Discos nunca pedidos

Lalala lala lala

«E cada pensamento fugitivo, cada desejo, cada sonho
Poderá estar dissimulado nas minhas palavras.
Saberá reconhecê-los a todos.»

Lalalalalalala

«Quando em sonhos me junto a ti,
Tenho sempre flores nos cabelos.»

Lalalalala lala lala

«Não desejo falar a ninguém
Para não desperdiçar o eco das tuas palavras
Que tremula como um esmalte sobre as minhas
E as faz soar mais ternas»

Lalalalalalalala

«Quando em sonhos me junto a ti,
Tenho sempre flores nos cabelos.»

Lalalalala lala lala


«Recuso os sonhos que te ignoram
E os desejos que não possas despertar.
Não quero fazer um gesto que não te louve,
Nem cuidar uma flor que não te enfeite»

Lalalalalalalala

«Quando em sonhos me junto a ti,
Tenho sempre flores nos cabelos.»

Lalalalala lala lala

«A propósito dos meus dias,
Devo ainda confiar-te que são pobres
Porque estás ausente deles
E ricos, porque a tua bondade irradia sobre todas as coisas»

Lalalalalalalala

«Quando em sonhos me junto a ti,
Tenho sempre flores nos cabelos.»

Lalalalala lala lala

«Quantos seres não terão falhado o seu encontro,
Por não terem tido tempo de se acostumarem um ao outro»

Lalalalalalalala

«Quando em sonhos me junto a ti,
Tenho sempre flores nos cabelos.»

Lalalalala lala lala

«É necessário que tenham sido felizes juntos
E que tenham em comum alguma recordação sagrada
Que mantenham um sorriso semelhante nos seus lábios
E uma semelhante nostalgia em suas almas»

Lalala lala lala


Excertos de prosa gamada, e toda baralhada em verso, da correspondência entre Rainer M. Rilke e Lou Andreas-Salomé. Sem cabeças cortadas, como fazia a outra. (ed Relógio d’Água)
Teleonomias

A arte da estultícia: escutar pela metade, acreditar por inteiro.
O Ano 2020
e o Jogo da Sueca no Gambrinus

Pereira, Sousa, Tavares e Valente, tinham finalmente o seu lugar na história: Guidinha (Margarida RP passara a usar este improvável pseudónimo para fugir do George que não lhe largava a peúga) escrevera uma versão light dos Lusíadas, chamada ‘Vai um arrozinho de polvo na Taprobana’ e tinha-os colocado praticamente ao nível de cronistas oficiais do reino, fazendo esquecer o velho do Restelo que agora parecia um mero afinador de taxímetros de aeroporto. Face à nova regra das reformas instituída por Sócrates estes quatro tinham mantido as suas colunas activas (mesmo que já meio marrecas) até idade avançada e agora, já com o país e a previdência salva, podiam dedicar-se ao seu verdadeiro ideal reprimido: borrifarem-se para a nação que os tinha alimentado e dizerem mal apenas uns dos outros, chamarem-se aldrabões à desgarrada, darem mútua, mas não simbolicamente, umas caneladas debaixo da mesa, fazerem graçolas ordinárias, dizerem mal do Peres Metelo e da Inês Pedrosa, enfim amarem-se à maneira portuguesa.
Pereira era inesperadamente o mais fadado para o jogo, mas quando punha aquelas suas mãozinhas entrelaçadas tipo fecho éclair sabia-se logo que o trunfo era copas e ele tinha o ás bem acompanhado; era um bocado previsível, e a sua claque geriátrica, mesmo sendo fiel, muitas vezes adormecia quando ele se punha a destrunfar com um arzinho convencido e a arrecadar as vazas como quem coleccionava editoriais do avante entre as Eva’s do Natal.
A previsibilidade de Tavares era um pouco diferente, tudo se baseava no movimento da franja e nos esgares de cara, e os suspiros da sua corte de reformadas denunciavam-lhe sempre o jogo, que, diga-se, era sempre tão mau que o Valente até dizia que ser parceiro dele se assemelhava a ser fabricante de hóstias na 1ª República.
Valente, esse, apresentava-se como um desconcertante jogador: dava sempre a entender que tinha uma mão de merda, que o baralho era seboso, que uma bisca aqui não valia metade dum terno em Londres, que o trunfo vinha sempre fora de tempo e sacava aplausos entusiásticos dos que se diziam especialistas do bridge e que só lá estavam de passagem para ver a bola. Sousa era o que aparentava estar mais deslocado. Chateava-lhe só poder jogar com as cartas dele, não poder escolher o trunfo e nem o olhar melancólico do seu harém de antigas entrevistadoras devidamente atestadas de doses cavalares de Lexotan o conformavam.
Mas eis pois senão quando, Pereira dá um salto e berra: «Alto, tenho um valete anónimo encafuado no meio das minhas cartas! ninguém sabe a que naipe pertence, as senas estão nervosas e já não tenho mão na dama de paus». Barreto, um assumido outsider da cartada, que entretanto tinha ido levar a CCSá & MnMónica à loja das meias e a um abaixo-assinado para o Bénard continuar à frente da programação das matinés do Quarteto, explicou que o grande atraso do jogo da sueca em Portugal continuava a dever-se ao fluxo migratório de duques de paus, que tinham um contacto muito mais reduzido com as quadras de copas do que na Europa do norte, e o índice de destrunfes iniciados em reis de espadas continuavam com as mesmas taxas de crescimento que os de damas de oiros na década de 60 nos baralhos italianos. Valente anuiu, disse que tinha mas era saudades dos livros policiais da sua princesa Clara Pinto Correia – que andava a escrever há dois meses uma crónica – original - sobre os problemas de conflito genético nos lares de 3ª idade – e Tavares, farto de Pereira, ameaçou que, ou se deixavam de paneleirices, ou escreveria mais um artigo sobre a praia do Meco e os restaurantes da costa vincentina.
Todos aliviaram, a perspectiva de mais um livro infantil passado no deserto do Sudão era ainda mais insuportável, e Sousa chegou a tentar aproveitar a confusão para, entre dois espirros simulados, trocar três cartas com o Valente, a quem já chamavam, evidentemente, o ‘valete’ para todo o serviço, tal a disponibilidade que apresentava sempre que era preciso fazer um ar distraído, fazer a ligação entre a nobreza das figuras e o povo, chamar bobos aos reis e dar um chuto no tampo da mesa com aquele aspecto de que não fazia mal nenhum pois a história e o jogo estão sempre a repetir-se.
A malta gostava, a malta pagava para os ver a meter os pés pelas mãos com as cartas; dizendo mal uns dos outros, iam decifrando os naipes ao povo, aquilo divertia-os, e no fundo antes aquilo que estar na bicha da caixa com o Armando Vara, rezar o terço com o Dalai Lama, ou ver o jogo de dominó entre o Lacão e o Lello no Jardim da Estrela. Nação distraída é nação instruída, quem não percebe isto não serve nem para a bisca lambida.
La dentelle aux fuseaux

