Deus é quem menos cumpre as nossas expectativas. Tal como
quem amamos acaba por ser quem mais nos falha, Deus está frequentemente a jeito
para que lhe apontemos o dedo - mais ou menos piedoso - da desilusão. Em geral
exigimos-lhe que seja mestre no campeonato das grandes contradições: esteja
perto sem nos chatear, seja previsível mas surpreendendo-nos, esteja longe mas
fazendo companhia, nos dê o possível na medida do impossível e nos dê o
impossível na medida do possível, em suma, também já estará habituado a que ter
de ser só nosso mesmo sendo de todos. Quem já se sentiu abandonado por quem ama (e quem nunca
sentiu isso não sabe o que perde) entenderá facilmente que não há maior
desilusão que uma ausência incompreensível. A religião permite apenas uma
ligação imperfeita, o Deus que nos foi concedido não passa da clássica sombra
projectada no fundo da Caverna, e a sua graça pouco mais efeito dá que uma
terminação de lotaria. Sendo que a espiritualidade é uma técnica de gestão da desilusão,
tal como uma palavra não passa de um beijo que não foi possível, (nenhuma
declaração por mais solene que se apresente substitui um carinho por mais fugaz
que seja), Deus só é compatível com uma profunda tristeza de nunca sabermos por
que age Ele assim, por que faz Ele assado ou cozido. As chamadas virtudes
teologais são de certa maneira panaceias de quem sabe que não terá talentos
para viver mano-a-mano com um Deus que está sempre Além mas que é sentido como
estando sempre Aquém. Como alguém que está sempre com medo que o seu coração
falhe por não aguentar um amor que não é correspondido, a maior força de um
crente é saber desiludir-se com uma resistência de maratonista, que sonha ter
depois de cada curva um posto de abastecimento , ou um aceno com sorriso. É
mesmo aconselhável que Deus seja pai e seja Perfeito, pois para nos
aproximarmos de Deus temos de saber viver desiludidos com Ele.
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Teologia da Abstracção
Por regra, no excêntrico universo da análise moral,
consideramo-nos pecadores em abstracto mas boas pessoas em concreto. Com
facilidade assumimos uma contrição quase estética sobre uma tendência genérica
para a imperfeição (não confundir com a maldade) mas confrontados com um
contacto objectivo com ela somos facilmente levados a descartá-la, ou a
camuflá-la sob capas do psicoloden, quando não a veementemente negá-la. A
experiência da culpa definida e circunscrita é muito mais penosa que a falha
assumida como uma tendência imanente de malandragem, ora literária, ou mesmo
cómica. Por outro lado todos temos pecados de currículo, pecados que nos ficam
bem, como adereços de moda ou relações de conveniência. Ou seja, a imoralidade-como-composição
é uma das boas invenções do espírito humano no intuito de se proteger desse
peso esmagador que é a existência duma lei moral omnipresente. Assim, a batalha
essencial da alma malabarista é conseguir transferir do concreto para o
abstracto a sua ligação à imperfeição, à culpa, ao pecado. A experiência
amorosa costuma ser boa e didáctica companheira neste processo pois nela
geralmente encontramos bons exemplos de grandes amores abstractos que se
transformam sem grande esforço em indiferenças, quando não mesmo negligências ,
objectivas e concretas quando o suposto-amado está ali disponível para ser pau
para toda a colher. O fenómeno da diluição da experiência por força da
capacidade de criação do eu-de-referência permitirá ao homem apresentar-se
perante o Criador com uma limpeza que seria imprevisível face aquilo que hoje
se chama de vidas complicadas. No
entanto, o contacto com o eu-de-experiência também não será totalmente
descabido uma vez por outra, até como molho agridoce duma existência que tudo tem para ser enfadonha, mas a grande aventura
humana é mesmo elevarmo-nos a seres de ficção, avatizáveis, imunes a essa
contaminação de catecismo a que se chama a culpa concreta. Filhos da grande Mãe
Inocência e apenas amamentados por uma Eva de Percalço, estamos talhados para
ser santos, o pecador é um tipo que se distraiu com os detalhes.
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Teologia da Hibernação
Com um deus distante e uma fé invernosa escolheu o seu
deserto interior para refúgio maldito. Mau conselheiro de si próprio mas
desconfiado do conselho de alheio, entregou-se a memórias vagas e recalcamentos
persistentes, desatou os nós que trazia no estômago e esperou pela pancada.
Veio ao terceiro dia, como uma ressurreição pagã, disfarçada de dor de
garganta, pois tudo que vale a pena precisa da dor para ter dignidade. Agarrado
pelas entranhas superiores perdeu-se em divagações sobre a culpa e o destino, a
sorte e a má sorte, o reconhecimento e a incompreensão. Estava no consolo que
toda a ingratidão propicia quando um Espírito Santo sem orelha lhe sussurrou
duas verdades de demonstração inacessível para o seu grau de sofisticação no
momento. Forçado a crer como alternativa viável, aconchegou-se naquele prazer
demoníaco que é todo o desprezo pelo que nos rodeia e soltou a língua em forma
de avé-maria sem graça. Recolhido na oração dos simples, deixou o coração
divagar pelos pecados que nunca tinha cometido, mas que lhe tinham sido
prometidos pela imaginação em estado de flor, e ruminou uma contrição de
circunstância abrilhantada por dois toques em solavanco por um peito ainda em
posição de pós insuflação arrítmica. Caçado pelo cruel predador que é a solidão
imposta, um felino que nem sequer mija por onde passa, deixou-lhe as feridas
para lamber, qual retalhista de almas para chulos montados em estofos de pele. Com o
arrependimento a aproximar-se em pezinhos de lã, deu duas voltas à goela
embebida em conhaque e suspirou como só um grande falso incompreendido sabe
fazer. Coladas as bem-aventuranças com cuspo, citado o filho pródigo como quem
limpa o rabo a meninos, e enfiadas duas bojardas evangélicas ao ritmo de quem
cose uma gengiva, ei-lo com o espelho da alma bem espetado nos cornos, verdadeiros talentos à espera de parábola. Nem pestanejou. Abriu os olhos com
a rapidez e a precisão duma vítima furtiva e pôs-se na mira do anjo da guarda.
O grande mar vermelho abriu-se outra vez para a sua passagem e quando chegou ao
outro lado abraçou um novo verão de promissórias várias, montado numa cavalgadura
de tentações de fazer chorar qualquer menino jesus devidamente recenseado. Cada Estio deve ter direito à sua caverna invernosa.
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