wicked games
«Ver, ouvir e calar»
As Broncas de Caná & Os Mexilhões no Templo

É de fácil constatação que as melhores considerações sobre Deus vêm daqueles que supostamente não acreditam nele. Não seria difícil arranjar meia dúzia de boas explicações para isto, e, tivesse esta tasca um patrocínio em condições, chegava-se à dúzia de Nietzschezadas devidamente Freudadas sem esforço. No entanto, a mais interessante é a que se prende com isto: o crente, lá no fundo, é um lamechas vaidoso, e, em vez de fazer o servicinho de tentar definir Deus com um paleio em condições, passeia a sua fé que nem Nuno Gomes passeia o penteado, ou seja, absolutamente focado nele, alheado de tudo o resto, perdendo-se contemplativamente na parte mais religiosa do futebol que é, como bem sabemos, o chamado ‘último terço campo’.

O crente tem também outro problema de natureza prática que se prende com o seu ‘complexo apologético’( mais Junguiano, registe-se): é instado a convencer, a atrair, a proselitar e pode inclusivamente acanhar-se ao lhe apetecer fazer um trolaró dos Pet Shop Boys enquanto explicasse a contingência tomista. O dito não crente está mais livre, regra geral está positivamente a borrifar-se para o que irão pensar do que ele diz, desde que depois tenha graveto para comprar os medicamentos para a próstata. O ‘reformismo evangélico’ logrou situar-se um pouco no meio, pois é o ‘Allô Allô’ do fenómeno religioso, ou seja, a dúvida é tratada como um infiltrado com uma fala estranha que namora – sem apalpar - a miúda que trata dos arranjos de flores durante o decantamento exegético.


Quando Nietzsche diz que «Deus também tem o seu inferno; é o seu amor pelos homens» qualquer tipo bem intencionado, que oiça as entrevistas do Mário Crespo, trauteie músicas do Lloyd Cole, e, inclusivamente, até tenha os filhos baptizados pelo p. João Seabra, pode apetecer-lhe enfiar com um daqueles lápis Viarco bem afiado pelo cu acima, no entanto, se virmos bem, Nietzsche – agora vou fazer uma pausa, sorry, está ali a falar o Saldanha Sanches, outros dos homens que também me aproxima bastante da existência de Deus, apesar de me fazer desconfiar daquela porra da arca de noé, ou então alguma sacana duma espécie não devia ter embarcado, adiante – voltei, Nietzsche, ia eu dizendo, vendo bem, faz-nos olhar para Deus com mais ternura, e inclusivamente dá-nos uma visão refrescante sobre os dias que correm ao afirmar que «a virtude consiste em permanecer tranquilamente no pântano», o que, para além de nos demonstrar que Guterres era um pecador, é praticamente a chave para nos libertar do dogma existencialista que nos atravessa desde os anúncios da Triumph ao Tom Waits.

Mas uma das coisas que Niezche não podia saber foi-nos ontem revelado por Rui Santos: «Helder Postiga é um jogador que se realiza nos últimos trinta metros». Ora isto é uma descrição metafórica de toda a Paixão e Redenção que faria S. Lucas encher-se de vergonha e dedicar-se a fazer os relatos do Cafarnaum – Tiberíadeszero, e poria Pilatos a antecipar a teoria Lacaniana: a minha consciência é uma coisa mas eu sou outra bem diferente. Esta agora se calhar não se percebe bem mas escrever isto a fazer bonecos do ovo Kinder ao mesmo tempo não é fácil, foda-se ( o gajito ainda lê mal não se apoquentem)

E isto tudo serviu para chegar à verdadeira analogia que trazia em mente. Os lagartos não precisam de ganhar campeonatos, isso já toda a gente sabe, isso são espartilhos de genoma que transportam os tripeiros, assim como um católico não precisa de saber definir Deus tal qual, porque isso nada lhe adianta no negócio das rifas na paróquia, e então, qual Nietzsche, eu diria que « o campeonato foi inventado para aqueles que são supérfluos» ( e a ver se dão uma injecção de Atarax ao Nani senão qualquer dia o gajo parece o Douala)

( vamos lá ver se o Timshel agora não me lixa com uma música dos Decemberists, ou uma merda assim)

«Que el desierto es mas tierno y la espina besa mejor» Lhasa de Sela

Luna Park

«O homem digno desse nome só ama duas coisas: o perigo e o jogo. É por isso que deseja a mulher, que é o mais perigoso dos brinquedos» F. Nietzche, in 'Assim Falava Zaratrusta' , Guimarães ed, pg 84
Todo um programa

Perfeito, perfeito seria substituir o Rui Zink pelo Paulo Bento.

Sentido de humor

«E foram mais os mortos que matou na sua morte dos que matara na sua vida.»

Bíblia: Antigo Testamento, «Livro dos Juízes», Cap.16 v.30
ideiafix

fx é diferente de ie

«a melancolia é um desporto» Maria de Medeiros
tempo

«A memória da maior parte dos homens é um cemitério abandonado, onde jazem sem honras, mortos que eles deixaram de amar. Toda a dor prolongada insulta o seu esquecimento.» - Marguerite Yourcenar in Memórias de Adriano (Ulisseia, 1981)

Albinoni - Adagio em G minor (Berlin Philharmonic, direcção Karajan)
Luna Park

«Quando é falso o erotismo? Quando se distrai com a festa da felicidade.» de Agustina Bessa-Luis, in ‘A Ronda da noite', pg 89
Luna Park

«Dove si grida non è vera scienza.» (1)

«Neque lugere neque indignari, sed intelligere.» (2)

(1) da Vinci e (2) Espinosa, citados por Ortega y Gasset em «A Desumanização da Arte»
Berlinde date

