Encomendam-se passados, paga-se com futuros.

«viver é sempre escrever sem borracha, não se pode emendar o que ficou para trás; se {o remorso} pudesse, ao menos, ajudar a remendar o que fica para a frente já não seria mau»

A.Lobo Antunes ( DN, 21 de Outubro de 2000)
Tu queres ver

que eu era um ganda maricas e não fazia uma lista ó um balanço ó lá o que é sobre aquilo que marcou o ano:


1. A injecção de xanax que enfiaram há uns tempos naquele rapaz o bill murry e que chegou ao ponto da minha mulher me fazer uma festa durante o ‘flores partidas’. ( mas depois descobri que era o movimento do braço para conter alguma expressão mais inconveniente ou um intermitente bocejar)

2. Como felizmente passou mais um ano em que não li nenhum livro completo queria aqui salientar uma frase da donna tartt que ainda me rendeu uma sms de belo efeito :«nós pensamos que temos muitos desejos, mas na verdade temos apenas um. (...) viver para sempre»

3. Destaco o disco do jamie lidell (‘multiply’) mas essencialmente porque foi o primeiro que conseguiu sacar da minha filha um carinhoso e revolucionário ( se bem que com alguns laivos comiserativos vejo agora uns meses depois): «emprestas-me esse».

4. Sendo o ano do desaparecimento político do nosso narciso miranda isso acaba por ensombrar todos os outros factos politicos relevantes como sejam o regresso de fatinha ou o casamento de carlos com camila

5. A dinâmica (entremeada de dialéctica) imprimida pelo meu filho mais novo nas conversas familiares na sequência dos seus visionamentos apócrifos dos ‘morangos com açucar’. Educar passou ao estatuto de conceito, e a oração mais repetida cá em casa passou a ser: «eu nem acredito nas merdas que este puto diz». ( se bem que aquela ideia de o ter levado a ver a Frida Khalo no verão também pode não ter ajudado)

6. Nesta coisa dos blogues o ano fica definitivamente marcado pelo facto do seu registo e estilo (refiro-me aos aparentemente mais lidos e mais conhecidos, claro) ter sido completamente assimilado pelos tiques do jornalismo/comentarismo oficial: não arriscam genuinamente a pensar, e falam geralmente uns para os outros incapazes de simular um público imaginário e ‘irrelevante’e intrinsecamente desconfiado. Deste contexto salvam-se – dos que vou lendo – alguma natureza do mal, algum mar salgado, algum blogame mucho. De resto mantém- se a influência da angústia existencialista e da hormonodependência, o que, já se sabe, tem dias, e a mais confrangedora previsibilidade encontra-se naqueles que querem fugir dela. E há um bom blog de escrita curtinha: o melancómico.

7. Há depois também aquela questão da Soraya do Crime do Padre Amaro. O meu diagnóstico é que se o Bergman ainda tivesse ido a tempo punha-a no Saraband e o velho até dançava. Foi uma pena; de resto os lapsos do costume: o Mário Crespo a juntar ao cabeleireiro que escolhia os penteados da constança cunha e sá nas entrevistas, claro.

8. Depois foi o ano em que Hans Kung se encontrou com o Papa Bento e isso acaba por nos deixar mais à vontade para dizer que o sto Agostinho deixou armadilhada a coisa de tal maneira que agora um gajo pode ter de ir repescar o Orígenes que, como se sabe, já não os terá no sítio.

9. Peseiro. ( acho que chega escrever o nome)

10. Assinalo também o barrete ( não é camauro, note-se) que enfiei a comprar uma daquelas camisolas apaneleiradas com fechozinho e que a única coisa boa que têm é nunca se correr o risco de lá entalar algo de importante.

Juro que tentei fazer um balanço minimalista, mas esta coisa de escrever à toa é mais forte do que um vibrador num ‘blogue de gajas’.
Continuação de Boas Festas

Cake
‘short skirt / long jacket’


I want a girl with a mind like a diamond,
I want a girl who knows what's best,
I want a girl with shoes that cut,
and eyes that burn like cigarettes.

I want a girl with the right allocations,
Who is fast, and thorough, and sharp as a tack.
She's playing with her jewelry,
She's putting up her hair,
She's touring the facility and picking up slack.
I want a girl with a short skirt and a long jacket.

