes esféricas a darem cabo, a empurrão, das casas dos botões também não correspondiam à minha ideia de pinças de gravata. Não chegou a ser preciso calçar os sapatos nem olhar de novo o espelho para ter a certeza de me ter tornado uma obra-prima rauschenberguiana digna de destaque na colecção do Guggas. Aguardava-me, no entanto, a mais cruel das surpresas: a Zulmira não só não pareceu ter notado o que quer que fosse de novo em mim como até começou a manhã com um convite bem mais provocante e criativo que os do costume o que me levou a concluir da justeza do almodóvariano preceito que reza (ou lá que é!) "todas las chicas son, aunque un poco, lesbianas". E quando ao fim da tarde, como se não bastasse tudo o resto e como que prevendo que ainda tentava recuperar-me do efeito conjugado de umas cervejolas a acompanhar os caracóis e do déficit de desidrogenase alcoólica próprio das gajas, a Zu me apontou um "Shirley Temple" preparado a desvelo, baralhou-se um pedacinho quando lhe gritei "Nem pensar! Só me faltava agora que se soubesse que bebi isso e bato com a lombar no DIAP a prestar declarações!!!" Foi, com efeito, um dia terrível: se da visão da cópula herpêntica tinha resultado a metamorfose (voltem, Kafka e Crony... perdoo tudo...) que me atirou para o abismo de Eva (antes uma Afrodite agachada, não?) não foram necessários sete anos (nem sequer sete dias, nem sete horas, a bem dizer) e novo encontro erótico para constatar a incapacidade de suportar, por mais um segundo que fosse, a tortura da visão daquela redezinha ridícula a ocultar uma parte do rosto da moça de olhos mortiços e boquinha em esgar amorangado. Já muito mareado e a ver desenhos labirínticos em tons de azul , pedi num último esforço antes de me apagar "Traz-me os sais..."
Anna K.



My something Tiresias side of the soul
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A dra Girassol finalmente foi franca comigo e disse-me «o seu problema é que não está a conseguir soltar o seu lado feminino». Eu já calculava essa coisa de que todos temos um bocado de ‘gaja inacessível’ dentro de nós, mas daí a dar ao manifesto o nosso recôndido gineceu ainda vai uma grande distância. «Pois olhe quem não conseguir demonstrar um bocadinho de dupla personalidade nem é digno de expor a alma á cusquice alheia» Isto de homens a escrever fingindo-se de mulher já foi chão que deu uvas, mas o homem talvez também tenha direito à fama por pôr a sua mama ao léu, ou a ameaçar que se vai mandar para debaixo dum comboio se não dançarem com ele uma última valsa. «Talvez não seja necessário pôr madeixas louras mas a quebra explícita de uma qualquer virgindade parecer-me-ia um bom sinal da sua parte» Cheguei a lembrar-me de fazer uma entrevista sonora à Barbara Guimarães (porque o Luís Pacheco agora já foi caçado noutro blog com mais verba), depois fui levado até a tentar pôr aqui uma receita muita boa de pataniscas, mas ando indeciso. «Isso da indecisão já é um bom prenúncio de que o seu lado feminino está prestes a desabrochar». Aqui a dra Girassol esticou-se e deu-me uma deixa para um trocadilho estafado, mas os votos de castidade verbal ( é só meia dúzia de dias nada demais) impedem-me de tamanha alarvidade, convenhamos que isto dum homem ter um lado feminino está-me a deixar desaustinada, perdão, meio perdido. Devem ser complexos marialvas, receios de espongiformização total do cérebro, saudades de apalpar miudas no disco-sound, não sei, isto não me está a ser fácil. Ser gaja, nem que seja só um bocadinho, não é fácil, mas pronto, sempre tem o lado positivo de passar a ser a nossa vez de rebentar as borbulhas das costas e passarmos a sentir o prazer nove vezes mais que o homem. Eu seja ceguinho se não estou a fazer isto de livre vontade.
Ó Ferreira, agora podes ir para dentro. O dicionário não ilustrado deixando a massa e bebendo só o caldo para fazer uma cura do Reinaldo. Os reais problemas do país nas entradas nº 1019 a 1026

O Iva da polpa de fruta – O peso de estado será sempre excessivo enquanto a polpa da fruta não for tratada da mesma forma que a bela da pinga. A grainha do pêro não devia ser enteada de nenhuma reforma fiscal.