Conheciam-se de ouvir falar. Tinham-se tocado ao de leve num sonho breve e influenciado por uma música ligeira. Mas o momento tinha chegado e as suas mãos acabaram por se ir juntando com os tremores adequados à situação. O indicador dela pareceu-lhe uma obra directa de Deus, e o anelar dele foi uma visão de vício, a visão de uma carícia que um dia chegaria; mas antes de começarem a apreciar polegares os olhares cruzaram-se, sem um pestanejo, sem uma hesitação, pareciam dois bagos que tinham vivido sempre no mesmo arroz malandrinho, pois os sonhos serão sempre a melhor apresentação, tal como a imaginação é a melhor fornecedora de formigueiros. Ela pegou na pequena esfera de vidro e deixou-a cair, falhando a estocada propositadamente, estava ali para que ele lhe pegasse na mão e depois a levasse onde o Deus da física quisesse. Ele tinha umas mãos estranhas mas pareciam feitas para domar aqueles berlindes vadios e caprichosos. O suor começou a lubrificar-lhes a inocência e a timidez, as pontas e os nós já escorregavam entre si facilmente, e o primeiro laço fez-se ainda ela não tinha soprado a franja. Quando ele fez uma inesperada quincada de raspão ela largou o primeiro sorriso, e agarrou-lhe a mão como que dizendo «agora faz-me isso a mim», mas ele não percebeu e soprou o berlinde sujo daquela terra meio húmida que ainda transportava a memória duma chuva recente. Ela confidenciou-lhe que não gostava daquele gesto em que o dedo grande se desprendia do polegar, lembrava-lhe despedidas, mas ele, relativizava, e deu-lhe um toque desses no queixo, ela fechou os olhos e em simultaneo os dois pensaram que tinha sido outra coisa, talvez um beijo, talvez uma troca de peles, talvez uma coisa que já tinham ouvido falar. Os berlindes estavam espalhados e lembravam uma cidade às cores, e eles mediam os dedos, repartiam respirações, e disfarçavam os calores. As mãos juntas iam desenhando quilhas de barcos, setas afiadas, tranças mal apertadas, cabeças de animais, plantas carnívoras, e iam descobrindo a inevitabilidade daquela colagem de articulações, pois eram muito novos e ainda desconheciam a colagem de corações. Eram crianças, ambos iam fazer 10 anos, dobrariam o primeiro bojador digital, cada um encheria agora a sua vida com tantos anos quantos tinham as suas mãos, que agora eram íntimas, e tinham combinado secretamente, tão secretamente que nem eles proprios sabiam, ser este o dia em que se conheceriam; pegaram nos berlindes e fizeram uma promessa: a partir daí tudo rolaria, seriam filhos da combinação entre a pontaria e a inércia, do acaso e da vontade, da imaginação e do olhar, da força da perspectiva com a irregularidade do caminho.
«somos filhos da madrugada» (*)

o carlinhos e a rola

(*) «... mensageira pomba chamada / companheira da madrugada / quando a noite vier que venha / lá do cimo duma montanha», Zeca Afonso

(nota de edição: perto ou longe do Carvoeiro? a Nau dos Corvos ou a Tasca do Joel)
Pina Zita Moura Seabra, SA

O grupo de ‘desiludidos’ do Partido Comunista Português há muito que devia constituir uma bolsa preferencial de contratações para as empresas de head hunting. Tratar-se-ão de pessoas extremamente bem treinadas a viver focadas em objectivos, obstinadas, alinhadas na perfeição em cadeias de autoridade e responsabilidade, tão preparadas para a confidencialidade como para a propaganda, relativizadoras compulsivas de meios visando a absoluta concretização de fins, eficazes no manuseamento da memória selectiva, excelentes manipuladores da vontade alheia, habituados a fazer desabrochar novas necessidades concretas onde apenas marinavam meras ideologias longínquas, rotinados tanto a viver confinados a nichos fechados e protegidos, como a alastrar em meios improváveis e adversos, tão exímios organizadores como conspiradores, tão exímios a estruturar como a confundir, tão enguias como touros, rigorosos e implacáveis. Uma escola de gestão, sem alvará.
«vejam bem» (*)
a joaninha e o prazer da praia

(*) «que não há só gaivotas em terra / quando um homem se põe a pensar», Zeca Afonso

(nota técnica: o Trinca Espinhas, na praia de S. Torpes, fecha à 5ª feira...)

Deus nos livre

Sempre dissemos que éramos uma nação que confiava, e depois se desiludia, demasiado com os sebastianismos. Mas a história recente mostra-nos que não são tanto os sebastianismos que moveram o nosso povo sufragante, e sim antes o que-nos-livraísmo. Soares livrava-nos dos comunistas, Cavaco livrava-nos de Soares, Guterres livrava-nos de Cavaco, Barroso livrava-nos de Guterres, Sócrates livrava-nos de Santana Lopes, Cavaco voltava para nos livrar de Sampaio, enfim…a democracia livrava-nos da grande noite, a CEE livrava-nos da indigência, o diálogo livrava-nos da surdez arrogante, a tanga livrava-nos do pântano, o reformismo livrava-nos do ramram, Os ingleses dos franceses, o Nuno Alvares Pereira dos Espanhóis, O D.Pedro dos absolutistas, o camarão de Espinho dos caracóis, o Rui Veloso dos fadistas, a Mª José Morgado do Pinto da Costa, o salmão fumado do bacalhau em posta, a liberalização livrava-nos do crime, bem, perdi-me.

Judite de Sousa 1 - Quadratura do circulo 0

«Quero ser uma oposição tronco e não uma oposição pica pau» (acho que foi mesmo assim) Ribeiro e Castro, agorinha mesmo no ‘frente a frente’ com P.Portas, na RTP1
Luna Park

«Não há nada pior do que transformar a moral e o carácter em noções abstractas que alguns iluminados têm o direito de definir. Não há nada pior do que a república dos impolutos e dos justiceiros.»

Teresa de Sousa in «Público», 18 Abril 2007
troco uma de ‘geração perdida’ por duas de ‘esperanças adiadas’

Caiu em desuso a utilização do conceito de ‘a reserva da nação’ . Pode ser porque já se tenha consumido tudo, ou por se ter desvanecido com o esfumar de fronteiras nas zonas de palermice demarcada. Afinal o pântano era apenas o charco na maré vazia.
assino por baixo e por cima destas palavras

«há gentes que me odeiam que dá gosto»

(mas, para assinar de nome todo - ah! - ainda acrescento * e substituo **)

mind, mind me. i do love it. especialmente quando constato que há quem há anos siga tudo o que escrevo aqui (*), só para espumar. que paixão, gentes. não percam já a esperança de serem correspondidas/os. pode ser que um dia.

(pensando melhor, e atendendo aos últimos desenvolvimentos, estou a pensar, em vez de o mandar já para o céu ou para o depósito municipal ou lá o que é, leiloar o meu aspirador (**). licitação para o mail aqui da tasca)

(*) e, ah poizé!, xacáver... ali e ainda o que digo além ... obladi oblada life goes on bra lala how the life goes on...

(**) pastor
E agora um flic flac à rectaguarda

O regressado Eduardo Prado Coelho, ainda em regime de aquecimento, hoje, no Público, e a propósito da ambivalência da expressão ‘seu’ (uma das estrelas do affair inglêstécnicogate) diz que esta tanto poderá significar ‘máxima proximidade’ como ‘máximo distanciamento’ - ambivalências destas que até Freud já teria explicado e Picasso pintado (esta acrescentei eu).

Este toque entre extremos povoa a nossa vida desde o mais comezinho até àquilo que ela tem de mais profundo, desde o que ela tem de mais óbvio ao que ela tem de mais misterioso.

Evitando trazer para aqui o mecanismo ‘do religioso’ (Deus será por excelência o ser mais próximo e mais distante em simultâneo, e isso determinará a enorme diversidade que apresenta a relação que os homens têm com Ele) penso que nas relações humanas mais intensas também se vive essa estranha realidade do quanto mais próximo mais longe. E isto porquê?