(que é como quem diz, em português: quando um homem deixa uma mulher invadir-lhe o território arrisca-se, em sendo Lua Nova, a encontrar fraldas estendidas no criado-mudo)


smsantologia

" (...)

De mim converso as mãos erguidas em redor do teu rosto,
e do teu rosto a praia extensa que o vento alisou para sempre.

Não há pegadas senão o ruído das ondas."

Jorge de Sena, "Exame" (1942)
Catecismo ribonucleico
O biólogo comenta o teólogo.

Pode assistir-se, e em directo, no Memória-Inventada. Ora como tudo é memória, como diria – aqui ficava bem pôr Lili Caneças, mas vou evitar – qualquer sujeito que tivesse levado uma forte marretada na carola em qualquer dos hemisférios, tudo é possível, tudo pode ser semântico, tudo pode ser figura de estilo, tudo pode estar relacionado com um neurónio mais atrevido e nada nos deve apoquentar. Ficamos pois a saber, porque foi o Gould quem o disse claro, que ciência e religião são dois magistérios de influência (tipo Mário soares, mas em bom) que não se tocam; constituem, por assim dizer, uma sublimação epistemológica do estilo ‘ir às putas’, ou seja: tudo menos beijos na boca. Terei – felizmente – de deixar Darwin em paz, para não assarapantar as hostes das ciências vintage, e pouco me adiantarei sobre o Teilhard porque de teólogos não reza a história, but, mind your own business, tenho de conseguir brincar às metáforas com um biólogo e alcançar o pleno de nem invocar o nome de Deus em vão, nem fora de mão.
Uma das coisas que os biólogos nunca conseguiram ‘dominar’, e isso enerva-os, é normal, gostavam de ser Aristóteles mais sofisticados, é essa coisa da ‘espécie’. No fundo a ‘espécie’ está para eles como a ‘vontade de mijar’ para os filósofos e para os economistas: não há ‘ontologia’ , nem ‘expectativa’ , nem ‘recurso escasso’ que a consiga retirar do topo das pirâmide das necessidades.

A tese subjacente do M.I. (passou a tese mesmo sem ser preciso meter mais moedas – subjacente é bónus) é a de que a teologia não tem razão de existir essencialmente porque já houve tipos ‘condenados’ como grandes malandros mas que afinal eram bons pais de família e até com boas possibilidades de serem sócios do belenenses com as quotas em dia. E, assim sendo, a Ressurreição não só é uma grande galga, ao nível das teorias do espermatozóide aquecido, como é na condição biológica e psico-social (esta já foi outro bónus) do homem que radica toda a sua definição. Esgotamo-nos pois no ADN e no divã, eventualmente com uns ‘pozinhos’ de macumba nos dias mais enevoados.

A transcendência presente na nossa condição é algo fodido, sim. Eu percebo isso bem, mas a mim também me lixa não ter guelras quando estou a nadar, só que já me custava mais terminar a minha existência como uma enguia num ensopado. Foi tipo uma bucha de discurso.

