Lumen Gentium 2.0

É evidente que a cegueira da avidez, o inebriamento das ideologias e a impiedade das corrupções de vária natureza dão uma explicação satisfatória para as nossas consciências face ao estado do meio que as rodeia. No entanto, corremos o risco de deixar de fora uma variável de incontestável interesse e alcance: a estupidez humana. Conhecida desde que se conhece o homem, amada desde que descobrimos o amor e preservada desde que começámos a pensar ecologicamente, a estupidez humana é a nossa grande companheira de momentos bons e momentos menos bons. Os tempos moderníssimos (que são os tempos que vêm a seguir aos modernos) trouxeram-nos novos tipos de estupidez, dos quais eu destacaria a estupidez esclarecida e a estupidez sábia. A estupidez esclarecida já nos fazia muita falta, pois o mais parecido que até agora possuíamos no nosso património era a estupidez culta, e a versão esclarecida acrescenta-nos a importantíssima componente estatística que antes apenas vislumbrávamos na mediocridade e muito raramente na estupidez, pois esta, no seu formato culto, era muito pouco atreita a algarismos, proporcionadores de sensações únicas, como sabemos. No que concerne à estupidez sábia, trata-se duma evolução de cariz metabólico, nalguns espécimes adquirindo inclusive os contornos de mutação, e introduziu no vasto espectro do comportamento humano o aliciante da compreensão do mundo nas suas componentes mais íntimas, como que um mundo visto pela próstata. A sabedoria logrou adaptar-se aos ambientes mais adversos e encontrou também, qual coelhinho peludo, uma cartola segura na toca da estupidez. O sábio estúpido, também conhecido em linguagem técnica como o estúpido sábio, garante mais sofisticação à estupidez natural e dota-a de referências de saber acumulado ou esquecido - são praticamente sinónimos - ao longo de gerações. Como magnete poderoso a estupidez humana soube atrair a si o melhor que a civilização construiu e constitui hoje a nossa verdadeira reserva antropológica, a arca de noé de todos os nossos talentos. O que outrora foi estigma doravante será inspiração.

Feelingland

Depois de terem falhado todos os ramos da gurulogia, desde economistas, taxistas, apresentadores de tolquechôs, até sábios das mais diversas proveniências étnicas, e depois de se ter concluído que afinal desde Tamerlão não se produziram mais políticos com mão devidamente lubrificada para a coisa pública, a ONU decidiu construir uma cidade destinada a favorecer o aparecimento de seres inspirados. Numa tentativa entre a utopia ingénua e o segregacionismo compulsivo nasceu a Feelingland que, como o nome indica, se preparava para transmitir a quem lá habitasse aqueles je se sait quoi's que podem fazer toda a diferença, fossem eles receitas de torresmos, frases encantadas ou fórmulas integrais combinando o hemorroidal, a inflação e o desemprego.

A família Saraiva Pontes, de Santo Tirso, foi das primeiras a ser colocada, tendo ficado numa vivenda geminada com a da família Saharim Custhar do Benim. A obtenção de feeling pode estar sujeita a imensas interferências, sejam elas de índole filosófica, metereológica, psicológica e até gastroentrologica, pelo que os habitantes de FL tinham sobretudo de cuidar das suas diversas canalizações e manter-se atentos, de resto viviam a sua vidinha, como se estivessem num terraço de Hong Kong, num rés-do-chão em Budapeste, ou num glaciar para turistas & postais nos arredores de Reikjavick. Julio Saraiva Pontes teve a sua primeira aproximação de feeling quando perante a perda dolorosa do seu mui amado cachorrinho Chiló, anteviu um mundo de carências afectivas várias e insuportáveis, que o levaram a escrever no caderninho azul - que era distribuído a todos os residentes - um enigmático 'tudo pelo coração'. Muitas esperanças estavam depositadas em FeelingLand pois não tinha ainda desaparecido a crença no poder regenerador da natureza humana desde que esta conseguisse de vez em quando apanhar um bocadinho de ar fresco.

As pessoas escolhidas para habitantes tinham principalmente de cumprir um requisito higiénico: toda a merda que fizessem: limpavam. Parecia simples e impediria, na opinião dos progenitores da ideia, o aparecimento de iluminados pois, como se sabe, há uma grande diferença entre a luz e o feeling, 'but only god knows, folks', estava inscrito por todo lado, apelando a uma certa humildade clericalizada.

Baba Saharim Custhar era uma mulher com uma notória tendência para viver em patamares de experimentalismo espiritual, aquilo a que vulgarmente se chama em ambientes mais poluídos pelo preconceito: chanfrada. Mas a sua vinda para FeelingLand trouxera-lhe uma curiosa adaptação, a consciência de que tinha uma missão a cumprir apegara-a às coisas mais prosaicas da vida ao ponto de ter registado no seu caderninho: 'tudo por pouco'.

Esta experiência da FeelingLand parecia poder correr alguns riscos de desaguar num minimalismo sentimental, numa grotesca e requentada hippiezação da encruzilhada humana. No entanto, os estudiosos e mentores da feelingopoly já tinham pré-avaliado o processo e estavam preparados para a existência duma primeira fase de 'fantasismo dislumbrativo simplista' ('fds') que se iria desvanecendo aos poucos; não foi pois de estranhar que Gaspar Rumsfildenskopf num domingo de sol tardio dos inícios de Outubro tivesse exclamado numa espécie de speaker's corner de FL: 'amarmo-nos mesmo muito é apenas um trava línguas'. Estava dado o mote para o início da segunda fase de feeling, a 'negação da simplicidade do mundo' ('nsm'). Por mais que parecesse uma caixa de pandora, por mais que se suspeitasse ser uma quintessência da antropologia criativa, o Feeling afinal poderia não ser mais que um processo comandado por variáveis estudáveis e manobráveis pelos polvos suspeitos do costume.

Chang Tang Song estava em FL já há dois anos quando teve a sua primeira experiência, com comprovação técnica, de feeling. Tudo se deu quando lhe pediram por um par de peúgas mais do que por um par de sapatos. Aparentemente - revelara-lhe o seu complexo emocio-cerebral - se só havia lugar à existência da peúga por causa da prévia existência do sapato, a primeira não deveria exigir mais recursos que este último. O caderninho foi sacado e recebeu de benção epigráfica: ' o aperfeiçoamento faz-se de fora para dentro'. Se os pobres são malucos e os ricos são excêntricos, os Feelinglanders eram urbanizadamente bafejados por uma percepção clean do mundo. A fase 'nsm' era uma verdadeira fase de transição, prepará-los-ia para o acto que os teóricos chamam de 'desembrulhar a criação', e várias famílias estavam já a entrar nesse período de síntese de feelings.

Face aos risco de proliferação de feelings errados, os teóricos da Feelingpoly determinaram que deveria começar a haver uma intervenção externa quando se entrasse plenamente na fase de 'full-feeling-fantasy' ('fff')  . Assim, enquanto os Saharim Custhar, ou os Saraiva Pontes, ou mesmo os Rumsfildenskopf, ou até os Tang Song se libertavam dos primeiros constrangimentos do catch-feelings e abriam as suas mentes à percepção do what really matter, foi necessário criar estruturas para recepcionar o produto, conservá-lo, e etiquetá-lo convenientemente para posterior distribuição pela comunidade mundial. Mas falávamos apenas da compreensão do mundo, não havia necessidade nem de histerias nem de luxos. Curiosamente, aqueles que recebiam os right feelings não eram os mesmos que os sabiam reconhecer e dar-lhe os adornos certos, pelo que rapidamente a FeelingLand acolheu um novo tipo de residentes: os feeling-filters. Daí a criar-se uma clivagem entre os feeling producers e os feeling filters foi um pulinho, e esse conflito acabou por minar o processo, deixando por um lado muito feeeling razoável desperdiçado e por outro lado muito falso feeling em condições de ir para o mercado. Parecia estar tudo a voltar ao princípio e a estatística começou a tomar conta da realidade: por cada 3 bons feelings produzidos era enviado um dirty-feeeling. Ramish Saharim Custhar foi até apanhado na teia do tráfico ilegal do dirty-feeling e foi expulso por ter enviado para o mercado duas fórmulas supostamente secretas relacionadas com o ponto de equilíbrio entre a riqueza das nações e a sua população, mas que afinal não passava de uma adaptação grosseira da receita de bolo de chocolate com açafrão roubada da dispensa de Filomena Saraiva Pontes. 

FeelingLand tornou-se uma cidade fantasma por volta do ano 2023, quando um surto de austerifobia contaminou um cabaz de feelings destinados a promover o investimento em campos de gladíolos nas calotas polares, a fim de enviar uma imagem colorida do Planeta para o espaço. O apartamento dos Rumsfildenskopf pode hoje ser visto no museu de arte sacra de Friburgo, onde se destaca um exaustor para maus feelings, dois retábulos com o Anjo S. Gabriel a fazer um churrasco com S. Jerónimo e S. Agostinho, e um terceiro com Lutero a segurar no espeto e Schumpeter a pôr molho picante nos frangos.

verso à terça

O mundo nunca está pronto
para o nascimento de uma criança


(Na urodziny dziecka
swiat nigdy nie jest gotowy)


Wistawa Szymborska , in Rozpoczeta Opowiesc, tradução de Lord James Google.