1) Porque, ao não haver amor/amizade sem posse (o ‘seu’, lá está), e a posse encerrar em si também os dois extremos: a sedução extasiante de nos entregarmos a alguém de quem se gosta (se pensarmos bem, percebe-se o prazer físico que podem experimentar os místicos por se entregarem completamente nas mãos de Deus) e o receio de podermos ficar afectivamente dependentes de alguém.

2) Porque a intimidade é um estado algo doloroso. Já a ciência voltou a estar na moda avisar-nos que quanto mais avança mas afastada parece estar, pois também quanto mais próximos podemos estar de alguém- às vezes até parece que podemos respirar, pensar por ele - é muito comum aumentarem os níveis de incerteza porque se vai cada vez mais caminhando por ‘zonas’ nunca experimentadas em conjunto e, tantas vezes, até desconhecidas para cada um individualmente, o que provoca aquelas sensações tão comuns do ‘parece que nem te conheço’.

3) Todos temos algum medo de nos conhecermos totalmente, todos precisamos de ter uma fronteira mais bem desenhada quando há o risco de ‘excesso de cumplicidade’. É um clichet dizer que gostamos de guardar ‘coisas’ só para nós e gostamos que os outros possam ter ‘as coisas que são muito dele’ pois só assim se manteria aquela chama da surpresa e da revelação, aparentemente imprescindíveis para alimentar uma relação profunda e rica (outros dois conceitos também tão cheios quanto vazios, assinale-se).

(atenção vou abandalhar isto, já aguentei certinho mais de 25 linhas)

Basicamente estamos rodeados dum variado sortido de fodasses:

a) o coração é um organismo bastante comercial. Aprecia a exclusividade, arrepia-lhe a concorrência, exige sempre mais, detesta/adora dar garantias, precisa de clientela estável.

b) ’o outro’ não existe. É uma construção da filosofia moderna à falta de temas novos. Interiormente, os outros somos nós mas vestidos de outra maneira. Amamos outra pessoa porque queremos ser amados. O outro apenas suprime aquilo que nós não conseguimos dar a nós próprios; é um apêndice sentimental. Um anexo.

c) a rejeição é a única forma de nos conhecermos. Sermos preteridos, sermos ‘não escolhidos’ é condição essencial para a nossa construção. Quem nunca se sentiu abandonado por Deus o melhor que tem a fazer é enfrascar-se em comprimidos. Quem olha para quem ama e não vê alguém que o pode perfeitamente mandar às ortigas dum minuto para o outro, bem pode enfrascar-se em comprimidos também.

d) não há amores impossíveis. Há é gajos impossíveis de aturar.

e) na economia das relações há por vezes um recurso que inesperadamente se revela escasso: é a possibilidade. Ou seja, há sempre um momento crítico em que alguém pensa: ‘não é possível que gostem de mim assim tanto’. Lá está, muitas vezes gostarem muito de nós até parece que atrapalha. Dizem os psicologismos da moda: «todos precisamos de espaço». Mas eu acho que todos precisamos de vez em quando é de espaço para levar com um paninho encharcado nas fuças, no fundo, o verdadeiro simplex de toda a economia afectiva.
pontos e nós

Tinha uma escrita tão sintética que lhe pregaram na etiqueta: do not tumble dry.
é só terminar este pedacinho de... crumble, sim?

William Blake (1799-1800) - Eve tempted by the serpent, Victoria & Albert Museum, Londres
pontos e nós

Era tão ecologista que usava uma cascavel em vez do vibracall.
Onde andas Eva?

Um dos efeitos colaterais da chamada ‘emancipação da mulher’ é que hoje já não há mulheres verdadeiramente românticas, mulheres que gostem romanticamente, mulheres genuinamente atormentadas por uma paixão arrebatadora. Aquela ideia peregrina instalada de que as mulheres para lhe serem reconhecidas competências, ditas profissionais, se têm de esforçar mais do que os homens em semelhantes circunstancias, mesmo que tenha alguma verdade encavalitada, foi produzindo mulheres mais amargas, mais desconfiadas, mais camufladas, mais ironificadas, mais desbovaryzadas, mais deskareninezadas, mais descarletteo’harizadas; hoje, por exemplo, Baudelaire dedicar-se-ia a fazer anúncios para a super bock, Ingres pintaria costas de cadeiras, ou henry james iria mesmo desesperar para escrever uma linha que fosse sobre uma mulher apaixonada, porque, isso, na realidade já não existe, é coisa do passado; hoje a mulher é um espécime antropológico-social, um objecto de estudo para o António Barreto, um acaso anatómico-neuronal; a mulher como construção dum certo imaginário masculino, e essencial para o equilíbrio deste, desvaneceu-se, e agora já não há kants, nem nietzches, nem wittgensteins para porem água na fervura nesta desmaterialização, nesta diluição, nesta mineralização cristalizada, simbólica, semiótica, fenomenologica do feminino. Hoje, diga-se, até a educação moral está desprotegida e sem referências, pois a expressão ‘diabo com saias’ tem perdido o seu fulgor e tem sido substituída por ‘cubos de gelo em tailleur’.

A mulher, ao ter hipotecado a sua ternura por troca dum lufa lufa, ao ter trocado um coração palpitante por uma hermafroditação de sentimentos, deixou ao homem o lugar de canastrão da espécie, que se arrasta fazendo carinhas parvas, tentando acompanhar e compreender esta degeneração afectiva da fêmea.
Luna Park

«Quando conto a verdade (os braços em volta do pescoço), é uma mentira. Mas quando a calo, é verdade. Um direito íntimo ao segredo. Isso não diz respeito a ninguém, nem mesmo ao pescoço à volta do qual apertei os braços. É um assunto meu.», de M. Tsvetaeva a R. M. Rilke
E isto tudo porque está aqui a Maria João ao guinchos na televisão com os restos duma árvore de natal guatemalteca espalhados pelo cabelo

Há agora um tema delicodoce para decorar a crise académica de são bento, trata-se de ir falando dos professorinhos que tivemos nos tempos idos do liceu, os que nos marcaram e assim. Ora cá eu – Pedro Nunes, anos 70 (ai credo uma inconfidência) – só me lembro que as professoras se apaixonavam todas por mim, em especial as estagiárias de História, tirando uma morena cujo namorado tinha uma mota Ducati, mas também, na altura, o mais parecido que eu tinha com uma mota eram umas calças de ganga da wrangler; adiante, não era este o tema.

Existem duas formas levianas de abordar a realidade: ser-lhe indiferente ou escarafunchá-la. Os diazinhos que correm demonstram isto à saciedade.

Constato que em relação a Deus se passa um pouco o mesmo. Há também uma justa medida para nos metermos com Deus. A reforma protestante-evangélica veio colar-se um pouco ao ateísmo neste campo: ambos esmiuçam demasiado a divindade, e não largam a peúga ao Redentor e ao Criador; ou é porque disse assim, ou porque disse assado, ou não faz sentido por causa do big bang, ou não faz sentido por causa da linha que une o australopitecus afarensis ao homo habilis , alimentando renhaunhaus do hermenêutico ao geológico, e sem desfrutarem da verdadeira poesia da ‘coisa religiosa’(*) . Enfim, o bom do católico, alegre discípulo dum certo quessefodismo militante, ainda é o que vai garantindo uma sanidade mental equilibrada, que lhe permite compatibilizar um rico cozido à portuguesa na pascoela com uma merda dumas bolachas de água e sal na sexta feira santa, e isto sem precisar de andar a remoer nem no sermão da montanha nem no último livro dum parolo dum astrofísico qualquer, mas enfiando-lhe umas avé-marias no meio para temperar.