Esse Richard Goldsmith – tive que ir ver quem era porque o meu curso é daqueles dos fáceis e não falam desses artistas - parece-me bom moço, e até me lembra agora que a raiz latina de ‘monstro’ também quer dizer 'maravilha', 'coisa fantástica', o que lhe confere uma auréola de mistério que, no fundo, é do que todo o crente precisa e de que se alimenta senão fica desfeito com tanto positivismo de almanaque à solta.

Rasgar as vestes pela apropriação duma terminologia evolucionista aplicada à Redenção convoca-me aqui ao raciocínio (reparem ao ponto que eu já cheguei neste contacto com a magistratura da ciência) que o homem biológico do Biafra se assemelha ao homem biológico, que, por exemplo, dorme na Casa Branca e, aparente e estranhamente, também teria beneficiado por igual da tal de Ressurreição como ‘quality jump’ ( é inglês científico). Ora isso aos olhos da bioquímica parece um absurdo, mas aos olhos dum fradeco qualquer enleado na escolástica bolorenta parece plausível! Conclusão: está na altura dos biólogos e dos teólogos irem para África de mãos dadas acabar com o servicinho que o Redentor, pelos vistos, deixou incompleto. E às refeições, como serão escassas, podem continuar a brincar às metáforas.

Ao desprezarmos a teologia e a religião em geral, por mais brincadeira semântica que nos pareça, faremos das ciências exactas eternas reféns do pleonasmo permanente e da sorte. Se a Ressurreição for uma fraude, se nem sequer for uma evoluçãozita, à direita do Pai estará certamente o Stanley Ho.


nota: o artigo do Frei Bento Domingues pareceu-me bom ( e deveria ser lido todo para assim melhor se enquadrar a frase do Papa e o texto do M.I.) e até estive para escrever aqui sobre ele. Assim, depois de ler o post do M.I. tornou-se mais fácil, é como a técnica percorrida nas tais ciências vintage: ir avançando, cavalgando nas elucubrações alheias. Sem desfeita, claro, pois qualquer não crente, face ao despautério científico, até se deveria ter chegado à frente e ter escrito como o MI ( o Vasco) o fez.
Lógica: um lugar estranho
ou: o que faz um homem no paraíso sem uma serpente

Tudo o que vale a pena leva de alguma maneira ao vício, à obsessão, a alguma dita irracionalidade, a algum metafórico inebriamento, a jogos no vazio, a ilusões de preenchimento, a maiores ou menores fantasias de exclusividade sentimental. Mas, por outro lado, nem em todos os lugares onde se alimentam estas maravilhas da nossa espiritualidade existem coisas que valham a pena. O que faz de uma condição ser apenas verdadeiramente suficiente é nunca a tornarmos necessária. Mas nem sei.
Diário de um concubinador de palavras

Hoje peguei no facalhão, capei-lhes as terminações e fiz-me ao flirt com duas piroseiras: um concomitante e um contundente; praticamente fazem o mesmo efeito que um cagando e andando mas dão-nos outra estimulação ( aquela espécie de tesão mais fina ) e o coito verbal pode dar-se logo sem precisarmos de mais entoações lúbricas. Mas ó ingrata, ó fulminante e flácida distracção porque me deste cabo do discurso no momento do deslumbre, serás penitência? serás castigo ? ó malfadada maleita, filha bastarda da imaginação, sedutora de mentes frágeis, só te encaixas em corações sem quorum! Tive de me arranjar com outras à pressa, cornucópias de ocasião, vulvas de esquina, partes rebaixadas, caves de suor, odores de outras flores, olha pequei, rimei, não tornes; voltei arrependido, agora arrepanhado pelo efeito duma curva, dum sinuoso fim de dorso, nessa cova onde nos enterramos sem necessidade de epitáfio, nesse colo onde só se suspira se não aguentarmos o ritmo do vira, bolas voltei a pecar, e logo assim meio pastiche, mas que se lixe, vou acabar. E sem um raisparta para amostra nem nada, isto são certamente contrições de contrabando.
Diário de um concubinador de cores
mas qualquer homem depois da batota gosta de recolher ao colo da submissão a trunfo

Vai fazer agora para muitos dias que desprezei um fuscia. Estava demasiado enleado com um violeta adamascado e por isso não lhe dei o devido valor; perdida cor. Pálida imagem dei de mim próprio ao ser vencido pela pressão das cores banais, das combinações que arregalam a vista. Mas hão-de ver, hão-de ver, um dia destes faço um verde azeitona parecer-vos um azul ganga brometiado. Nada de mais fácil, basta não metalizar muito as vistas, crivar os olhos como que fornicando com eles e atarrachar a pupila. Mas vão por mim, pode custar a entender, mas toda a ciência das cores está naquele famoso enclave entre a camisa e a gravata; os impressionistas pouco sabiam, os fauvistas sabiam demais e os abstraccionismos posteriormente servidos à civilização em sortido pouco acrescentaram. Hermés e que se foda. Já sei, as combinações de cores podem-nos colocar na fronteira do apanascamento, pôr a nu temperamentos marcados pela frivolidade, reduzir-nos a puros produtos da influência, e, tenho de conceder, muito traste se esconde num contraste de belo efeito. Agora estou pior do que quando comecei, e que pena, era um tema tão ligeiro; agora já não sei que cor escolheria para aquele momento, para aquele momento em que quisesse mesmo surpreender; qual será a cor da surpresa? Tomei uma decisão, no primeiro dia em que chorar, nesse abençoado dia, chorarei em cor de melancia, nem é sangue, nem é ranho, serão lágrimas sem tamanho; pego-te na mão e serás o meu mata-borrão. Não rumines, não tires esquadrias, não marmoreies, anseia-me antes numa cor à tua escolha e eu estarei sempre verde na hora da recolha.
Diário de um concubinador de números
porque um homem é antes de mais o fiel representante dum género submisso; mas batoteiro.