O capachinho de Fernando Gomes – Nunca poderemos ter políticos de se lhe tirar o chapéu se existir o risco efectivo de atrás do dito vir um enxerto capilar. Felizmente existem as permanentes de Mª de Belém para garantir a dignidade do regime.

O facto de Armindo Rodrigues ser o único verdadeiro poeta do amor conjugal – Demonstra que a mulher portuguesa é refém dum paradigma meio florbelospanquiano e meio nataliocorreiano: Ou inspira ou arfa. O casamento é um broncodilatador. Evite-se a opção xarope.

´Cona’ ser palavrão – Desperdiçar palavras com tão boa rima por meros preconceitos de classe e de anatomia anatemizada, far-nos-á viver eternamente apenas com o rabinho entre as pernas.

Já termos sido refugiados sem o saber – Apesar da nossa economia estar para a competitividade como a voz de Elisa Ferreira para o fado, uma percentagem do PIB nunca mais foi a mesma coisa depois de Guterres.

Pedro Barbosa não ser Jennifer Lopez – E é por isso que nem sempre um rabo de croissants bamboleantes garante uma festa hormonal. Vivemos assim em esquema de ‘paradinha’: taxas para um lado, cobrança para outro.

Não darmos o devido valor a Maria de Medeiros – Porque se todos esbugalhássemos os olhos assim até podíamos apreciar os últimos 10 anos como se fossem supositórios bem-u-ron infantil sem precisar de pestanejar

Noronha da Costa não conseguir fazer um desenho em condições – A nossa sina é termos constantemente de comprimir o pixel para sobreviver. Desfocar é uma solução estética de recurso para ludibriar a insuportável nitidez dos dias.
Reinaldo Ferreira X

Sonha a palavra,
Detesta a frase,
Sabe o encanto
Do que é só quase.

In ‘ Chopinesque’ de R. F.

Por acaso não gostava de ter posto esta quadra aqui; Mas é “aberta qb a permitir muitas leituras» disseste-me - perdão: ‘disse-me’- e então hoje fez lembrar-me aquilo que todos temos de berengários dentro de nós, não não é de hereges, a heresia não é compatível com a ignorância, é apenas a nossa apetência parola ao simbolismo, a nossa tendência para nos encostarmos e satisfazermos consoladamente com o misterioso, o quase real, e depois quando um Aquino nos vem falar de transubstanciações, apetece-nos logo dizer: façam um filme com isso e depois eu logo penso no assunto. Sonhar com Deus - meio palavra, meio comichão- como um tal de ente diáfano, mistura esotérica de energia e bondade – e exotérica de chuva e sol – fazendo malabarismos com protões, é uma solução de recurso, de sobrevivência à sombra, é o ‘religare’ despachado com ‘marca branca’, correndo o risco de não perceber que ‘Visus, tactus, gustus in Te fallitur’,/ sed auditu solo tuto creditur” ( felizmente que um post com citações em latim serve para limpar meia dúzia com ordinarices ) é uma chave para compreender a nossa condição de passarinhantes. Mas podemos ir assobiando de mãos nos bolsos porque até o Catecismo nos diz que a “Eucaristia e a Cruz são pedras de tropeço” antecipando a nóia da natureza e dos dias. Mas Deus até fez isto engraçado, digam lá que não. Quase. Detesto frases, porra, senão agora - e se me lembrasse bem - até citava uma do velho Kirk que dizia precisarmos do passado para compreender e do futuro para viver , ou qualquer merdum similis, e que até nem tem nada a ver com isto se é que isto tem a ver com alguma coisa.
Reinaldo Ferreira IX

Compra-o; mas compra-o todo,
De modo
Que não fique sopro ou brisa
Nas mãos de um concorrente
Incompetente.