Sinceramente, gajo que nunca tenha sonhado que a catequista estava era apanhadinha por ele que até trocava o nome das virtudes cardeais com a turvação, nunca conseguirá encarar a realidade com a dose de ilusão que ela que precisa.


(*) nota técnica: esta última expressão já foi acrescentada (é mais um sinal dos tempos) domingo de manhã, depois da missa, de onde, já se sabe, qualquer católico vem com aquela sensação de que o mundo ainda tem uma resolução entre o poético e o económico , e, na ânsia de repor a verdade, me cumpre informar que as estagiárias de ciências da natureza também parece que eram uma brasa, mas já apareceram uns anos depois, não pude confirmar.
Luna Park

«Todas as minhas palavras concorrem para ti, e nenhuma consente que as outras lhe passem à frente.» de Rainer M. Rilke a M. Tsvetaeva.
dreamworks

Sentia-se uma personalidade tão rica que decidiu fazer carreira como personagem de sonhos. Chegou então a acordo com um consultório de psicanalistas para participar activamente nos sonhos dos seus pacientes, e, segundo programas bem definidos, apenas cobraria com base nos resultados obtidos. Só pedia dispensa para esquizofrenias violentas, porque lhe faziam mal à vesícula, e evitaria a todo o custo neuroses obsessivas porque lhe secavam muito a pele depois da barba. No resto, seria pau para toda a colher, fosse sonho de homem, fosse de mulher.

As primeiras experiências foram até muito promissoras. Fez logo de playboy nos sonhos duma semi- anoréxica, que reprimia um amor mal consumado com um primo muito afastado e experimentava tosse convulsa quando a humidade lhe atraiçoava a decência. Pois foi um instante enquanto a moça começou a acordar com suores mornos, e depois da terceira semana já estava a beber néctares de fruta a meio da noite. Ao fim de dois meses, depois dum sonho em que ele lhe chegou a chamar ‘flor do meu desejo’, ela levantou-se assarapantada e comeu de enfiada duas sandes de panado com um arroz de brócolos. O sonho estava estragado, mas o corpo dela já se apresentava bem roliço: tinha-se ganho uma mulher para todo o serviço.

Depois desse sucesso fulgurante foi-lhe dado um caso que já se considerava perdido: uma estrela do teatro de revista que se tinha apaixonado por um espectador; precisamente o contrário do que era normal e do que acontecia com as outras vedetas. Quando terminavam as exibições ela tinha imediatamente o impulso de saltar para o colo dele, um tipo enfezado, borbulhento, que nem sequer estava na primeira fila, gostava mais de casas de fados e passava o tempo a comer cajus salgados. Felizmente os papeis exigiam-lhe saltos altos e ela tropeçava sempre antes de se dar o vertiginoso e comprometedor enlace. Mas aquela paixão desgovernada, irracional, absolutamente inoportuna e quase embaraçosa, essa estava lá, e impedia-lhe uma menopausa confortável e livre de urticárias .
Só que em quinze dias o nosso homem-a-sonhos resolveu o assunto. Começou por lhe entrar pelos sonhos dentro fazendo de taxista contando-lhe histórias sobre as divas que já tinha transportado. Entre o enfado e curiosidade – duas traves mestras do espírito feminino – ela lá foi olhando para ele com o carinho crescente de quem suporta as pessoas simples e semi-complexadas como um caminho certinho para ganhar o céu. Certo dia, num sonho de quarta para quinta – os melhores sonhos eram a meio da semana, ainda está a ciência para perceber porquê, mas julga-se relacionado com a ‘quadratura do circulo’ - convidou-o para ir assistir à peça tendo-se ele sentado ao lado do incómodo objecto do desejo e da paixão doentia da paciente em terapia. Apresentavam-se agora ali os dois como rivais no campo aberto do seu onírico libido, um, sabedor do ardor que nela provocava, o outro, apenas tentando passar um bom bocado à borla – mal sabia ela que, naquele sonho, o tipo trabalhava para o psiquiatra à comissão – mas, à medida que avançava o sonho e a revista, ela via a paixão inconveniente desvanecer-se e transferir-se milagrosamente para o taxista. Depois dos encores acabaram por sair os dois de mão dada, mas, ó ingratidão, ele incluiu o tempo do espectáculo no tarifa da bandeirada. E era aí que estava o segredo: uma mulher a sentir-se excessivamente cobrada, estava assim a terapia consumada, seguiria a menopausa que nem uma poetisa encartada.

Tudo corria bem ao nosso limpa-psiques, foi-lhe até prometido um aumento, e um dia decidiu empreender numa tarefa mais arriscada. Tratava-se duma mulher demasiado desejada. Não havia homem que não lhe arrastasse a asa, não havia másculo joelho que não se reclinasse perante a sua glamourosa passagem. Só que, assim, não havia maneira de ela gostar realmente de alguém, pois era das que precisava de sentir que conquistava as pessoas contra a tendência inicial, tinha-lhe mesmo sido inculcado que era o desafio que conferia o valor às coisas; exigia uma primeira fase de desinteresse para depois poder ser ela a marcar a diferença com as rédeas duma sedução tão selvagem quanto técnica.

Aquilo pareceu ginja ao amigo penetra-inconscientes-dormentes e até apostou com o psicanalista que em menos de duas semanas de sonhos em regime de dia sim dia não – seria atar e pôr ao fumeiro - ela até se iria apaixonar pelo filho do porteiro. Na primeira semana apareceu-lhe nos sonhos a fazer-se de rapaz da tv cabo. Solícito, competente, modos brandos, tratava-lhe dos canais, mudava as pilhas dos comandos, e pouco mais, nem um olhar, nem uma insinuação, a chave de fendas parecia-lhe colada à mão, nem a chamava de ‘minha rainha’, pois sendo um profissional de sonhos, não lhe poderia saltar para a espinha.