Hoje até cheguei a sonhar que ainda poderia vir ser um especialista em conceitos, um autêntico raciocinador diplomado, tricotaria princípios-com-meios-com-fins, sacaria silogismos únicos sem desfiar, filtraria redundâncias e drenaria sofismas encapotados, amalgamaria civilizações com cânones e, sem fugir da fineza própria dum filósofo de interiores, decoraria uma escolástica para os tempos modernos. Mas não, para tal não fui benzido com os talentos da criação (parábola incluída), e a mim calharam-me a merda (sorry) dos cashflows e dos planos estratégicos entremeados duns de projects finances, sempre em leverage, sempre em leverage, sempre em leverage, e eu cada vez com menos paciência para o beverage que lhe vem associado. Uma porra, é o que é, se bem que 'porra' já pode ser levado à categoria de conceito nos seus melhores dias, coisa que por exemplo 'caralhos-m’fodam' (sorry) dificilmente alcançaria.
Mas eu de vez em quando desforro-me (mas não vem de forró), enronizo a coisa (vem de Enron) e mando que brinquem comigo às imputações ( este não é palavrão, note-se), às derivadas positivas, às provisões abstractas e às equitys amestradas. Tudo tende para o fuckeaven point (que já sabem donde vem), uma espécie de ponto g da aparelhagem sexual das empresas, ou seja: se esfregarmos bem e em movimentos rotativos e sincopados não há conta de resultados que não se venha em espasmos. Mas o meu verdadeiro sonho é ser monopolista e olhar para a concorrência como um mero conceito abstracto. O absurdo não vende, é verdade, nem decorado em panóplias, e o que dá realmente lucro é a repetição. Logarítmica, maçadora, género vitalino canas (eu com este nome vendia qualquer produto com mais 10% em cima) e massacrante de preferência. Hoje, se calhar, ainda vou foder (sorry) duas gross margins. Que Deus me perdoe, mas para mim o mercado é uma gueixa.
Ai, credo, qu’isto é tão fácil. O circo, perdão, o blog é todo seu, minha querida, até pode lançá-lo às piranhas, mas acho que nem lhe pegam, experimente antes o número da serpente.
Carta ao inominável homem-do-blog

Procurar princípio, meio e fim nos textos com que o autor residente desta baiúca nos surpreende (gosta do conceito, senhor opiniondesmaker?) é uma tarefa a que há muito deixei de me dedicar. O seu percurso pelo ilógico ("é tão fácil escrever aquilo", diz a olhar-me nos olhos) converte um mundo abstracto e intangível, de personagens catadas aqui e ali mas sempre nos confins do absurdo, em panóplias de respostas que não existem senão para quem as não procura porque as próprias perguntas que suscita são do domínio do invisível. Essencialmente humano no registo diversificado em que a fé faz de cordão umbilical a temas e criaturas que contracenam com o vazio, o mesmo vazio da existência posto em cena que constitui a essência própria do blogar, é pelo humor, banal às vezes e sofisticado outras, que aqui se faz o jogo último com a nossa falibilidade, lembrando-nos o quanto somos ridículos e inoperantes diante do mistério de existir apenas pelas palavras espalhadas num qualquer agátêémiéle com que julgamos feita a nossa provisória e efémera glória. O 'clown' em que se metamorfoseia acaba, desta forma lapidar, por nos dizer (como Beckett no seu Godot, não é?) que palhaços são os que se deixam 'governar' por gente estúpida, tanto ou mais estúpida quanto nós próprios que insistimos em elevar aos pedestais os imbecis de sempre (a blogaria é réplica, o original está em museu). Esta conversa toda serve, como é bom de ver, apenas de pretexto para o informar da necessidade de recomeçar o seu precioso 'dicionário não ilustrado' e sugerir-lhe o início de uma nova série cujo título poderia bem ser 'diário de um concubinador' porque estou farta de ler aqui quaresmas moídas e smsantologias em tom de gaja perimenopáusica antes de ir ao cirurgião plástico. Até porque se, como dizia o mesmo Beckett em "Endgame" (1956) dando à angústia a sua exacta dimensão, "Nada é mais divertido que a infelicidade", então começa a ser necessário brindar com gargalhadas, palmas, encores e flores aos artistas do circo em que vivemos (o domador é opcional).
smsantologia

«De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto (…)»

Vinicius de Moraes
Pascoela, olaré
(andei, qual formiguinha penitencial, a acumular indulgências numa cestinha de vide para agora as vir desbaratar aqui desta maneira)

Episodicamente traz-me aqui uma certa falta de pachorra para odisseias, povos eleitos, matrizes culturais e outros gilgameshes e agamemnones afins.