In ‘O essencial é ter o vento’ de R. F.

Às palavras leva-as o vento como sabemos, mas depois se não houver quem o compre elas viram poeira. A Politica é igual. Só que já nasce poeira. Concorre com folhas secas e com ácaros. Tem vergonha da competência do pólen. Bem-aventurados os que sabem espirrar selectiva e despudoradamente. E os barcos à vela.
Somos todos filhos dum orçamento rectificativo.
Reinaldo Ferreira VIII

É pouco tudo o que eu vejo,
Mas basta, por ser metade,
Pra que eu me afogue em desejo
Aquém do mar da vontade

In ‘Da margem esquerda da vida’ de R. F.

Mas controlem-te pá. Reparem que os impostos vão subir, o desejo vai levar com a taxa máxima, toda a lasciva vontade vai ter retenção na fonte e todo o sexo será pago por conta. Vai deixar de haver incentivos ao engate indiscriminado e a evasão será penalizada com leoninos acordos pré-nupciais. A castidade será elevada a dedução à colecta, a abstinência obterá crédito de imposto e só não digo para se tornarem eunucos porque o iva dos capamentos não é de 5%.
Reinaldo Ferreira VII

Se eu soubesse que o olhar de toda a gente
Te via, por milagre, repelente,
Que fugiam de ti como da peste...

Nem assim abrandava o meu ciúme,
Que é afinal o natural perfume
Da flor do grande amor que tu me deste.

In ‘Se eu pudesse guardar os teus sentidos’ de R. F.

No dia em que o ciúme desaparecer, o amor passará também a ser uma percentagem do PIB. Virá então uma comissão analisá-lo e chegará à conclusão: temos de cortar rente, sacrificar amizades e aumentar nas cobranças. ‘Apertaremos o cinto’ e nunca mais ficaremos ‘com as calças na mão’. No limite amaremos todos por igual em regime de duodécimos. Ninguém se ficará a rir de ninguém. Para além disso os 6,83 de deficit parece-me um número bem conseguido dado que esgota todos os algarismos atrevidamente arredondados – repare-se que o ‘seis’ é o ‘nove’ ao contrário por muito que nos possa custar e fazer mal às costas, e o ‘zero’ praticamente nem é algarismo tanto mais que foi descoberto pelos árabes – e eu cá quando tiver uma carência afectiva ela também será de 6,83% do total de carinho disponível no mercado (para além disso, o deficit, ao manter os ‘três’- mesmo que do outro lado da vírgula - dá-nos um sinal de esperança, pureza e decência). Estarmos feitos num ‘oito’ parece-me já duma evidência incontornável. O consolo é que deitados tenderemos para infinito.
Reinaldo Ferreira VI

O riso rido
É dor que finge
Ter-se sorrido;
Ou azedume
De ser excedido.

In ‘Acordes gastos’ do R. F.

A época futebolística de 2004/2005 é passado. Agora que já estamos praticamente na época 2005/2006 antevejo-a calma, já nenhum dos ‘grandes’ vive na ansiedade de ainda não ter ganho neste milénio, e Peseiro pode desenvolver o seu trabalho serenamente como se do outro lado estivessem 11 carmelitas descalças, o árbitro fosse um eremita e os fiscais de linha franciscanos. O campeonato será certamente como uma via-sacra, perdão, como um passeio de escuteiros por um mosteiro beneditino. Sem azedumes.
Para o Azul Cobalto,
como se fosse um 'cabinet d’amateur'.


Un cabinet d’amateur n’est pas seulement la représentation anecdotique d’un musée particulier ; par le jeu de ces reflets successifs, par le charme quasi magique qu’opère ces répétitions de plus en plus minuscules, c’est une œuvre qui bascule dans un univers proprement onirique où son pouvoir de séduction s’amplifie jusqu'à l’infini, et où la précision exacerbé de la matière picturale, loin d’être sa propre fin, débouche tout à coup sur la spiritualité vertigineuse de l’Éternel Retour.