I want a girl who gets up early, (gets up early!)
I want a girl who stays up late, (stays up late!)
I want a girl with uninterrupted prosperity,(uninterrupted!)
Who uses a machete, to cut through red tape.
With fingernails that shine like justice,
and a voice that is dark like tinted glass,
She is fast, and thorough, and sharp as a tack.
She's touring the facility and picking up slack.
I want a girl with a short skirt and a long, long jacket.
(na na na na.....)

I want a girl with the smooth liquidation, (smooth liquidation!)
I want a girl with good dividends, (good dividends!)
At Citibank we will meet accidentally, (meet accidentally!)
We start to talk when she borrows my pen.
She wants a car with a cup holder-arm rest,
She wants a car that will get her there.
She's changing her name from Kitty to Karen,
She's trading her MG for a white, Chrysler LeBaron
I want a girl with a short skirt and a long jacket.
Christmatrix

O grosso das heresias que animaram os primeiros séculos do Cristianismo andavam à volta essencialmente da natureza humana e divina de Jesus e respectivos adereços. Com o aparecimento da PSPortatil estas questões poderão voltar à liça porque, porra, um dogma não é de ferro. Prevejo uma contra reforma da terceira geração baseada num jogo entre Nestorianos e Monofisistas em que o Menino Jesus é raptado por um copta que vive amantizado com uma presbiteriana, e ganha o que conseguir obrigar um montanista a entrar num restaurante sem utilizar a tecla F1 nem fugir para os ortodoxos. A Nintendo se ainda for a tempo poderia ficar com os royalties das seitas gnósticas, ganhando quem provocasse mais cismas sem recurso a iconoclastas.

Acho que fazem falta hereges com mais tomates e menos direitos de autor.

Mas se Deus quiser ainda voltarei a esta coisa das heresias porque vale a pena. Estão para a fé como a insegurança, o ciúme e um bocadinho de obsessão para o amor: imprescindíveis para anatemizar credos líricos montados à pressa, e essenciais para distinguir corações que não passam de bases de dados. Mas aviso, as melhores ainda são as que andam à volta da Liberdade e da Graça; desde que a alma e a carola aguentem andar assim uns tempos com uma espécie de religião tipo ‘garota de programa’.
Bom natal

Ternura & carinho. Hoje coloquei como missão natalícia recuperar a reputação destas duas palavras.
O decadentismo ético de teor existencialista que assola a espécie e a faz carregar cada vez mais um pessimismo irónico-expiatório (topem-me só a categoria deste intróito, que me isenta praticamente de mais quaisquer outras erudições) teve, entre muitos outros efeitos perversos, este de relegar para as caixas negras do discurso intimista-amoroso ou do discurso de registo humorístico-sarcástico estas duas palavras de tanto conteúdo e riqueza, diria mais: preciosidades de corpo e de alma.

Aparentemente as suas terminações indiciariam dois opostos estéticos: o ‘ura’ e o ‘inho’ - fazendo lembrar o anúncio antigo das canetas BIC : ‘ BIC laranja da escrita fina, BIC cristal da escrita normal’. No entanto estamos na presença de dois vectores duma mesma força que poderão funcionar como autênticos acumuladores de energia para usar naqueles momentos em que até o timbre da voz do alheio nos incomoda. (pessoal de Boliqueime incluído, claro)

Através da sua desagradável terminação, a ‘ternura’ acaba por ir buscar aos parentes afastados ‘cozedura’ e ‘assadura’ a gourmetização que necessita para a sua real função, acabando por não dar grande espaço de manobra a uma prima afastada, a ‘candura’, que geralmente se apresenta num registo sonsiolítico. No entanto, é com as primas minimalistas ’fura’ e ‘dura’ (esta sempre com o atractivo especial de ter dois sentidos) que alcança toda a sua pujança mais sensual, e porque não dizê-lo: filha de toda a erecta carnalidade. Neste capítulo ‘car-inho’ tem outras potencialidades, inclusive apresenta mesmo originais sinergias osculo-anatómico-cinéticas com alguns movimentos (do mesmo nível das sinergias demonstradas pelo peitinho delicado dos jogadores do Benfica que começa como se sabe na zona do umbigo e só termina na falangeta)

O movimento tremelicante da língua nos ‘r’ é também diferente nas duas palavras; como sabemos, quando o movimento da língua nos ‘r’ se expande para o céu-da-boca - tal como sempre acontece quando vem seguido de um ‘n’ - em ‘ternura’ realiza-se um dos mais procurados êxtases de todo o complexo peri-labial, o que, diga-se de passagem, esta palavra bem merece, pois muitas vezes vem associada – injustamente - a êxtases de segunda categoria, os chamados rodriguinhos, na vida real. Em ‘carinho’, temos de reconhecer, a língua apaneleira-se um pouco no ‘r’ , mas também não se justificará fazer uma prótese dentária para corrigir este fenómeno, tudo se pode resolver com o recurso a um dos típicos comportamentos discursivos de emergência, o famoso ‘falar à bebé’ obliterando simbolicamente a referida letra e assim a coisa safa-se.

Há no entanto um tema, que chega quase a ser uma temática nos seus melhores dias, que eu deixo para o fim, mas que deverá ser tomado em especial atenção, e que tem a ver com a tendência de exagerada substantivação personificante destes dois termos. E é aqui que se pode jogar toda a subversão paralisante (acabado em ‘ante’ também havia a palavra ‘secante’ mas agora tirando este post não estou a ver nada para a aproveitar) . A perda do grau de abstracção intrínseco a estas duas palavras (e eu agora fui trocar de roupa porque os meus poros já não aguentaram tanta pressão semântica) faz com que elas frequentemente percam a carga puramente romântica e sensorial e se envolvam numa corporalidade de registo ontológico, que se revela em todo o seu explendor (com ‘x’ claro) com a utilização das palavras em análise (‘carinho’ ou ‘ternura’) ao interpelar uma pessoa. Isso sim é o arrepio dos arrepios.
Olha, perdi-me.

E no fundo isto tudo era para dizer que estas palavras deverão ser usadas sem espartilhos retóricos, nem subdogmas gramaticais, nem half-enconanços fonéticos. O menino Jesus ‘nas palhinhas deitado’ é obviamente uma ternura, e uma miúda gosta mais duma festa carinhosa na franja do que dum gajo chamado Bob Dylan a grasnar-lhe no intervalo das madeixas e entre duas snifadelas de incenso. E já nem falo de beijos à francesa, claro. God is everywhere, livros do Saramago e esculturas do Rodin incluídos, e eu cá se fosse ao fisco congelava primeiro os devedores antes de lhes ir aos bens.
Amores ainda em estado praticamente novo

Desenjoando um pouco da democracia com os amores dum ditador à portuguesa do tempo em que não havia debates, nem VPV escrevia crónicas, nem MMG apresentava telejornais. Mas já o Benfica era levado ao colo, e Cunhal tinha sido preso com Carolina Loff, a tal que «trajando maillot, tinha uma influência enorme para a captação de vontades» (*)


«Vai álgido o tempo e invernoso, mas apesar disso são longos os passeios nos arredores da aldeia, ou pelos córregos da Urgeiriça e do Buçaco. Christine está em puro enlevo, e Salazar possuído por sentimento que há muito não conseguia. (...) Agora, que a vida para ela mudou de sentido e de rosto, promete a Salazar ser paciente e doce, e obedecer-lhe para sempre. (...) E diz mais a Salazar: beija-lhe as mãos, num amor imenso, total: e que beija as suas cartas.»

in ‘Salazar’ – vol. IV – ‘o ataque’, de Franco Nogueira, Liv. Civilização, pags 251,252

(*) retirado do texto dos arquivos da Pide citados em ‘Alvaro Cunhal’- volume I - de J. Pacheco Pereira, pag 381
My M.’Mena Mónica (condensed) side of the soul

Naquele ano apenas me faltou aparecer um anjo e ir às putas. L.Freud tinha sido nomeado para a short list do Turner e eu lia duma forma diferente pela primeira vez aquele familiar dele mais conhecido, coincidência ou não passei a ter sonhos mais descontrolados e imprecisos, pus Dostoievski numa prateleira, por um triz Anna K. não foi para a enfardadeira e agarrei-me à pele. Alguma sabedoria tinha-me ensinado que desenfreado era a pior forma de galopar, e isso fez-me rodear fossos que luziam como espelhos de água, mas não deixava de lutar entre uma vertigem de mustang e um entardecer de cavalo de cortesia. Afligia as hostes com uma pose de playboy a rezar o terço já me chegaram a recapitular. Pela primeira vez a frieza duma mão certamente mal afagada afastou-me duma fornicação desejada e também saíram as primeiras lágrimas depois duma canção certamente também ouvida vezes demais. Mas Deus esteve sempre por perto, está na Sua natureza aliás (deve ser uma ‘divindade de proximidade’ como diria agora o poeta-candidato ) e os melhores pecados são aqueles que afinal não eram; a moral começou a eliptizar-se (é arrepiantemente parecido com eclipsar-se, porra) numa defesa matemática, num desencruzilhadamento cartesiano. Olhava para os filósofos gregos com desdém, tinham-me fodido várias idas à praia, iria trocá-los por existencialistas foi a minha primeira ideia de vingança, mas nenhuma miúda me quis acompanhar nessa viagem, nessa altura os cremes não seriam tão bons certamente, preferiam bons jantares, o pior que pode acontecer a um homem é ter dinheiro para jantar todos os dias nos restaurantes da moda, acreditem, se bem que o primeiro beijo que me acasalou foi à saída dum deles, já na altura os versos do papel da factura também rimavam, mas tive de me deixar rápido desse estrofeamento, o inconsciente não era parvo e preferia viver Lacana e hibernadamente, porque nem o muro de Berlim ainda tinha caído, nem a Andie MacDowell me tinha dado a maior nega da minha vida (mas ela também não deve ter ficado bem da cena porque depois foi fazer ‘sexo, mentiras e video’)
Estava-se naquele ano, pois, e Madonna não tardaria muito a ir vender Pepsi Cola ‘Like a Prayer’; a minha vida sonhou por momentos poder ser vivida entre «colhendo doce fruito» (1) ou a «cuidar das rosas» (2), mas realmente se adivinhasse ter-me-ia era preparado para fazer parar um tanque em Tiananmen em vez de montar operações de privatizações de bancos até às tantas da noite, o que nem me deixava ler a Anais N. em condições quanto mais voltar ao cirílico; nunca mais leria ‘Um herói do nosso tempo’ no original. Chateava-me fazer gajos ricos que não conheciam Lermontov, mas tinha sido treinado para isso e tinha-se esfumado a minha oportunidade sonhada de montar um negócio clandestino de bíblias em S.Petersburgo; ao meu lado iam-se casando, repletos duma prenupcialidade de lista, davam à costa as primeiras mulheres enciumadas das amizades dos seus agora maridos, a realidade mostrava-se uma forte possibilidade para tema dum best-seller-light, mas a ironia e o pessimismo ainda não se apresentavam como o lubrificante certo para a grande foda dos dias e falava-se da experiência e da novidade como duas manas afrodisíacas de forte compatibilidade.
João Paulo II estava prestes a receber Gorbatchov, a grande eslavia iria ser libertada muito antes das mulheres se poderem consagrar e eu recomeçava a fornicar, esquecendo mestres e apenas confiando no vento para me afastar das concubinas e das virgens profissionais. Lia apenas os ‘Actos dos Apóstolos’ porque geriam mais serenamente a função da metáfora, mas começava a sentir alguma saudade de gozar com o Chesterton, o Tolkien e os poetas parnasianos, e como não se podia levar Pavese para a neve, nem ser visto a ler Beckett num monte alentejano, começava o turismo industrial falhando algumas missas de domingo, mas acabando por só encontrar infidelidades conjugais em gajos a descair para o gordo e que não faziam a mais pequena ideia de quem era Kundera. Felizmente conservei aquele distanciamento da política muito balzaquiano que pouco mais encontrava nela do que um objecto literário ao mesmo nível da perfumaria; só que nessa altura eu também bastava cheirar uma zurrapa qualquer do paço rabane no perímetro de duas coxas que mudava de idealista para pragmático em segundos, que o Deus dos teólogos me perdoe; não perdoou totalmente, acho; mas poupou-me a Kierkegaard à base de miúdas arejadas e com bom ciclo menstrual. Não liguem, eu sempre fui muito dado a achar coisas, noutro dia até via ossos onde estavam sapatos de salto alto.
A melhor sensação do mundo é sermos ingénuos depois de julgar já ter sabido tudo.

E a vida não passa duma mnemónica.

(1) esta frase pode ler-se em ‘educação sentimental’
(2) esta frase pode ler-se em ‘jardim de luz’
(e como é óbvio o conteúdo do suprapostado não tem rigorosamente nada a ver com qualquer dos blogs citados nem com qualquer outro por citar)
Hamlet meteu baixa

in ordinem adducere


«O homem prudente encobre a sua sabedoria,
(...)
Na boca do insensato está um rebento de orgulho»

Provérbios, 12,23 e 14,3
My Tony de Matos side of the soul

O Dicionário não ilustrado hoje mostra que só o amor nos salva. Mas pelo sim pelo não eu cá levava bóia. As frases do nosso enamoramento em tantas entradas quantos os dias que o mês já leva. ( 1141 a 1149)

‘Nunca compreenderás o quanto te amo’ – Constatação de registo agnosticizante que revela uma condição de irracionalidade entre a angústia fragilizante e o fascínio pelos carapauzinhos fritos dum dia para o outro

‘Nunca conseguirei dizer o quanto te amo’ – Constatação de registo peri-afásico, que corre o risco de descambar numa gestualidade demasiado exuberante e que geralmente coloca a boca em locais originalmente apenas destinados às mãos e ao Dystron

‘Amar-te-ei até sucumbir’ – Revelação de um amor que apenas é refém da nossa condição biológica, e que vai de lua nova em lua nova olhando para as marés como um surfista quando sonha com aquela onda gigante que lhe daria para impressionar definitivamente as miúdas.

‘Causa-me dor tanto amor’ – Fenómeno verificável nalgumas relações amorosas em que a epidural da paixão foi dada numa zona mais descaída.

‘Não vejo como te possa amar mais, mas todos os dias cresce o meu amor por ti’ – Problema de índole cruzada entre a matemática e a lógica mas que encontra na libertação da escala logarítmica do inconsciente aquilo que parecia poder correr o risco de ovalizar em excesso no contacto com as abcissas da realidade e com o mau hálito.

‘Não me parecia possível um amor assim’ – Quando sentimos o coração balançando entre um fenómeno do Entroncamento e um bungee jumping. Geralmente acaba-se a camomila. Ou então sossegadinhos na cama com a Mila.

‘Este amor é a razão da minha existência’ – Constatação de registo metafísico que combina geralmente muito bem com momentos contemplativos adornados com visa, e com cruzeiros expiatórios em forma de veleiro serpenteando pelas ilhas gregas.

‘Sofrerei sempre por não saber se me amas com a mesma intensidade que eu’ – Típico problema da álgebra contabilística em que o ‘deve’ ao não se mostrar igual ao ‘haver’ teremos sempre uma auditoria à perna. Muitos conseguem ir sobrevivendo com umas ‘reservas’ ligeiras nas contas

‘Amo-te tanto que só te vejo a ti’ – Reflexo do mecanismo eucaliptizante do fenómeno amoroso que transforma tudo o que está à volta do ser amado em areal sem interesse mesmo que se vestisse do brilho ilusório da poeira do meteorito do desejo.
Desmaker residence
Check out lover

Aprimorava especialmente os rituais de saída. Entusiasmava-se a dar pormenores sobre o consumo até ao esgotamento do minibar, reflectia sobre os canais obscenos pagos à parte, sobre os cheiros a alfazema dos carrinhos das camareiras, sobre as coxas medidas pelo olhar no bar do último andar, sobre os olhares furtivos de elevador, todos eles dispensando motivos e provocando ardor; e mesmo que não lhe perguntassem desenvolvia com alguma minúcia as peripécias da sua estadia, em que nenhuma noite teria sido fria, acabando por seduzir uma plateia de grumetes, recepcionistas de saia travada e outros comensais de face corada que ficavam encantados pela forma como ele descobria tanta riqueza num banal fim de semana em meia pensão, sem sexo desprotegido, nem nenhum amor escondido numa suite com crucifixo e com vista para Valedicere, e como desencantava encantos escondidos no acto de se ir embora cantando pestanejares de canto de olho.
Mas ele era um profissional da saudade, tricotava nós na garganta, vendia sentimentos de perca a retalho, e suspiros a grosso, promovia sessões de adeus e desilusão, possuía um catálogo próprio de amores incompletos, fornecia traumas de ausência à medida e entregava ambíguos ‘the ends’ enlaçados ao domicílio. O seu cartão de visitas dizia ‘empreiteiro de despedidas’, o seu doutoramento tinha sido sobre as ‘Grandes rupturas duma alma sangrando em falta’ e assinava o cartão de crédito com o nome de ‘desfazendeiro’ deixando revelar um emparcelamento muito peculiar do seu próprio coração. Extasiava-se olhando metódica e friamente para trás, demonstrando que o abandono era o melhor negócio, partir o acto mais nobre, e que o desprendimento era a prisão mais eficaz. O seu orgasmo estava em ir-se.
santinho da ladeira

Uma das conclusões a que cheguei depois de ver as reportagens sobre Sá Carneiro é que todos envelheceram imenso mas ele está na mesma.
Apenas picando o ponto

Tudo tem rosto
Tem tudo olhar...
Nevoa-antegosto
Do decifrar!

Sobe em meu sêr
Um mêdo a Deus...
Quero não ver
Os mudos ceus...
Porque o seu claro
Azul sem fim
Sem ter olhos olha
Com olhos p’ra mim...

Paro em meu frio
Limiar da alma...
Como (?) o arrepio
Que cerca a calma

Em que me cerco
De Deus e teu
E em mim me perco
Por todo o céu.

do F.P. ( do espólio)
Revelações da córnea

«O meu deus é apenas a transcendência que vislumbro a espaços nos olhos dos meus filhos» leio no controversa maresia. Primeiro achei aquele tipo de frase de belo efeito para consumo de agnóstico entre dois scones, depois senti ali uma bonita lamechice literária de mãe, depois vi um lugar comum sacudindo a desmetafisiquizada incomodidade de não acreditar em Deus, depois fiquei lixado e invejoso por não sentir transcendência nenhuma quando vejo os olhos dos meus filhos, depois ainda pedi ao sacana do meu filho mais novo para parar de piscar os olhos, e antes de ir ao que interessa ainda pensei que Deus se manifesta de muita maneira mas privilegia as dissimuladas porque infelizmente gastou a verba para milagres pirotécnicos há uns anos atrás.

É muito difícil encontrar Deus se apenas o procuramos na bondade das coisas ou das pessoas, como quem procura Neptuno no recheio duma santola, e é por isso que ainda dou algum crédito à filosofia, à teologia e à metafísica que lá se vão equilibrando, fugindo e relativizando alguma poeira ou vinagre ou sentimentalite que a realidade vai cozinhando. Não se sabe no que o Altíssimo pensava quando achou que, e como, se tinha de revelar; certamente fez um balanço sobre o ‘livre arbítrio’ e sobre a ‘predestinação’, calculou que intelectualmente nunca conseguiremos fugir totalmente da dependência de nenhuma delas, e arriscou naquele filmaço de enviar o seu Filho antes da geração de Hollywood, CNN e Microsoft, deixando tantas variáveis em aberto quantas as equações por resolver.

Acreditar em Deus, no Deus expresso na Cristandade, é um equilíbrio entre o coração, a razão e a revelação. Dizer «o meu deus é apenas» mostra essencialmente uma gritante menorização da nossa condição – não consciente, claro – uma condição que para ver mais além (uma tal de transcendência) só o conseguiria a espaços por exemplo através dos olhos dos filhos. Mas até encontro bastantes méritos neste mitigado método: aposto que se olharmos para os olhos dos nossos filhos, depois se olharmos para os nossos próprios olhos (um espelhito de cabeleireiro serve) e finalmente se acabarmos por olhar para os olhos duma velhita doente a rezar (ver o Ricardo a beijar a medalhinha é opcional), Deus há-de acabar por aparecer nem que seja aos ziguezagues envolto numa neblinada, controversa e fresca maresia, mesmo que não venha caminhando pelas águas chupando alegremente uns percebes.

Mas chego aqui e a verdadeira conclusão que alcanço é que acredito em Deus principalmente porque a minha mãe me disse para acreditar, certamente olhando-me com aquele mesmo olhar com que a VdM olha para os seus filhos.