{1} Todos sabemos, fora os que apenas suspeitam e os que nem para aí estão virados, que o ‘direito natural’ e a ‘cultura’ e a ‘civilização’ sem Deus não serviriam nem para condimentar a sopa.

{2} Reduzir a verdade a um scrabble das mitologias pode continuar a parecer um entretenimento sofisticado para o oleamento dos neurónios mas nunca passará duma diversão para subversores metafísicos de bancada; ou seja, claro que podemos olhar para Jesus como um mito, ou como uma sublimação histórica ou sapiencial, ou como mais uma potencial personagem danbrowniana, tal como também podemos perfeitamente olhar para Amália como vendedora de limões, para Maradona como o tipo que marcou um golo com a mão, e no limite até podemos olhar para Platão como um razoável assentador de ladrilhos soltos no chão dos balneários gregos. Quando a carne atraiçoa voltarmo-nos para o molho é a melhor maneira de manter a família satisfeita.

{3} Mas sem um Deus verdadeiro e omnipresente tudo é sobrevivência. Ficamos todos reféns dum conflito de plausibilidade que nem o yogurte enfrenta ao ser confrontado com a sua forte dissemelhança com a vaca. Pior (talvez assim o pessoal se consciencialize): sem Deus todos somos comentadores políticos.

{4} Não parece fácil esta coisa de acreditar, isto de ser católico em ‘campo aberto’; um tipo alivia do canavial da dúvida e apanha logo com a seara da contradição. Por isso a Igreja sempre fomentou – instrumentalmente – várias espécies de ‘comunitarismo’(tanto defensivo como ofensivo'); mas Ela também sabe muito bem que todo o enraizamento em grupo é um fechamento.

{5} Por isso ainda hoje me é mais fácil ver a força e a lógica duma relação individual com Deus, do que uma estratégia nítida de corporativismos na Criação. Os momentos mais intensos da revelação são de um para um. (talvez até seja por isso que nalguns desportos a marcação à zona tem caído em desuso) O Cristianismo não se funda nem preconiza nenhum estereótipo (nem paradigma) associativo (leia-se por exemplo família) e parece-me bem claro que deixa caminho aberto para o homem gerir o seu equilíbrio entre um ser social e um ser individual. Uma ética de grupo pode ser um nó de gravata mal feito.

{6} Uma das febrilidades dos tempos é este novo triângulo mágico: cultura-cristianismo-europa. Ora a Igreja não se pode tornar numa guardiã das metáforas. E muito menos deveria andar a reescrever novos Génesis e Êxodos, como se fossem manuais de geografia antropológica, pois para isso já pagámos aos Borges, aos Steiners e alguns ainda pagam à corporación dermoestetica. E é por tudo isso que quando Fátima Bonifácio - no tão comentado 'Prós e contras' da semana passada - falou com tanta sapiência histérico sociológica da genuinidade da sua Europa branca, o cardeal Saraiva (todos o chamavam - e só a ele - por Senhor, reparem… se calhar é isso a tal raiz judaico-cristã…), em vez de lhe ter sacado a piedosa tendência de voto sobre a adopção por homossexuais ( apesar de ter sido giro, convenhamos), devia mas era tê-la mandado caprichar no pó de arroz.

{7} Animados agora pela nova redescoberta (bacoca, diga-se) do trágico na condição humana, procurando encontrar nela o fantasioso fecho do círculo e rebobinando existencialismos mal curados ou mal digeridos ou mal sacudidos, olhamos para a ‘civilização’ como um palácio mas sem querermos ser os bois. Esta coisa onde vivemos, e que vista do espaço é um berlinde azul, não precisa de matrizes culturais preservadas, isto precisa é de que se perceba que antes de 'todos' somos 'cada um' - soa balofo, mas é verdade bem densa. E sermos revestidos dessa fina película de perguntas sem resposta não nos faz transportar nada de ‘trágico’, da mesma maneira que eu não faço a mais pequena ideia da origem das pataniscas de bacalhau nem das raízes ontológicas do pecado e rezo à Mãe Santíssima para que ninguém leia isto.
{isto bem pode já ser um sintoma de que}

‘Hoje’, Beckett explicando-me, sem querer, a Paixão de Cristo : «Se a finalidade dos meus romances pudesse expressar-se mediante conceitos filosóficos – por conseguinte abstractos – não teria tido motivo para os escrever»
{isto bem pode já ser um sintoma de que}

Dúvida não existencial nem metódica: o ‘pessoal’, agora, anda aí, a falar sobre o quê, ao certo?
{isto bem pode já ser um sintoma de que}

o império romano caiu mesmo : berlusconi em silêncio, cogliones aliviados, botiglionne desaparecido, há meses que não como uma tagliatelle zigrinate, coelhone mantém-se na quadratura do círculo, e a Mª josé morgado deixou de pintar os olhos cor de pistachio.
{isto bem pode já ser um sintoma de que}

Portugal está a crescer: O ex-Presidente Sampaio despediu-se visitando a Maternidade Alfredo da Costa, mas o Presidente Cavaco reentra ao serviço visitando o Hospital Pediátrico D. Estefânea.