In ‘Un cabinet d’amateur’ de George Perec, ed. Seuil, pag. 19.
Reinaldo Ferreira V

"Enfim, eu não sou nada,
Que há muito já se não propaga a mim
O calor de uma anca,
E o meu fresco conteúdo
Não encontra uma boca
E uma sede não estanca."

In 'Ânfora fui' de R. F.

Esta não comento. É muito feio aproveitarmo-nos do mal dos outros. E além disso todos os náufragos têm direito a uma respiração boca a boca. Países e répteis de pequeno porte incluídos.
Reinaldo Ferreira IV

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão,
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.

In “Receita para fazer um herói” de R. F.

Se o nariz de Gogol cá andasse talvez ainda pudéssemos ser governados apenas por cheiro. Assim resta-nos passar o tempo à procura dum capote que nos ponha a coberto dos desvarios da despesa pública e ir desfrutando desta alegre escravidão que é sermos almas livres dificilmente transaccionáveis. E eu ainda aspiro a uma pachorra anatómica que me faça escrever textos com pés e cabeça. Sendo certo que me consolava mais rindo com Narciso Miranda do que com Jorge Coelho.
Reinaldo Ferreira III

"Ninguém a virgindade lhe roubou
Depois de um saque - antes a deu
A quem lha desejou,
Na lama dum reduto,
Sem náusea mas sem cio,
Sob a manta comum,
A pretexto do frio."

In ‘A que morreu às portas de madrid’ de R.F.


O grande sonho de Guterres, sabemos agora, não era ‘ser’ primeiro-ministro mas sim ‘ter sido’, e o sonho de qualquer refugiado neste momento é que estes versos sejam mesmo verdade, porque, pelo andar da carruagem, do frio não vão escapar. E tal como todos os sobreiros agora invejam a fama dos que sucumbiram no cadafalso-lux da Herdade da Vargem Fresca, não haverá indigente que depois deste verso não sonhe com uma virgem fresca e roliça, esteja ela em Benavente, na Chamusca ou na Pocariça, mas aguentem um bocado que eu agora vou à missa.
Reinaldo Ferreira II

"Feliz quem pode parar
Onde a certeza é certeza
E pensar é só pensar!"

In ‘Que estranha, a nossa verdade’ de R.F.

Mesmo que por vezes pareçamos enfiados no enclave dum imbróglio de sobreiros, dum chafariz de autarcas, duma pseudo-pedagogia-cacofonia-sexual e duma proto-constituição-supra-nacional-infra-racional-intra-anal aparecerá felizmente sempre alguém a lembrar-nos: é pá deixem-se disso que não tarda é Natal.
Reinaldo Ferreira I

"Sei que a ternura
Não é coisa que se peça,
E dar-se não significa
Que alguém a queira ou mereça.
(…)
Eu preferia
(…)
Que, contra as leis recolhidas
(…)
Tu me desses a ternura que te peço;
Ou que, por fim, reparasses
Que a mereço."

In ‘Sei que a ternura’ de R.F.

Merecer é um verbo tão estúpido e ressequido como querer. Mas ninguém consegue sobreviver sem se considerar minimamente merecedor de qualquer coisita e sem exercitar a vontade nem que seja para beber um ginger ale fresquinho. Se conseguirmos esquecer por momentos os clássicos russos – tarefa fácil por sinal, desde que não estejamos a mijar sangue – e soubermos suspirar por um afago como a pele reclama o after shave depois da ultima lâmina cumprir o seu dever, Deus só tem mesmo é que se chegar à frente e pôr no nosso caminho um jackpot de festas no cabelo. Ou então tinha-nos feito carecas e o herói do ‘Código daVinci’ era vendedor de capachinhos. Mas isto já sou eu a falar.
Mas depois ao som de 'sexy mother fucker' do Prince não resisti, merda; ou do dicionário não ilustrado desta vez a parir-se com música desbragada; Sometimes our soul could also be a big hole, or a shaked ass; I guess. (sofisticados estados de alma nas entradas 1010 a 1018)

Neura – Estado transitório da natureza humana algures entre o fim do cerco a Estalinegrado e o Juízo Final, momento este em que todo o contra-ataque será condenado à fogueira eterna.