A coisa ia correndo tal como previsto, até que a meio da segunda semana, ela deu dois goles numa gasosa, comeu meia banana e adormeceu assim para o nervosa. ( eu não resisto a estas rimas foleiras, sorry, há gajos que gostam das fotografias do Mapplethorpe, a outros encarquilham-se-lhes os boxers nas virilhas, a mim dá-me para isto). O nosso homem entrou confiante no sono mas não estava preparado para uma mudança de atitude da paciente: agora só lhe interessavam os canais de musica, não tinha paciência nem para enredos nem para notícias. Assim ser-lhe-ia mais difícil sacar duma graçola, ou mesmo duma opinião bem esgalhada, teria de socorrer-se dum truque de estalinhos de dedos, uma coisa até um bocado fodida, mas que tinha aprendido na tropa no intervalo da ordem unida. Má ideia. Os psicanólogos deviam-no ter avisado que as mulheres sofisticadas acabam por se encantar com distracções simples e monocórdicas, até lhe chamam o síndrome da philipgrasstapia. Foram tarde. O gajito queria safar-se do sono, prescindia da comissão, prescindia do aumento, mas ela, entre a azia e o enfartamento, suplicou-lhe: fica, farei poesia da tua fraca prosa e dizemos ao médico que foi da gasosa.
Ele queria bazar, até tinha já um sonho apalavrado com uma pivot da televisão que julgava que era a mulher borracha e não se podia esticar muito. Nada a fazer. Ela estava pelo beicinho e não havia maneira de acordar, e, não fora a net cabo estar sempre a falhar, e ele ter prometido confiar-lhe os seus segredos, ainda agora estava a estalar os dedos.

Manteve-se no negócio, mas passou a escolher melhor os sonhos e as terapias: mulheres só com pouco apetite e alergia a carnes frias, e , quando já tivesse um bom pé de meia, evitar as que adormeciam de barriga cheia.
by the way, do you remember...


Chris de Burgh, «Lady In Red»?

A montanha pariu um sócrates

Porque, se virmos bem, todos somos filhos dum regime de favor. O Génesis explica.

pontos e nós

Era de uma ironia tão fina que se rasgava antes de ser apercebida.
Podem parar os fundos estruturais, já não precisamos

Alarmada com tanto assunto, a Ordem dos Humoristas reuniu-se de emergência a fim de estabelecer um critério que guiasse esta comunidade sem ela se perder no seio duma realidade tão prolixa, tão rica.

Desde que Macário Correia deixou de lamber cinzeiros na sua cruzada anti tabágica que a quantidade de situações anedóticas do país não atingia níveis tão preocupantes, se excluirmos a literatura erótica do José Rodrigues dos Santos.

Para começar haveria que distinguir o que eram piadas urgentes e o que podia perfeitamente esperar um diazinho ou dois antes de se espremer. Que piadas seriam para tratamento ambulatório, e assim poder-se-iam arrastar uma semana ou duas, e quais as piadas que exigiriam imediata intervenção com internamento em suplemento ou reportagem criados especificamente para elas. Piadas em que se exigia o total e explícito esmagamento dos visados, ou aquelas em que estes ainda ficavam sem saber se estavam a ser gozados ou não. Enfim, não se tratava bem de estabelecer regras de conduta, mas sim a definição concreta do ‘acto humoristico’. No fundo desenhar aquela fronteira difícil do que compete aos humoristas ou do que compete aos políticos.

O exemplo Manuel Pinho era um dos paradigmas para a classe: a ele bastar-lhe-ia existir e abrir boca uma vez por semana, os profissionais do humor fariam tudo o resto praticamente em piloto automático.

Outros dos paradigmas era o ‘Benfiquismo’ em geral. Por exemplo, na realidade ter alimentado na realidade esperanças de que o campeonato na realidade era uma hipótese com um treinador que na realidade era Fernando Santos na realidade parece algo irreal e apenas ao alcance de humoristas de grande capacidade de sofrimento, na realidade um sub grupo muito pouco valorizado.

As situações vividas no CDS pareciam já mais previsíveis desde que o modelo do taxi tinha sido abandonado. Aqui o humorista apenas deveria apenas ir mantendo – como se diz na gíria económica – a fonte de rendimento, nunca procurando esgotar o tema, já que este tinha alimentado muitas boquinhas de humoristas em momentos de menor exuberância da Manuela Moura Guedes e do António Perez Metello.

Um desafio que se colocava agora a toda a comunidade era como substituir Saramago, que tinha entrado claramente em fase de menor produção, tanto mais que Lobo Antunes, desde não fosse entrevistado pelo Rodrigues Guedes de Carvalho, cada vez apresentava menos condições para a passagem de testemunho. Foi então decidido voltar a acompanhar com particular atenção a carreira de Inês Pedrosa e Lídia Jorge, duas promessas algo adiadas.

Mas era no triângulo “cherne-picareta falante-engenheiro civil” onde se iria decidir todo o futuro do sector. O alarme gerado pela piada genérica (tipo ‘falam-falam’ ou ‘é que é já a seguir’) tinha deixado algumas franjas nervosas e haveria então que regulamentar bem a utilização dessa riqueza nacional recente que são a inteligência e espírito patriótico de Durão barroso, o pragmatismo de Guterres e a imaculada folha de serviços académicos de Sócrates. Todos se lembram de como Cid já tinha esgotado o filão de Ramalho Eanes & Manelinha, de como se perdeu um Braga de Macedo sem honra nem glória no meio dum oásis, ou um Carrilho no meio duma Bárbara, enfim, todos reconheceram que estava chegado o momento de salvaguardarmos o nosso verdadeiro património humorístico: ‘os primeiros ministros’.

Em síntese, foi aprovado por unanimidade que um primeiro-ministro tem de garantir pelo menos uma borla humorística nova por mês; poderá, no entanto, ficar dispensado um mês, se fornecer um escândalo fiscal com o IVA do canalizador, e a dispensa poderá ir até três meses se se tratar dum escândalo sexual com a filha do próprio canalizador. Em casos extremos a dispensa de tema para piadas novas pode ir até seis meses ao se tratar dum escândalo sexual com a filha dum canalizador que não passa factura, e existirem flagrantes fotográficos num hangar em construção sobre estacas desenhadas por um engenheiro civil da universidade independente na bacia hidrográfica da Ota. (mas, claro, desde que este tenha tirado o curso entre os anos 95 e 96, altura em que eram os próprios serviços da universidade que forneciam as pilhas para máquinas de calcular)

A reunião terminou com a assinatura dum protocolo com o Sporting Club de Portugal para este deixar de colocar o Alecsandro na equipa enquanto estiverem em emitir programas humorísticos em qualquer dos canais (entrevistas do Mário crespo incluídas).
uma questão de escol(h)a

- Já viste mais esta acha para a fogueira de disparates que tem vindo nos jornais? A única diferença entre Lisboa e Badajoz não são só, e só mesmo!, os caramelos?

-Ah, não, nem essa!, diz a minha amiga aqui ao lado, por cá também se arranjam, dos melhores e a muito bom preço, no El Corte. E sempre se poupa nas deslocações.