Quaresma XXXVIII e nove e quarenta
( e porra que já não aguento mais esta coisa)

E então, dispersos, porque uno: só mesmo Deus.

Amores pré revolucionários

«Embala, senhor, o meu amado até mim, para que não tenha
que lhe enviar o meu choro de madrugada pelo mar»

in ‘A gesta do principe Igor’ , épica medieval russa, (ed Cotovia, pg 33)

Comércios pré berardianos

«O marchand viu-as ( Les demoiselles d’Avignon) depois de Braque e de Derain: o primeiro achara que era como se alguém bebesse petróleo e cuspisse fogo, o segundo que o autor um dia seria encontrado enforcado atrás do quadro.(...)’Lembro-me simplesmente de que imediatamente disse a Picasso que achava as suas telas admiráveis, porque estava completamente perturbado’. Foi o começo de uma amizade.(...) ‘A nossa vida dos tempos heróicos do cubismo era uma vida simples e sem cuidados porque, repeti-lo-ei sempre, estávamos seguros da vitória, estávamos seguros de nós’ (...)mas ‘não sei se hoje seria ainda possível fazer o que eu fiz. A vida tornou-se muito cara’»

De José-Augusto França, num artigo sobre D. Kahnweiler- e citando-o muitas vezes- marchand de Picasso, por ocasião da sua morte e integrado em ‘Quinhentos Folhetins’ (ed Casa da Moeda, pg 223)

Retóricos estados de alma

«Le caractère 'languissant' est un de vices possibles du style. Il vient essentiellement ou d’une sorte de déplétion dans l’expression, dans l’organisation et dans la suite des phrases, ou de répétitions mal gérées, ou d’un un excès de uniformité, ou de la prolixité»

In ‘Dictionnaire de rhétorique’ de George Molinié ( ed ‘Le livre de Poche’)

Outras línguas outras rimas

«No quarto do poeta em desgraça fazem
a Musa e o medo, por turnos, sua velada,
e continua a noite
que não conhece madrugada»

de A Akhmatova em ‘Voronej’ (em russo a rima faz-se entre ‘poeta’ e ‘madrugada’)

Profissões alternativas

« Agora é tudo muito mais fácil. As marcas nas cartas já saíram de moda. Actualmente as pessoas (...) tentam descobrir a chave do padrão na parte de trás das cartas. (...) Numa cidade, cujo nome não menciono, há um indivíduo muito precioso que não faz absolutamente mais nada. Todos os anos recebe várias centenas de baralhos de cartas de Moscovo. Quem lhos manda? É um mistério. A sua principal obrigação consiste em analisar a marca de cada carta e enviar a chave. Observa como são feitos os duques de um baralho e qual a diferença dos outros. Só por isso ele recebe cinco mil rublos limpos todos os anos»

por Utiechitelni, uma das personagens de ‘Os Jogadores’ de Gogol (ed Civilização, pg 124/5)


Pastorais americanas

«Sim, estamos sós, profundamente sós e haverá sempre, à nossa espera, uma camada de solidão, ainda mais profunda. Não há nada que possamos fazer para contrariar isso. Não, por mais espantoso que isso nos pareça, a solidão não nos deveria surpreender. Podemos virar-nos todos cá para fora, mas a única coisa que acontece nessa altura é ficarmos virados para fora e sozinhos em vez de ficarmos virados para dentro, sozinhos. Minha Merry estúpida, minha querida estúpida Merry, ainda mais estúpida do que o teu pai, nem sequer ajuda mandar um edifício pelos ares»

por Philip Roth na dita ‘Pastoral Americana’ (ed D. Quixote, pg 222)


E agora refazer-me-ia, sim, em refinados refastelamentos

«A Regency carved rosewood chaise longue, the back and seat with green and cream striped upholstery, the seat rail and turned tapering legs with lotus carved decoration (201 cm)»

in ‘Miller’s Antiques Price Guide’ – professional handbook - ed 1993, pg 258, preço indicativo 2.500 libras.

Quaresma XXXVII

Sem este artista…

«Não quieto nem inquieto meu ser calmo quero erguer alto acima de onde os homens têm prazer ou dores, o mais que pelo meio ficou obedecia à mesma conformidade, quase se dispensava. A dita é um jugo e o ser feliz oprime porque é um certo estado. Depois foi-se deitar e adormeceu logo»

…nem era uma Quaresma decente. Com algumas vírgulas e uns pontos finais, (colocados sem especial critério mas certamente para facilitar a leitura ao prof dr presidente Cavaco) Saramago, num momento alto da escrita em português: ‘O ano da morte de Ricardo Reis’. Não explicando a alma, não explicando o mundo, mas ficando a meio caminho entre os dois, como uma mãe olhando para um filho a andar no carrossel (aqui a lágrima é opcional).
Quaresma XXXVI

Apenas porque isto é, sem dar muito nas vistas...