Ignorância idílica –Sonho de qualquer amante do futebol em ver Hugo entrar em campo e assim desmontar o preconceito dos detractores do referido jogo confinados à ideia estafada de que aquilo são apenas 11 de cada lado, ou 22 atrás duma bola. Com Hugo em campo teríamos a garantia que nenhuma destas condições se verificaria.

Que-se-fodanço – Forma de alheamento metafísico em que tanto nos faz ser a baby-sitter a tomar conta dos miúdos enquanto vamos ao cinema, como deixá-los a ver vídeos com sprints de grande diagonal do Paíto e centros milimétricos do Miguel Garcia.

Depressão – Estado de degradação da alma que se desenvolve como defesa biológica do sistema linfático, momentos antes dum filha da puta dum centro partir para dentro da área do Sporting.

Só-lá-vai-com-mais-vaselinamento - Alternativa que mantém qualquer cidadão com três quartos de dedo de testa após a entrada no relvado do esclarecido desequilibrador Nicolae, ou a audição da intervenção fulgurante, vertida e derretida pelo ministro Manuel Pinho, e que exprimida vai-se a ver dá tanto sumo como a semente do dito; pinhão claro.

Carência afectiva – Momento de instabilidade emocional que se vive na hipotenusa do famoso triângulo epistemológico que tem os seus vértices na mama destapada da Sofie Marceau, numa saída do cabrão do Ricardo a um centro, e na definição da politica de portagens do governo

Desespero ontológico – Estado crítico quando descobrimos que por detrás duma finta jamais concretizada por Sá Pinto afinal não está o rabo bamboleante da Jennifer Lopez

Puta-que-os-pariudice – Estado peri-raivoso duma alma tendencialmente serena mas que ao ver Peseiro quase a citar Churchill se arrisca a enfiar-lhe com uma bomba H pelos cornos acima.

Amnésia instrumental – Estado provocado pelo movimento feito com a memória e que é semelhante ao que Douala faz nos seus estonteantes dribles em corrida: cerebelo para um lado, neurónio para outro, pernas recebendo instruções apenas da espinal medula e com ligação directa estabelecida através de dois pernes descarnados e desmagnetizados à pressa.
Conto do but his name was not Bond

O seu sonho mais secreto era ser cowboy, não é nada de original, quase todos os miúdos um dia quiseram ser cowboys, só que ele manteve esse desejo para sempre; aquilo de facto fazia o pleno de todos os seus desejos, de todas as suas ambições; era a solidão da pradaria, a vertigem do duelo mortal e definitivo com quem o desafiasse, a sedução pela confusão delirante do saloon, as miúdas absolutamente perdidas pela sua pose distante, a rapidez a sacar do coldre, a contemplação no olhar, a surpresa no beijar inesperado, a tranquilidade ao balcão, as cartas marcadas, nunca esgotar o tórax numa só inspiração, o sorriso a meio caminho entre o ausente e o carinhoso, a roupa cheia de suor mas sem se deixar colar ao corpo, o cavalo fiel mas nervoso, nunca saber onde dormiria no dia seguinte mas tendo sempre saudades da poeira que levantava, não precisar de ser esperto e bastar-lhe pôr o coração num batimento certo, preferir uma boa memória a uma estúpida glória, gostar que o vento lhe batesse na cara, mas trocando-o sempre que podia por um bafo quente e amigo; e saber morrer de amor por uma franja soprada.
Escrever não lhe dava gozo: «nem mata, nem mói». Ele no fundo não passava dum ganda cobói.
E foi-se, claro.
E agora reparo eu antes de partir para a ilha deserta
post ao abrigo das leis gerais de liberdade criativa desinteressante