la nouvelle menstruine

Depois da banalização do mal, do bem, e do assim-assim, depois da banalização das uniões e das desuniões de facto, de direito, de uso e de costume, depois da banalização do sexo, da dívida, da democracia e do pacheco pereira, depois da banalização dos blogs, das bonecas insufláveis e dos campos de 18 buracos, resta para celebrar apenas a menopausa. Juliana Ester da Costa detectou a oportunidade, vendeu a sua parte numa empresa de fabrico e distribuição de scones ao domicílio e dedicou-se a organizar festas de despedida da fertilidade. Mulheres que finalmente se viam livres desse encargo ontológico de parir face à incursão selectiva dos espermatozóides mais inteligentes e atrevidos, mulheres que finalmente se viam a entrar em fase de útero decorativo, eram o mercado alvo de Ester. A  sua primeira cliente foi Helena Gusmão que dera cumprimento ao mandato bíblico por 4 honrosas vezes acrescidas de 2 falsos alarmes e um desmancho precoce originado pelo ataque fulminante dumas salmonelas marroquinas. Fora senhora de concupiscência racionalmente dirigida e nem sequer ao vizinho de baixo, um advogado especializado em direitos de autor e possuidor de fraseados com fortes poderes persuasivos, tinha propiciado uma tão ansiada comunhão copulativa & alternativa. Despedia-se assim duma fertilidade socialmente agraciada, psicologicamente tricotada e afectivamente compensadora. Estiveram presentes oito das suas melhores amigas, três ajudantes de farmácia, uma ginecologista, duas floristas e um especialista de arte ecográfica. Foi rotulada para o ocasião a edição especial dum branco frutado da Bacalhoa, e de presente recebeu um jogo de lençóis franjeados com um aproveitamento imaginativo do bordado do seu vestido da primeira comunhão, ideia da sua prima Guida que acabou por não poder estar presente por motivos inflamatórios mas impróprios para a descrição estética. Ester, ciente da importância do seu primeiro evento comercial de despedida-de-fertilidade, decidiu, por sua conta, enriquecer a festa com um grupo de musculados cuspidores de fogo da Nicarágua. Um sucesso: quatro bebedeiras medicamente confirmadas, dois momentos de carinho de índole lésbica, um jarro de tílias embebidas em pisang ambom e a revelação entusiástica de um teste de gravidez positivo numa das suas amigas ainda em idade parível. Juliana Ester sentiu-se confiante depois da estreia e avançou destemida no negócio. Antes de terminar um ano de actividade já tinha ajudado a despedirem-se da era-da-fertilidade quatro executivas do sector da cosmética e cinco da higiene íntima, duas editoras-chefe, uma escritora de roteiros para revistas de viagens, uma pintora de azulejos, três professoras de francês, uma veterinária e duas críticas literárias. Pode dizer-se sem exageros que ajudava a franquear a menopausa das mulheres propiciando-lhes um sereno e gozoso adeus à ovulação.
Rita Coutinho passara pelos seus primeiros afrontamentos com uma irritação comedida, e dissera de si para os seus estrógenos: meus filhos, ide-vos foder. E telefonou de seguida para Juliana. Foi num ápice que combinaram tudo: uma entrada faustosa pela menopausa adentro; queria deixar a fertilidade como um toiro que se afasta gloriosamente da arena deixando todos a sentirem-se uns rabejadores precoces. Juliana, com orçamento praticamente ilimitado, iria transformar essa festa retumbante numas inolvidáveis Ovaríadas do Desassossego. Rita convidou todas as amigas com quem tinha, durante o seu Período Fecundolítico, confidenciado angústias e esperanças, dilatações e estreitamentos, lubrificações e securas, exigindo-lhes um dress code que incluísse uma máscara alusiva à fertilidade e, sem quaisquer preocupações com a comparticipação financeira estatal, tudo estaria por conta dela, a nova deusa da menopausa, uma Menstrua Sagrada. Como num regresso às ancestrais manifestações dos valores e mistérios antropológicos mais básicos antevia-se a inauguração dum ritual que deixaria as tribos de todo o mundo encolhidas de vergonha e espanto. Luísa Passarinho, a sua grande companheira de rambóias universitárias, foi a primeira a chegar e vinha mascarada de espermatozóide com duas caudas. Perante a estranheza que provocou, explicou: é aquela coisa do eros e do tanatos, vem logo no fluxo ejaculatório: a virilidade é sempre um pau de dois bicos. Estava dado o mote. Não foi pois de estranhar que aparecesse um pouco de tudo, desde pílulas em veludo e cetim a deusas mamalhudas, desde vaginas gigantes a afrodites com lencinho no cabelo e espanador do pó na mão, revelando que a iconografia da fertilidade feminina é um mundo tão rico e surpreendente quanto as finanças da pérola do atlântico.
Ester tinha conseguido com a festa de Ritinha Coutinho elevar o seu conceito de festa-da-menopausa a um estatuto de quebra-mitos, desafiando convenções e alargando o grande horizonte das leis do condicionamento hormonal para lá do bojador ovárico. Chamavam-lhe agora a Mary Quant Uterina, inaugurando uma nova geração de deusas pós-Cibelianas e renovando todo o ideal feminista, transformado agora na nova trompa de falópio da humanidade: a libertação do espartilho hormonal da mulher representava a união da natureza com a espiritualidade. E assim Juliana foi criando à sua volta não só um empreendimento comercial sólido como também uma sólida ideologia de pós-fecundidade, tornando-se numa espécie de Ferran Adrià das hormonas, abordando cada cliente menopáusica como quem confecciona um bouquet místico de joie de vivre com raminhos de gloriosa emancipação: la nouvelle menstruine.