«Nesse mesmo momento, o suor amontoado nas sobrancelhas correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo o cobriu-as com um véu morno e espesso. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. Esta espada a arder corroía-me as pestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi então que tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas, à porta da desgraça.»

... sem cânones de serviço, sem eu saber explicar bem porquê, um dos momentos mais densos da literatura de todos os tempos. A. Camus, em ‘O Estrangeiro’, «seco e nítido« como diz Sartre na Introdução.
E, apesar de não ter cão, «espero que os cães não ladrem esta noite. Julgo sempre que é o meu»
Quaresma XXXV

Mas se era isto que queriam escrever...

«Diz ele (...) que há um súbito olhar límpido de mulher num súbito terraço, uma bola amarela de criança que vem devagar tocar-nos nos pés, qualquer coisa de violino, qualquer coisa de harpa, que vem de qualquer coisa que é noite, ou apenas silêncio, uma luz filtrada de pausa em certo fim de tarde,(...) um cisne sem lago subindo o colo daquela mulher, ou a sua nudez ansiada como espuma de carne num lençol, a curva a que a mão dá o contorno, o cansaço nos lábios mordendo o cigarro, a amplidão de repente feita olhar, (...) uma saia de roda que faz fru-fru, a luz que rompe, rindo, em face suja, alguém recupera música esquecida assobiando,(...) um amigo chega bate à porta e lembra-nos o que somos, uma frase atirada ao acaso dirige-se directamente ao coração de alguém, um pedaço de relva enrola-se nos dedos distraídos,(...) há uma gota de orvalho no teu ombro, (...) embora eu já nem saiba como hei-de dizer tudo isto»

... já não vale a pena. Este gajo já escreveu. O Dinis Machado, em ‘O que diz Molero’ ( ed Bertrand, pg 65). Se souberem fazer rimas ainda podem usar umas terminações para os santos populares.
Quaresma XXXIV

Basicamente...

«A dignidade da pessoa humana radica na sua criação à imagem e semelhança de Deus e realiza-se na sua vocação à bem-aventurança divina. Pertence ao ser humano conduzir-se livremente até esta meta. Por seus actos deliberados, a pessoa humana conforma-se, ou não, com o bem prometido por Deus e atestado pela consciência moral. Os seres humanos edificam-se a si mesmos e crescem a partir do interior; fazem de toda a sua vida sensível e espiritual um material do próprio crescimento. Com a ajuda da graça, crescem em virtude, evitam o pecado e, se o cometeram, dele se levantam, apelando, como o filho pródigo, para a misericórdia do Pai dos Céus. Atingem, assim, a perfeição da caridade.»

...é isto. Vem no ‘Catecismo da Igreja Católica’ ( III parte, cap. 1º ). Mais areia menos camioneta, é isto. Paramentos à parte.
Quaresma XXXIII

Porque...

«Detém-te e deixa que de teus olhos colha, para me sustentar na viagem, um simples olhar teu!
Mas se tal te parece esmola exagerada, não ma dês e abandona-me à minha solitária tristeza e à minha dor.»

... apenas as tristezas pagam verdadeiramente as dívidas. Não foi nenhuma alma russa que o disse, foi Xerazade, nas ‘Mil e uma noites’. Mais precisamente na 33º. (ed Temas e debates, pg 307).
Quaresma XXXII

Não é que isto ainda esteja totalmente actualizado...

«Os Portugueses vivem em permanente representação, tão obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal e colectivo. A reserva e a modéstia que parecem constituir a nossa segunda natureza escondem na maioria de nós uma vontade de exibição que toca as raias da paranóia, exibição trágica, não aquela desinibida, que é característica de sociedades em que o abismo entre o que se é e o que se deve parecer não atinge o grau patológico que existe entre nós.»

... mas... Eduardo Lourenço no ‘Labirinto da Saudade’ ( ed Gradiva, pg 77). Do tempo em que o mais light que havia na escrita era praí o Sttau Monteiro.
smsantologia

Ascoltare era il solo tuo modo di vedere.
Il conto del telefono s’è ridotto a ben poco.


Eugenio Montale, Xenia, 1966, p. 15
Quaresma XXXI’’

Mas afinal havia este...

«Le manque de goût de Dostoievski, son commerce monotone avec des êtres souffrant de complexes préfreudiens, sa façon de se complaire dans les mésaventures tragiques de la dignité humaine, voilá qui est difficile à admirer. Je n’aime pas cet expédient auquel ont recours ses personnages et qui consiste à 'paver de péchés la voi qui mène à Jesus'»

...o Nabokov, nas suas ‘Littératures II’ ( ed Fayard, pg 158). Mas relaxemos porque este tipo está para a literatura como o Guterres para as percentagens do PIB.
Quaresma XXXI’

Isto sim...