[Por falar em proximidades: o router do meu vizinho é muito bom e sai-me muito em conta]
pontos e nós

O que teme quem persegue?
As (melhores) declarações de amor de Março

Leonard Cohen, no primeiro disco da sua carreira, e em ‘Hey, That's No Way To Say Goodbye’, arranca num lirismo rimado, bonito, lembrando amores madrugadores, e termina com um dos paradigmas mais duvidosos da relação amorosa: a complementaridade; canta assim:
«I loved you in the morning, our kisses deep and warm,/ your hair upon the pillow like a sleepy golden storm,/ (…) walk me to the corner, our steps will always rhyme/ you know my love goes with you as your love stays with me, /it's just the way it changes, like the shoreline and the sea»

Depois a mítica Karen Dalton (quem não adora a Karen Dalton nem merece ser fóssil daqui a 300.000 anos) diz praticamente tudo o que o amor tem que se lhe diga, com uma das vozes mailindas que o mundo viu nascer:
«Take me to Siberia /And the coldest weather of the winter time,/ And it would be just like spring in California /As long as I knew you were mine» em ‘Take Me’

Isto é tão bem cantado, isto é tão bom, que depois, de abébia, até se pode ficar a ouvir uma coisinha ligeira como o Richard Hawley a cantar em ‘Darlin' Wait For Me’ um dos clássicos da frugalidade amorosa: «So think of me, when you feel that moon /(…) That's all I ask of you, all i ask /Till I hold your hand»; mas, convenhamos, não deixa de ser uma ternura: ‘ficas aí a pensar em mim enquanto eu não chego para te segurar na mãozinha, é a única coisa que te peço’, no fundo algo ali entre o acampamento de escuteiros e a bicha para a consulta na caixa, uma ternura, mesmo.

Mas não ficava completo o ramalhete se não trouxesse aqui mais um registo daqueles amores forjados na alta poesia (ainda para mais hoje, dia do nascimento de Baudelaire – haja quem não se esqueça de datas) como foi aquele entre Robert e Elisabeth Browning. Esta escreveu, às escondidas do seu amado, e enquanto ele a cortejava, um dos seus poemas mais famosos ‘How do I love thee, let me count the ways’ que termina com um dos enunciados mais extremos do declaracionismo amoroso : «(…) I love thee with the level of every days / (…) I love thee with a love I seemed to lose /(…) I love thee with the breath, / smiles, tears, all my live! – and if God choose,/ I shall but love the better after death»
Que até dói.
«vista de flores através de furinho feito a alfinete, com insecto dentro» (*)
(*) Em português técnico: flowers pinhole with bug. Na dúvida, ou se é metódico ou não se é.
fábulas e títeres (*)

Era uma vez um rapaz que queria ser tigre e, risca a risca e rugido a rugido, lá foi cobrindo a pele e afiando os caninos. Não era mal agradecido, bem pelo contrário: guardava todos os dias um bom pedaço de erva fresca e tenra para a ovelha que o aleitara e chegava até a fazer vista grossa a pequenas falhas e desleixos. Um dia encontrou-se com os cães de fila mas, ainda assim, não quis deixar de ser tigre. Só havia uma forma de escapar à ira dos cães: pediu a um gato amigo (o bom coração não lhe permitiria sujar as mãos de sangue) que sacrificasse a ovelha já manca, com cuja pele cobriria as riscas ostensivas até acabar a travessia pela matilha (ao cuidado de quem deixaria a carcaça da ovelha a dar ainda farto alimento em caldeiradas e assados vários). Quando deixasse de escutar o som dos latidos poderia finalmente despir-se de incómodos e voltar a luzir riscas e caninos.
O guião da peça era perfeito. Não fora os robertos serem toscos (para o que se exigia teria valido a pena investir, ainda que caros e demorados, na qualidade de uns 'S. Lourenço' criados pela arte da Helena Vaz em vez dos rústicos e não creditados 'do Aleixo') e quer as mãos quer os fios estarem, desde o início, à vista de todos, e haveria ovação de pé, com os encores vários tão ao gosto da pouca exigência quanto da memória efémera dos espectadores portugueses. Mas pena, pena, acabará por me merecer o gato sobre quem recairá, quando cair o pano, o ónus da execução da ovelha e que (a menos que tenha inteligência de calcular uma rápida e estratégica retirada) ficará, doravante, na boca de cena desacreditado e vulnerável aos dentes da matilha. Por conivência ou inocência.

(*) marionetas ou robertos
O sentimento

A Apologética cristã sempre foi muito sinuosa na gestão deste equilíbrio entre o ‘acreditar’ e o ‘sentir’. E isto tem as suas razões: tanto se necessitam e atraem, como se atraiçoam mutuamente.

Por outro lado, a Exegese cristã sempre procurou encontrar nas linhas e nas entrelinhas das escrituras a humanidade inquestionável de Jesus, dum Jesus que para ter sido ‘perfeito homem’ quase não poderia ‘ter a consciência’ de que era ‘Filho de Deus’, de que era Deus. Mas, simultaneamente, sempre encontrou nos evangelhos, fossem mais sinópticos ou mais teológicos, uma fonte de conhecimento, de revelação, duma verdade que fosse independente dos sentimentos que provocasse, duma verdade que tivesse tanto de metafísica, como de ‘cultural’ e antropológica.

Está, no entanto, no precisar do papel do sentimento uma das grande riquezas ‘culturais’ e ‘humanas’ que a apologética cristã trouxe à civilização. Quando nos é dado a constatar um ‘facto-não facto’ como a da Ressurreição de Cristo, é simultaneamente ‘dito’: acreditares sem sentires não te leva a lado nenhum, mas, se fores apenas à procura do sentimento, quase não ‘vale a pena’ acreditares.

O Cristianismo trouxe ao mundo muitas boas novas, muitas revelações, muitas inquietações, muitos raios parta e muitos aleluias, mas mostrou-nos que o sentimento humano, aquele que se constrói essencialmente com as relações de uns com os outros, é de uma nobreza extrema e caminha a par dessa relação íntima e complexa que é a relação de cada um com Deus e com a(s) verdade(s) que isso acarreta.

A Igreja, apesar de poder estar associada ao débito moral, à doutrinação escrupulosa e ao merchandise de escapulários, é, na verdade, e quase ao arrepio da herança e do enclave hebraico, a grande responsável de ter colocado a fé no lugar que lhe pertence: o coração dos homens. Poderíamos dizer que resolveu a charada grega e devolveu ao sentimento a força da razão e fez da razão a força do sentimento. Como entre duas pessoas que se amam verdadeiramente.

operação canudo dourado


Todo o executivo, mais as eminências pardas do largo rato, estavam agora empenhados em limpar a imagem do seu timoneiro de turno, denegrida apenas por um mero deslize relacionado com um curso de engenharia tirado às três pancadas (sem ofensa para o bilhar, claro)

Uma estratégia colheu de imediato a adesão de todos: haveria que investigar os podres curriculares de toda a concorrência. O incansável Coelho, já com o trabalhinho feito de casa, apresentou quais as pistas sólidas a seguir.