E ó sr dr João Morgado ( 4 links pelo preço de um) e se se deixasse realmente de postezinhos que nem fariam bolsar o menino jesus nas palhinhas deitado e respondesse mormentemente ao inqueritozinho como eu lhe pedi efectivamente!
Afinal acabei por levar a Lux Women

Confesso que numa primeira fase foi a entrevista da Mª do Céu Guerra juntamente com o simbolismo que transporta o nome de Isabel Queiróz do Vale que me atraíram definitivamente, só que depois não resisti a parar nos anúncios dos anticelulíticos, mas olhem que até foi por mera curiosidade e por associação de ideias com o efeito casca de laranja por causa daquela merda das taxas antidumping nas fibras têxteis, lembrei-me de caminho sem especiais elucubrações que a Eva saiu escorreita ali duma costela do Adão, e pensei novamente se Deus não teria pensado primeiro na mulher em versão Kate Moss e mandado apenas o homem hermafroditicamente sozinho à experiência numa fase inicial, mas pelo sim pelo não aquela marca ‘Pepe Jeans’ fica proibida cá em casa, é certamente a serpente a atacar outra vez, no entanto se me aparecer alguma representante da espécie com uma tal de mini-saia em lamé de algodão (Custo Barcelona €124) eu transformo-me todo inevitavelmente numa grande zona erógena, tal qual a direita portuguesa ( ou será a esquerda) que agora nem se lhe pode tocar que se excita toda, mas a ostensiva silhueta feminina (reparem no cuidado dos termos) está de tal forma banalizada que qualquer dia entra-me no escritório a Penélope Cruz a pedir para eu lhe espalhar geleia de ameixa entre a coxa e o umbigo e eu ainda vou pensar que é apenas uma nova campanha da doces da Casa de Mateus, e a direita também pode relaxar porque isto de refundar nunca será o mesmo que dar duas sem tirar, mas aquilo escusava era de acabar com uma receita de robalo cozido e com o jacinto lucas pires, para mim bastava um, isto posto não ter dores menstruais, seja abençoado o período à experiência, ó Adão.

E agora se calhar vou mas é passar mesmo uma temporada na ilha deserta.
Sou pessoa respeitadora
E claro, não há nada como realmente

Pagando - de rojo, qual lagarto - ao Almocreve. E sem graçolas( vamos lá ver se sou capaz). Ganha-se o céu é com estas pequenas coisas, ó o que é que pensam

1.Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
Supondo que a pergunta quereria significar ‘se fosses um livro para queimar, que livro gostarias de ser?’; eu fico sem saber bem…porque nunca levei nenhum livro a sério (excepto dois que já irão perceber) e gosto essencialmente de livros que me irritem, porque para coisas boas já me basta a vida. Mas vá, se é para queimar mesmo, e para dar uma chaminha assim laroca e apanascada, queimaria todo o Proust. (o que me daria mais gozo de queimar seria o último, e que não li, claro, já aqui ‘expliquei’ um dia, o meu pai felizmente, temendo pela minha masculinidade, proibiu-me)

2. Já alguma vez ficaste apanhadinho por uma personagem de ficção?
Bem, agradeço que me tenham feito esta pergunta (não resisti); eu gostaria de ter sido aquele homem que Tolstoi escolheria à última hora para segurar no braço de Anna Karenina na estação de comboio.


3 e 4.Qual o último(s) livro(s) que leste? Que livros estás a ler?
Agora vou ter mesmo de ser sincero convosco, algum dia haveria de ser: eu realmente nunca ‘li’ um livro; assim, dentro daquele conceito de ‘ler’ mesmo. Até quando estudava, aquilo era meramente instrumental, aprender nunca me seduziu (tenho uma daquelas profissões em que não se sabe fazer rigorosamente nada), ‘ler’ é de facto algo que apenas conheço de ouvir os outros falar, e uso a palavra mais por mera força do hábito. Agora que livro é que ando há mais dum mês a tentar aproximar-me desse conceito de ‘ler um livro’: ‘A manhã’ de Romain Rolland, que me foi emprestado por uma pessoa muito especial. Vou na página 65 (mas até já morreu um velho). Então dentro dessa experiência assim difusa de ‘ler um livro’ , saiba-se já agora que praticamente nunca acabei de ‘ler um livro’ (excepto a ‘Anna Karennina’ que terei ‘lido’ 20 vezes em salteado e ‘Nicolau e Alexandra’ de Robert K. Massie que ‘terei’ lido umas 10 vezes, livros que, no fundo, estou sempre a 'ler') mas andei uns dias às voltas com uma xaropada enrolada chamada ‘ The cambridge introduction to Russian poetry‘, só que eu já não tenho pedalada para acompanhar aquilo e até confesso tinha vergonha de mostrar em casa que andava a ‘ler’ tamanha aberração com enxertos de cirílico, enquanto a porcaria da misturadora do lava loiça teimava em assumir mais a sua vocação de misturadora relegando a função de torneira para um segundo plano , espirrava água por todo lado, e os olhinhos que a minha mulher fazia eram dignos de aparecer na ‘História da beleza’ do Umberto Eco no capítulo ‘turvo, grotesco e melacólico’.

5. Qual foi o último livro que compraste?
Apesar de não os ‘ler’, de vez em quando compro, tenho de reconhecer, compro, porque adormecer a ‘ler’ uma trampa qualquer é – no entanto bem atrás do absolutamente incomparável ‘mexerem-me no cabelo’ – uma razoável experiência. Nem sei bem se devia dizer, tal a possidonice explícita, mas comprei mesmo (só que haviam de ver a cara da miúda que estava ao balcão, haviam) um tal de ‘Dans le pas de Byron et Tolstoi – du lac léman à l’Oberland bernois’ do Mickhail Chichkine ( reparem que eu disse ‘do’ e não ‘de’, o que faz toda a diferença) que obviamente nunca abrirei sequer, até porque descobri anteontem um massajador japonês de couro cabeludo que me tinha desaparecido há atrasado.

6. Que livros levarias para uma ilha deserta?
É certamente uma pergunta sábia por ser tão repetida. Não levaria de facto nenhum livro, porque não me queria desconcentrar para poder finalmente escrever em condições o ‘kamasutra com árvores’. Mas sendo mesmo obrigado para efeitos deste questionário, levaria o 'Murphy' do Beckett, e como a pergunta vem no plural e eu no essencial sou uma pessoa cumpridora, levaria também as ‘Almas Mortas’ do Gogol ou as ‘Flores do mal’ daquele outro rapazola francês, ou uma recolha de poesias do Abrupto para ter mesmo a certeza que ninguém me vinha chatear a carola. Tudo coisas práticas. Mas agora pensando duas vezes…. o último número da Lux woman que está ali e que traz a entrevista da Maria de Céu Guerra, não sei, não… se calhar também marchava.

7. A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?
À m. do Azul Cobalto porque ela até vai ficar verde . Ao João do Terras do nunca porque quero saber que raio de livros é que o gajo leu e anda a ler (dado que suponho não ande a fumar daquelas coisas maradas), à Ana do Modus Vivendi para ver se ela areja um bocado e eu poder voltar a meter-me com ela, ao Jaquinzinhos para saber se ele lê isto e cheira-me que gosta tanto de lampiões como eu, e à Mal traçadas para ver se ela escreve mais alguma coisa porra, e porque assim me arrisco a levar ‘cinco tampas’ das boas, o que só me fará bem, se calhar. (olha escolhi cinco, então passa a seis : ao Portugal dos pequeninos, que não percebi bem se vai parar de escrever, e porque é de caras das pessoas mais interessantes a escrever sobre leituras feitas)

E assim temos um desejo de lampião satisfeito,
mesmo que não tenha sido o árbitro a fazer o jeito
The human side of Man
Desenjoando do empolgante tema dos têxteis chineses

Introdução
Descobrir o lado animal do homem é tarefa fácil para qualquer engenheiro de som (género psicólogo enxertado em esventrador de minhocas), descobrir o seu lado transcendental está ao alcance de qualquer arquitecto paisagístico (tipo mistura de antropólogo com depilador de malmequeres) mas agora para descobrir o lado humano do homem nem sempre basta ter uma profissão decente (género canalizador ou montador de cozinhas italianas), mesmo que leve de vez em quando uns valentes cagaços epistemológicos.

Nota técnica
Boris Vian no prólogo da 'Espuma dos dias' diz qualquer coisa como no mundo só existem duas coisas: o amor de todas as maneiras, com mulheres bonitas, e a música de Duke Ellington. O resto é feio.
Ora o ‘amor’ e a ‘arte’ aparecem há muito tempo a dar uma mão quando queremos pôr uma cara lavadinha à nossa condição; a malta agradece o jeito e hoje até me deu para lhes retribuir. Somos uma espécie perdida, mas temos direito à nossa boa imagem e ao nosso bom nome. Eternamente transitando em julgado, óbvio.

Capitulo um, ou também chamado primeiro – We all are a love story
Nós, já se sabe, sentimo-nos algures entre o orangotango (mas já mais afastados da alforreca, nos melhores dias) e o Anjo Gabriel (mas ainda assim afastados de Pan mesmo que vestido pelas melhores casas) mas temos de conviver com um universo de definições que aguenta desde as sangrias do fornicador de viúvas Rabelaisiano, até ao 'vai ver se eu estou lá fora' Beckettiano, para já não falar do que vai na cabeça daqueles tipos como eu que até rezam terços de joelhos. E se Shakespeare soubesse realmente alguma coisa sobre a alma humana, o príncipe da dinamarca não teria dito à filha de Polónio ' that's a fair thought to lie between maid's legs ' (só que em português isto soa um bocado pornográfico a mais, e agora até já enjoa de blogs com gajas a mostrar as mamas a três quartos) continuando depois a falar de traições e paneleirices afins.
Ora o ‘amor’ convive nesta miscelânea conceptual como o raspador de ganga, ou seja, aquilo que no final vai tornar-nos uma espécie apresentável, griffada, de aspecto pré lavado e sem termos a cintura demasiado descaída quando nos apresentarmos no grande tribunal das espécies. E a frase : ‘eu cá uma vez apalpei uma miúda calculando que um dia a poderia amar’, derramará certamente lágrimas de ternura a qualquer criador que se preze, e Noé hoje escolheria invariavelmente um par de manjericos apaixonados para representar o nosso genoma na arca.

Capitulo dois, ou também chamado segundo– We all are half collage and half installation
Geralmente só nos realizamos com profissões inúteis, tipo historiador de arte ou engenheiro electrotécnico, actividades no fundo relacionadas com coisas que mais tarde ou mais cedo viremos a descobrir que não existem, tal como a beleza e a electricidade. No entanto, a história da nossa espécie passa pela compreensão progressiva, de inspiração kantiana, ( o gajo disse isto com toda a certeza) que a matéria fluida é mais antiga que a matéria sólida, e por isso a imaterialidade e a confusão são desígnios da nossa condição. O secreto desejo que todos temos de que o mundo afinal não passe dum grande frigorífico no frost decorado com penduricalhos do A. Calder leva-me a pensar que se não fosse a inutilidade nada faria sentido. E quando Nietzche dizia que o homem não é o artista mas sim a obra de arte, o mármore mais precioso, a conclusão que podemos tirar é que mesmo estando com uma grande pedra ainda haverá alguém a cuidar de nós, juntando os cacos e ligando-nos outra vez à corrente para podermos continuar a mexer as perninhas.
Nota final
Para descobrir o lado humano do homem basta olhá-lo de frente, cortando a espuma aos dias, e emborcando rápido para ficarmos só com o sabor apaixonado do final. É esta a arte, ‘and I should fall from grace with god’ como diriam the Pogues.
Morse para lampiões
peseiro, pinilla, tello, 3 secos, nenhum penalty, nenhum colo, nem deram um ai, hugo, paíto, até jogou o nicolae,
não rezem não, ó seis milhões.