«Em Dostoievski (...) quando as personagens desejam qualquer coisa, preferem ser repudiadas a ser exaltadas. (...) No desejo já gozam o prazer; no prazer sentem já o fastio; no acto saboreiam o arrependimento, e(..) no arrependimento sentem de novo a acção. (...) Mas o que é mais surpreendente é a análise do amor. (...) Para ele o amor não é um estado de felicidade, um acordo, mas uma luta sublimada. (...) Quando as personagens de Dostoievski se amam com um amor retribuído, não encontram a calma; nunca são tão agitadas pelas contradições do seu ser como no momento em que o amor corresponde ao amor. (...) O fenómeno do amor duplo, tão complicado nos outros romancistas, é banal, natural em Dostoievski»

... são amores para homens; como bem descreve Stefan Zweig no seu ‘Três mestres- Balzac-Dickens-Dostoievski’ (ed. Civilização, 1976, pg 209 e segs). E por isso desconfiem sempre das reais capacidades de um homem seguro num amor correspondido.
Quaresma XXXI

E aparentemente sem pozinhos de cheiro...

«A desordem é geral. E geral também a inquietação. O que tortura esses seres não são a doença ou o temor do dia seguinte: é Deus. Por gentileza do seu autor, estão libertos das pequenas arrelias e preocupações quotidianas a fim de serem colocados, nus, em face do Mistério. A sua vida activa corresponde à nossa vida profunda.
Eles são nós mesmos observados do interior. Graças a esse método de ‘tomada de vistas’, o que está mais perto do operador é o tormento mais inconsciente, o que dele está mais afastado é a carne, a roupa, a luz do dia. (...) E, quando nos mostram essa prova de nós mesmos, não nos reconhecemos melhor do que numa radiografia»

... é este o Dostoievski que H. Troyat descreve no capítulo da sua Biografia ( ed Lello & irmão, pg 377) dedicado aos ‘Irmãos Karamanzov’, no qual o escritor faria a tal conciliação dos inconciliáveis: «o fantástico e o real».
Quaresma XXX

E agora isto...

«We also now know that individuals can acquire the habit of achievement but can also acquire the habit of defeat. (…) But losers always learn one thing, and that to perfection: resistance against being driven. They may not be able to achieve, but they know how to sabotage»


…de Peter Drucker, em ‘People and Performance’ (ed Heinemann. 1979, pg 251, 256) que há muitos anos me afastava (felizmente) de Proust e atrasava ( felizmente, vistas bem as coisas) de Joyce, mas que, por acaso, não me incompatibilizou (inesperadamente) nem com Dostoievski nem com Beckett. Hoje, actual, como nunca. Até no mundo literário.
Quaresma XXIX
Isto disse Mario ...

«quando eu escrevi Tia Julia, pensava exclusivamente em contar a história de Pedro Camacho, o autor de novelas de rádio. Quando eu já tinha o romance adiantado pareceu-me que essa história se iria converter em uma espécie de jogo mental, uma espécie de divertimento. Iria parecer muito pouco verosímil. E eu (...) tenho uma espécie de mania realista. Então ocorreu-me a ideia de produzir uma espécie de contraponto(...) uma história pessoal, que fosse como uma ancora do romance fincada na realidade vivida.(...) Ao tentar isso, dei-me conta de que não se pode fazê-lo – quer dizer, quando alguém escreve ficção, há um elemento de efabulação, de irrealidade que se introduz sempre, mesmo contra a vontade do próprio autor, inclusive nesses episódios – digamos assim verídicos. Assim, o resultado foi que a história pessoal era tão delirante como a outra.»

... Vargas Llosa numa entrevista a Ricardo Setti editada pelo D. Quixote ( 1988, pg 58) referindo-se ao seu livro ‘ A tia Julia e o Escrevedor’ (ed D. Quixote). Neste livro pode ler-se ( pg 223) isto:

« A história do Reverendo Seferino Huanca Leyra, o pároco da estrumeira que confina com o futebolístico bairro de La Victoria e que se chama Mendocita, começou há meio século atrás, numa noite de Carnaval, quando um jovem de boas famílias, que gostava de tomar banhos de povo, cometeu estupro numa azinhaga de Chirimoyo com uma lavadeira donairosa: a Negra Teresita.
Quando esta descobriu que estava grávida e como já tinha oito filhos, carecia de marido e era improvável que, com tantas crianças, um homem a levasse ao altar, recorreu rapidamente aos serviços de dona Angélica, velha sábia da Praça da Inquisição que tinha o ofício de parteira, mas era sobretudo fornecedora de hospedes para o limbo(...) Contudo, apesar das peçonhentas infusões ( da propria urina com ratos esmagados) que dona Angélica deu a beber à Negra Teresita, o feto do estupro, com teimosia que fazia pressagiar o que havia de ser o seu carácter, negou-se a desprender-se da placenta materna, e ali continuou, enroscado como um parafuso, a crescer e a formar-se, até que, cumpridos os nove meses dos fornicátórios carnavais, a lavadeira não teve outro remédio senão pari-lo»

Será que um dia, à entrada das maternidades, ainda se instalarão agências de providencias cautelares? É que me parece que existem vagas a menos e advogados e críticos literários a mais.