1.a catequese de Paulo Portas. Há fortíssimas suspeitas de que a 1ª comunhão de Paulo Portas tenha sido efectuada com falhas graves na Avé Maria. Consta inclusive que no acto da persignação, um movimento mais lançado do dedo em riste tenha chegado a vazar um olho à catequista, facto esse que foi imediatamente abafado pela sua mãezinha, a troco de dois enchidos de chaves, e por uma marquise nova desenhada pelo paizinho, que acabou até por lhe dar crédito para o crisma, mesmo com o credo colado com cuspo

2.a altura de marques Mendes. Conta-se pelos corredores do arquivo de identificação que Marques Mendes tirou o BI a um domingo, com uma fita métrica trazida de casa, e só assim conseguiu passar a barreira do metro e vinte, condição essencial para que tivesse sido ministro com pasta no governo de cavaco silva, homem muito exigente, como sabemos, no que concerne à estatura humana, leis de gresham e frango de caril. Mas estávamos numa época em que os homens ainda se mediam aos palmos e não como agora que é às palmas.

(pequena pausa para aplaudir Sócrates)

3. a vil soldadura de Jerónimo. Foi durante muitos anos um dos segredos mais bem guardados do PC e do cânone revolucionário em geral: estávamos ainda na grande noite negra do fascismo quando Jerónimo de Sousa prestavelmente soldou de forma precisa e cuidadosa uma biela do mercedes de champalimau em vez de lhe ter imediatamente fodido as jantes, o diferencial e a árvore de cames. Esse facto foi omitido na sua candidatura ao comité central e esteve praticamente a comprometê-lo quando em paralelo se descobriu que em vez de ter bufado que tinha visto Zita Seabra a comungar na Igreja de Alhandra foi com ela comer umas enguias a Salvaterra.

4. Santana Lopes e Sá Carneiro. O curriculum de Santana referia como experiência profissional 237 pequenos-almoços com Sá Carneiro. No entanto, bastou uma breve investigação junto de várias pastelarias da capital para se confirmar que em duas situações apenas se tinha tratado da ingestão de simples croissants com fiambre sem líquidos; noutras três, um dos comensais tinha usado Hermesetas, o que não era compaginavel com o conceito de refeição, e, num caso bem concreto - pasme-se ao ponto que as pessoas chegam para encher curriculums - Sá Carneiro não tinha chegado sequer a barrar de manteiga a torrada, o que imediatamente desclassificaria essa refeição, e a remeteria para o conceito não curricular de: bucha matinal.

5. Louçã e o mercado. Uma das mais incómodas revelações de toda a investigação era a de que Louçã teria terminado o curso de economia sem fazer a mínima ideia do que era o conceito de mercado. Vários professores foram obrigados a confessar que o chegaram a ver com curvas da oferta e da procura à cintura, vergastando-se, e julgando que eram elementos de tortura capitalista, dois colegas confirmaram ainda que o ouviram perguntar a uma miúda de letras se queria ir brincar aos pontos de equilíbrio que assim até ele fazia de lei de paretto, num claríssimo caso de abuso ilícito de conhecimento.

6. a indiferença social de Mizé Nogueira Pinto. O caso desta grande senhora da direita (a do fado já estava ocupado por Cidália Moreira) não alinhada estava relacionado com incorrecções apresentadas aquando da sua passagem pelas Misericórdias. Uma investigação junto da sopa dos pobres de 87 conseguiu obter depoimentos seguros de que Mizé juntava água na sopa para bater o record de caldos verdes distribuídos por noite e que estava na posse da rival duquesa do cadaval, ex aequo com Margarida Prieto e com um segurança do Kremlin.

7. Belmiro e o Totta. Uma análise aprofundada à primeira grande operação de privatização da banca em Portugal demonstrou que Belmiro tinha escondido a sua condição de engenheiro aquando da 1ª reunião com Mário Conde do Banesto, porque este ameaçava comprar tudo o que cheirasse a ferrugem numa histórica – e ruinosa - vertigem de aquisições industriais. Belmiro chegou a dizer que era apenas licenciado em românicas, com tese em Virgílio – por indicação de clara ferreira Alves - para que Conde nada desconfiasse e lhe deixasse fazer as actualizações de cashflows e os cálculos dos PER’s.

Mas a J. Sócrates também o apoquentava a concorrência interna e por isso J. Coelho tirou um primo da cartola

8. As rimas de Alegre. Foram encontradas várias folhas soltas na casa de Alegre que o ligavam ao tráfego ilegal de terminações em ‘ente’, ‘eiro’ e ‘aça’. O contacto seria Graça Moura e diversos registos num caderninho disfarçado de lista telefónica com fotografias da Inês Pedrosa eram conclusivos de que avultadas quantias tinham sido postas à disposição dum tal de rui reininho para que se encontrassem rapidamente soluções poéticas para as palavras: carrapito, metadona, baralho, pirolito, azeitona e restaurante Fialho.


As hostes foram-se acalmando, Sócrates sentiu-se de novo confiante e, inclusive, conseguiu falar de igual para igual com a senhora romena que lhe limpava a secretária e que era doutorada em física e o tinha chegado a ajudar naquela fórmula do Guterres, a famosa percentagem do PIB, o três-vezes-seis-dezoito.

E agora vou-me que não tarda é sexta-feira santa e Deus nosso senhor não há-de gostar que eu ande a gozar assim com os outros meninos.


Daniel, o provedor do crente


Porque a olarilolelice tem de levar o devido carimbo da ignorância, e certo tipo de pessoas terão pouco que fazer, ou melhor, mais directo: certo tipo de pessoas que não sabem fazer rigorosamente nada que se aproveite e que aparecem de vez em quando amplificadas pelo trombone da revolução cibernautica – o bit quando nasce é para todos – dedicam-se a dissertar sobre o fervor religioso e a piedade duns pobres coitados, manipulados e turvos de pensamento, que também são conhecidos por católicos.

Género provedor da religiosidade popular, guardião da sanidade mental dum povo de iletrados e ladainhodependentes, e fiscal de linha para as jogadas de ataque da Igreja católica, um tal de Daniel Oliveira, com todo o tempo livre que lhe deixa o facto de não ser terço-adict, não pôde ver uma freira (e logo francesa e pós jacobina) curada por um milagre intercedido por João Paulo II, e, principalmente, não pode vê-lo a ser feito num prazo que ele não entendeu adequado, pois, certamente por, novamente, forte disponibilidade de tempo, se ter dedicado a estudar as minudências da boa canonicidade e as suas interferências na fertilidade do couro cabeludo, e também na esperança de descobrir alguma reza especial para que deixem de falar do Portas e ponham novamente os olhos na virtude - toda ela também canónica - de Louçã.

João Paulo II, tu que me estás a ouvir, (e um quase santo já se pode tratar por tu, é praticamente canónico) é pá, vê lá, intervala aí duns parkinsons de freiras e orienta uns neurónios novos e arejados àquele rapaz que escreve no arrastão. E de caminho trata-lhe do guarda-roupa e da franjinha. Já nos custa andar com este carequinha às costas.
Uma Páscoa fashion pela vossa rica saúde


Num dos filmes ligeiros da saison, feito para senhoras se rirem no intervalo das suas apoquentações com as miudezas do metabolismo, numa cena medianamente conseguida uma psicoteraputa empresta o vestido a uma amiga e, de caminho, afirma ter sido a primeira vez em que, de facto, tinha ajudado alguém na vida.

O ‘ser humano’ é basicamente uma espécie que precisa de ajuda porque não foi feita para ambientes hostis e, como não consegue ser bem treinada para animal de companhia, tem frequentemente de se socorrer de alguns espécimes que se especializam nesta nobre função de ajudar os outros, dignificando-se mutuamente de bónus.

Um dos pensadores da moda – Roger Scruton – disse que uma das mais importantes tarefas da filosofia nos tempos modernos é ‘colocar no lugar do sarcasmo que enuncia sermos meramente uns animais, a ironia que mostra não o sermos de facto’, resgatando o homem à trivializadora ciência, e investindo na ressurreição da ‘pessoa humana’.

É evidente que o conceito de ‘pessoa humana’ tem sido mais banalizado que a capacidade dos lagartos criarem os melhores extremos de futebol do mundo, ou da universidade independente parir engenheiros civis, no entanto, é na sua sacralização que reside o verdadeiro negócio.

Se reparamos bem, uma das mensagens fundadoras do Cristianismo é precisamente a de que o homem não vale um caracol a não ser pelo facto do Criador se ter interessando por ele no momento em que viu nesse mamífero emproado pela via da mutação genética, alguém que dificilmente sobreviveria aos ataques de gafanhotos, sábios, lampiões e princesas egípcias.

A ‘pessoa humana’ é, então, uma segmentação desse mercado mais vasto, que se poderia denominar de ‘o pessoal’, e que se caracteriza por possuir necessidades específicas ao nível da definição do ‘eu’ e da concretização do ‘meu’. Trata-se duma criatura carente, que se destaca igualmente dentro de ‘o pessoal’ por ter constantemente algo por satisfazer mas preferir que sejam outros – de que espécie, material ou semiótica forem - a tratar desse assunto

A ciência tem efectivamente procurado trivializar este pedaço de código genético envolto em secreções, e faz ela muito bem, já a minha avó fazia o mesmo com a baba de camelo. Mas ela – a ciência -sabe bem que, depois da redução à molécula e da redução ao absurdo, a ‘pessoa humana’ pouco mais servirá que para alimentar ilusões sobre um mero estado na natureza que o marketing psico-social sofisticou à base de paleio e estatísticas.

Cada vez mais somos, isso sim, um estado da natureza, ao qual, para se lhe dar a mão, como demonstrava o filme, o melhor que se lhe pode fazer é vesti-lo com uma roupinha decente, mantê-lo entretido com as montras da desgraça alheia, saltando do sarcasmo para a ironia e da ironia para o sarcasmo, e tentar aguentar assim babados até ao juízo final.

Deus redimiu-nos também um pouco para manter as aparências.

(isto ficou horrível, credo)
tarzan, jane e a casa na árvore

‘Arroja’


‘arroja’ é o nick name dum sujeito chamado Pedro Arroja que escreve num blog de nónimos denominado Blasfémias.

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Ganhou alguma notoriedade por concorrer com Herman José na animação das manhãs na rádio durante os anos 90 socorrendo-se do manancial de piadas que é o pensamento liberal, praticamente tão rico neste campo como os alentejanos, ou os amores interditos entre padres e freiras. (aliás até sugeria que criassem um blog de nome blasfêmeas, só com posts para liberais loiras).

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‘arroja’ aparenta ser rapaz na famosa meia idade, ou seja, já não tem tanta piada como o joão miranda, mas ainda não apresenta aquele encantador ar blaisé do miguel beleza.

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A sua fixação recorrente no cruzamento da temática institucional-religiosa com a ciência política, à primeira vista poderia indiciar a saída prematura dum seminário recôndito e húmido na Beira Interior, ou dum tacho na Congregação para as causas perdidas, contudo, uma análise mais profunda aos seus posts, leva a crer que se trata de verdadeiras revelações dum anjo que trabalha como free lancer por se ter incompatibilizado com a santíssima trindade a propósito do método de cálculo do share das beatificações.

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Outra das suas fixações é um tique muito próprio de economistas que podiam perfeitamente ter sido amestradores de catatuas, mas como eram daltónicos passaram por engano anos a fio a treinar rolinhas, ou seja, toda a realidade se pode resumir a uma necessidade, um recurso, um equilíbrio, duas opções, uma oportunidade e uma ameaça: o povo ou quer milho ou o miolo húmido duma carcaça.

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‘Arroja’ apresenta uma sensibilidade muito particular e fina pelo que a sua profissão deve estar ligada ou à cremação de borboletas ou ao polimento de barcos rabelos em filigrana. No entanto, o seu método de abordar os temas apertando-os até a rosca estar completamente moída, leva a crer que se trata do accionista duma empresa fornecedora de parafusos para o IKEA. Se não mesmo das famosas estrelas da serralharia moderna: as ‘porcas mama’.

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A sua sedução pela utilização do sofisma-mascarado-de-lógica-sem-batata mostra um conhecimento profundo da retórica aristotélica devidamente condimentada do embuste saxónico. Esta combinação produz o famoso anabolizante ‘aristaxónico’, doping frequentemente usado no bilhar às três tabelas por jogadores mais dados ao snooker e com problemas de focagem para além dos 20 cm à sua frente.

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‘Arroja’ é sempre intelectualmente bastante honesto, e faz-me lembrar o sr Santos, que era o merceeiro ali à Rua Poço dos Negros - vai coisa para quase mais de 40 anos - e que me ensinou a cortar fatias de queijo da serra fininhas e enganar a minha avó que só me tinha dado dinheiro para um flamengo manhoso, porque eu não tinha feito a merda dos trabalhos. A contrapartida era a minha avó ir lá à mercearia dar-lhe valentes sermões, porque ele adorava ouvi-la; básico. Ela tinha piada, de facto, o meu avô que o diga. O sr santos acabou por trespassar a mercearia para um pronto a vestir, que eu já não acompanhei tão bem, ou melhor, acompanhei, mas não posso contar.

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‘Arroja’ pondera sempre bem todas as suas frases, articula os pensamentos uns nos outros sem a utilização de neurónios transgénicos, procura as referências bibliográficas sem cair no servilismo documental, e, inclusivamente, chegou a elaborar silogismos nos momentos em que a intuição lhe estava a cair na fraqueza. Mostra portanto um pendor fortemente pedagógico, pelo que, deve certamente ter andado na escola, e nunca abusou das selecções do reader digests em pequenino.

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O grande sonho liberal de ‘arroja’ é ter uma low cost só para ele, e a sua estratégia será decidir os destinos de cada voo já quando os aviões estiverem no ar. Os passageiros que depois não quiserem podem ir saindo à vontade. Chamar-se-ia ‘o livre ar bítrio’. (quem diz pelo bítrio diz pelas portas de segurança)
liebling Sünden
Políptico do Convento de Clarissas de Wroclaw, 1350-1360 (Frente e Verso). In «O Brilho das Imagens», Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa