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‘A vida não é argumento’ [9/9]

Naquele que é o nono, e último, episódio desta saga, se bem que com prejuízo sério para o desfrute da audiência, pois praticamente todas e cada uma das falsificações seriam dignas duma moldura, sinto que não posso desertar sem esmiuçar três aspectos, sem os quais nunca se entenderá nem a vocação nem o desígnio dum verdadeiro falsificador.
Será que tive sempre sucesso nas minhas falsificações? Não, apesar de um falsificador com nome a defender não se poder dar ao luxo de falhar muitas vezes. Reconheço que uma vez falhei. Pensei a dado momento da minha carreira lograr apresentar ao mundo um conjunto inédito de letras de canções da Elis Regina, canções que ela teria guardado para quando um novo amor incompreendido irrompesse definitiva e gloriosamente pela sua vida. Escrevi as canções, nove, dei-lhes um toque popular, mas digno e sentido, cuidei da métrica, da rima, da simbologia, e posso dizer que cumpriam bem mais que os mínimos para um negócio decente. Mas ninguém lhes pegou. Todos acabavam por me dizer que não podiam tocar naquilo, pegar num amor não correspondido, e que nunca tivesse sido cantado, podia dar azar, podia atraí-lo quase como uma maldição. Fui assim vencido por uma imprevista, generalizada, irracional superstição; e se calhar fiquei guardião dessa maldição, desse desterro, mas guardei uma lição: nunca ficar com uma nega na mão.
Outra das características fundamentais, estruturante e singular, da minha vocação de falsificador, é que jamais me poderia especializar numa só arte, numa só técnica, ou num só ofício, como se lhe queira chamar. Tratou-se isto não apenas uma questão de bom senso (evitar a rotina, o pequeno tique que nos desmascara, as probabilidades de começar a ser reconhecido num meio mais fechado), e de majoração do valor da minha discrição, mas era também a maneira que possuía para me distanciar do mero copista; se bem que nada tenha contra tão digna, e subvalorizada, arte. Repare-se que eu nunca copiei simplesmente nenhuma obra (nem o Mondrian com que me iniciei, nem um Pollock que pintei depois duma barrigada de fettuccine), nunca falsifiquei por encomenda, apenas vampirei a fama (um bem escasso e traiçoeiro) de outros, deixando os meus recursos concentrados no essencial da criação; neste processo, o uso do meu fraco nome apenas faria deslocar o cifrão mais para a esquerda do número.
E, finalmente, por certo outro dos fenómenos que não passará despercebido, é que, a partir de certa altura, tornou-se tão importante para mim a qualidade da obra, e do autor falsificado, como a invenção da história que envolvia a justificação da posse e da plausibilidade do suposto original (reparem que para o enredo se fala de invenção e para a obra se fala de falsificação). A falsificação é afinal a única forma de permitir a suspensão da vida sem a perder. É, pois, normal que o falsificador se apaixone também pela forma de legitimação histórica da sua, soit disant, fraude, soit disant transfiguração. Pena até que fique por contar o caso em que me fiz passar por uma freira holandesa para explicar a posse duma mera árvore tombada e dum tronco partido pintados por von Ruisdael. A falsificação só se consuma verdadeiramente com uma imolação graciosamente tricotada do enganado às mãos ficcionais do falsificador, no fundo, de alguém que está sempre a reescrever o clássico: ‘La Falsification, mode d’emploi’.

‘A vida não é argumento’ [8/9]

A minha falsificação mais arrojada foi mesmo quando produzi uma ‘suposta’ sequela do ‘Pickpocket’ de Bresson. Seria, no fundo foi, um ‘Pickpocket II - la rédemption’, filmado no metro de Paris, num formato próximo do documentário e, por isso mesmo, com uma plausibilidade bressoniana mais controversa, ou seja, o enredo era comandado pela vertigem da circunstância e não por uma subliminar predestinação. No entanto, o encaixe financeiro que se me afigurava possível motivou-me de forma irreversível: soubera que um coleccionador belga de filmes raros e minimalistas pretendia criar uma espécie de museu da cera do cinema e, constou-me, precisava duma relíquia mediática. Eu sentia-me a pessoa certa, aparecendo-lhe com um Bresson em registo quase de hidden camera. Bresson, iria eu revelar em primeira mão, teria realizado esse filme sem ninguém saber, apenas ele com a sua câmara, - quase como num confessionário – e pensava ter destruído a fita quando, no auge de uma dor de dentes, a enterrou atrás duma sebe no bosque de Bolonha. O meu tio-avô tinha então descoberto tal preciosidade quando num fim de tarde aí se passeava a, claro, andar de bicicleta, lubrificando as artroses. O filme apresentava, pelo menos, duas sequências que poderiam perfeitamente ter-se tornado clássicas, não fora o inesperado pudor bressoniano: uma, com a duração de 12 minutos, em que uma moça come um pacote de batata frita apenas com uma mão, entre a estação de Montparnasse e a Gare du Nord, enquanto com a outra mão alivia a bolsa duma velhota em 20.000 francos, chegando inclusivamente a oferecer-lhe uma batata frita e até a largar uma genuína lágrima quando ela lhe mostrou a fotografia duma neta tuberculosa, e uma outra cena, absolutamente antológica, em que um carteirista, na estação de Invalides, rouba uma pasta a um funcionário dos correios, que, ao dar-se conta disso, rompe num riso convulsivo, quase patético. Bresson, desculpem, eu, vou atrás do carteirista sem ele se dar conta disso, e filmo-o durante 12 minutos (Bresson andaria fixado em planos de 12 minutos) a revolver o conteúdo da pasta e a descobrir que apenas continha frascos de mijo para as análises da próstata. O carteirista frustrado, na cena seguinte, visita a avó num lar de idosos para os lados da gare de Lyon, e chora convulsivamente arrependido (12 min) ao seu lado, sussurrando repetidamente: «le pissat m’a remi», enquanto a velhota crochetava umas bases para copos. Enfim, convenhamos que era impossível resistir a um obra desta, e ainda para mais envelhecida, que nem carvalho de pipa, nas entranhas da terra benzida da cidade luz. O belga, de seu nome Julien Flamini, já falecido de coronária entupida, nem queria acreditar no que eu lhe apresentava: um tesouro bressoniano de 48 minutos, revelando em directo as catacumbas do pecado e da redenção por entre os carris da linha férrea. Foi das falsificações que inesperadamente mais me rendeu, mas, como ainda vivia uma fase de libertinagem e outras luxúrias avulsas, tudo se derreteu numa voragem de secreções. Um falsificador que queira uma carreira longa deve ter um sistema glandular preguiçoso ou, pelo menos, conservador.

‘A vida não é argumento’ [7/9]

Tenho de confessar que o meu maior desafio como falsificador deu-se quando vendi uma obra falsa ao próprio artista falsificado. Tal aconteceu em meados dos anos 90 quando apostei forte na falsificação dum curioso Rauschenberg. Tratou-se duma peça baseada em combinações de caixas de cartão de embalagens de pistachios do Lidl e do Printemps, alegadamente criada pelo artista no princípio dos anos 70, e em que a forma periférica do conjunto fazia lembrar uma mistura entre o altar dos Jerónimos e um guarda fatos do Ikea. Lembro-me que demorei apenas um Sábado de Aleluia a fazê-la, mas ainda tive de pedir à minha vizinha de baixo uma etiqueta de Sonasol para lhe dar alguma corzinha. Saliente-se que ficou um conjunto harmonioso, apesar de ter corrido alguns riscos da minha mulher-a-dias o ter aviado pela conduta abaixo, e até acabou por me dar vazão – numa colagem a imitar pegadas de urso polar- a uns bilhetes de metro de várias cidades europeias que eu coleccionara em miúdo, e dos quais me estava a custar sentimentalmente desfazer. Há sempre uma fase na vida dum falsificador maduro e confiante na qual este tem o impulso de deixar algo de seu, de secretamente pessoal e intimo, nas obras que falsifica.
A forma que encontrei para convencer o próprio Raushenberg de que se tratava duma obra sua, e da qual ele certamente já não se lembrava, foi cuidadosamente elaborada. Encontrámo-nos em Londres, num restaurante de bifes argentinos, e ele, mais o seu agente, estavam fascinados com a minha história: o meu tio-avô era coleccionador de canecas de cerveja alemãs do sec.XVIII e, num leilão nos arredores de Munique, na compra dum lote de 200 canecas em faiança tirolesa, ofereciam aquilo, a que diziam ser: ‘uma obra de fermentação moderna’, precisamente um genuíno Rauschenberg, colado numa base de contraplacado marítimo que tinha servido para tampo de mesa durante a Oktoberfest no histórico ano de 89, e poucos dias depois como andaime na destruição do muro de Berlim. Encantados com a famosa coincidência, e entusiasmados até por poderem reaver um cardboard com tanta história, nem encontravam palavras para me agradecer, e cheguei mesmo a entrever-lhes um ou outro sorrisinho malandro ao contactarem com a minha inocência. Registe-se que o cúmulo de satisfação para um falsificador é quando sente que o seu cliente até está convencido que é ele próprio que se está a aproveitar dum pobre incauto. Foi-me paga uma quantia generosa, no tempo em que o dólar ainda não servia apenas para bailotar, acrescida dum original do próprio Rauschenberg (uma colagem de calendários da nossa senhora de Lurdes com rótulos do Ajax limpa vidros) que acabei por oferecer para o enxoval duma enteada daquela Júlia com quem tinha jantado em Monte Carlo. Como retribuição também lhe dei uma caneca com uma ilustração do Luis da Baviera vestido de Cristóvão Colombo. Um falsificador é sempre um homem que deve reconhecer onde começa a sorte e onde acaba a arte.

‘A vida não é argumento’ [6/9]

Uma das minhas falsificações mais bem sucedidas, e de desfecho curioso, coincidiu com uma experiência na literatura apologética. O falsificador é também um produto das circunstâncias, e deve saber ler as tendências, e a economia, do seu tempo: por exemplo, há momentos em que nos devemos perguntar: para quê desgastarmo-nos num Shakespeare quando nos podemos safar perfeitamente com um Pirandello? Mas noutros devemos questionar: porquê desperdiçarmos tempo com um Molière se podemos avançar directamente para um Mário Crespo?
Quando me ocorreu falsificar um sermão do padre António Vieira sentia que não corria apenas atrás do meu prestígio, ou do dinheiro, mas sim atrás também duma purificação da alma. Como tema escolhi a relação entre a parábola do semeador e a plantação da cana-de-açúcar. Tentaria nesse sermão o célebre missionário jesuíta mostrar que a boa terra era aquela em que nascia a doce cana e não a terra saloia onde apenas medravam cebolas e agriões. O novo povo eleito era assim o do índio brasileiro, o Amazonas seria o novo Jordão, ou o novo Eufrates, o Português faria de bom samaritano, e o Espanhol seria uma das pragas. Um exemplar do sermão foi mostrado em primeira mão simultaneamente a um alfarrabista na rua da Misericórdia, e a um jornalista da rede Globo no Brasil. Pela primeira vez eu estava a utilizar um esquema de leilão e punha em confronto o amor à literatura e o amor à audiência.
Ora a questão da autenticidade não interessou minimamente ao jornalista, mas este acabou por se deleitar com a história que eu tinha preparada para explicar a minha posse da edição do, que viria a ser chamado, ‘Sermão da Cana’: o meu tio avô, meio bandeirante-meio missionário, tinha-se apaixonado por uma índia chamada Júlia, e fruto dessa paixão consumada no canavial nasceu um rapazinho que se tornou protegido do missionário português, tendo este acabado por lhe oferecer como presente da primeira comunhão o dito sermão. Eu, descendente dessa noite tão étnica quanto ecuménica, acabaria por ter ficado com a literária preciosidade devido a uma sucessão de felizes acasos, e só fora agora descoberto porque a minha irmã tinha utilizado algumas páginas para uma receita de torta de cenoura. Enquanto isto, o alfarrabista lisboeta corria meia cidade em busca de provas de autenticidade, e recebia como resposta consternação, admiração e algum nervosismo, tal o carácter levemente heterodoxo do texto vieirino, se bem que de inquestionável e genuíno valor apologético. Vendi assim os direitos da história (inventada) da índia Júlia e do meu tio-avô à TV Globo (que não se interessou pelo sermão) e vendi a obra do padre Antº Vieira a um contacto do citado alfarrabista, um milionário excêntrico e piedoso que coleccionava desenhos eróticos, que afirmava serem de Pascal e Montaigne. Foi dos meus trabalhos mais bem sucedidos em termos financeiros que, assim, me enriqueceu em vários sentidos. Com o seu rendimento acabei por passar seis meses no Recife, e não posso jurar que a linhagem do meu tio-avô não tenha ganho continuidade na terra da cana prometida. Um falsificador profissional tem sempre uma certa nostalgia das falsificações onde foi feliz.

‘A vida não é argumento’ [5/9]

A minha única incursão no mundo da fotografia foi atribulada. Quis jogar uma parada alta e avancei para a falsificação dum tríptico de Mapplethorpe dedicado a rabos chineses descaídos (procurando vir a aproveitar financeiramente a suposta revelação da existência duma sua fase secreta e alternativa à das pilas grandes e pretas). Pela primeira vez dependia explicitamente de terceiros: chinesas de rabo descaído. Como se pode antever sou um falsificador perfeccionista e já com algum pedigree, e jamais utilizaria um rabo que não fosse de chinesa, mesmo que o pudesse substituir por outro semelhante e com sucesso. Por isso, compreenderá o leitor, ficar, de certa forma, na mão do rabo descaído de uma chinesa era algo que me preocupava; profissionalmente. Aluguei exclusivamente para o efeito um atelier em Cabo Ruivo, e contratei três moças à saída dum restaurante, onde tinha comido um pato lacado, por acaso até bastante saboroso, para além de 23 crepes, que foi a forma utilizada, por força do ir-e-vir do serviço de mesa, para visionar, aferir e escolher uns traseiros bons para a chapa (leia-se ‘para a fotografia’, obviamente). A sessão fotográfica correu com normalidade, elas, por coincidência, já tinham posado para uma campanha da Multiópticas, se bem que, nesse caso, deram destaque fotográfico a outra zona. Lá compus o tríptico final, uma sequência interessante, com o exemplar central a evidenciar uma suave borbulhagem nas nádegas, e os exemplares dos extremos a revelarem uma ligeira assimetria, o que dava um toque, digamos, perverso, e, por isso, genuíno; houve apenas de ter o especial cuidado para que um eventual plano mais roliço das pequenas nádegas, ao ser apanhado com menos luminosidade, não corresse o risco de se confundir com um par de testículos nigerianos. Mapplethorpe poderia, sim, efectivamente, ter fotografado aquilo. Aliás, cinco segundos depois da obra estar concluída, era mesmo ele o seu autor, pois um falsificador que não se deixe ele próprio enganar com a autenticidade da sua obra deve abdicar de imediato e dedicar-se ao private banking. O tríptico fotográfico foi então apresentado a uma galerista de Gotemburgo, fascinada em fotografia oriental pós-confuciana e que, ao vislumbrar a possibilidade de possuir um genuíno Mapplethorpe com esse tema, praticamente me ofereceu o seu corpo, ainda de muito boa serventia, note-se. Mas dava-me mais jeito cobrar mesmo em contado, e acabei por alargar castamente o meu humilde pecúlio. A excitação sueca era tal que acabou por me dispensar ao relato de como tinha chegado à posse de tamanha relíquia fotográfica, o que agradeci para todo o sempre; era uma história inventada, mas que não dignificava a fama do meu tio-avô. A falsificação de qualidade deve controlar as suas próprias fronteiras, de forma a não se confundir com artes falsárias menores como, por exemplo, a banal politica.

‘A vida não é argumento’ [4/9]

Quando tive a ideia de falsificar um texto de Freud sobre a importância das dores nas costas na formação da personalidade obsessiva, tomei, por precaução, a decisão de colocá-la numa fase em que o autor ainda embrionava nas suas teses sobre o inconsciente e a pulsão, e onde o recalcamento era ainda confundido com a azia. No entusiasmo da escrita corri alguns riscos, era difícil simular com credibilidade o nível de ansiedade intelectual que Freud deveria manifestar, mas tinha-me treinado meses antes com um pequeno negócio que efectuara com duas cartas de Lou Salomé a uma costureira de Wiesbaden. Foi-me fácil encontrar papel e máquinas de escrever da época junto de alguns vendedores de velharias em Viena e assim em dois meses tinha a obra pronta. Sabia que tinha uma relíquia nas mãos, algo que o próprio Freud gostaria de ter escrito, algo que ele próprio me compraria se estivesse vivo. Quase que nem me senti um falsificador o que me deu uma certa frustração. A minha vítima cliente foi um comerciante alemão de livros e documentos raros, especializado em literatura científica, e que ficou conhecido por ter rejeitado um livro de orações de Darwin confundindo-o com um livro de canções dos The Who. Bastante condicionado pela necessidade de recolocar o seu prestígio no pedestal que julgava merecer, o meu produto proporcionar-lhe-ia essa redenção e com fogo de artifício. Desta vez o meu tio avô fez de ex-fornecedor de cocaína ao mestre austríaco, e tudo foi relatado numa voz semi-sussurrada para que a minha família nem sequer pudesse suspeitar da minha afronta, motivada pelo custo das obras de restauro duma propriedade centenária na Alsácia. A Alsácia é – pela sua bilinguidade - das melhores regiões para disfarces desta índole. Nesta altura da minha carreira já recebia os pagamentos numa conta dum banco suíço e dava-me ao luxo duma certa monogamia. Um falsificador credenciado precisa dalguma estabilidade emocional para se distinguir dum batoteiro. Profissão também bastante digna e exigente, registe-se. Mas mais monótona e exigente para as costas.

‘A vida não é argumento’ [3/9]

A falsificação que marcou definitivamente a minha dedicação exclusiva a esta actividade, foi a de um quadro de Turner. Já tinha tentado um impressionismo mais duro, ou maduro, mas fui confrontado com a desconfiança da directora dum museu em Antuérpia, que mesmo sendo apenas especialista em coxas de Rubens, torceu o nariz a um Monet vegetariano que eu tinha pintado depois dum almoço de petinga frita. Turner não é um falsificante fácil, mesmo que tal possa parecer à primeira vista. Segundo vim a apurar, o sentido e o vigor das suas pinceladas estava directamente condicionado pelo que ingerira no jantar imediatamente anterior. Passei assim duas semanas seguidas a comer uma mistela de cebola e batata-doce até sentir que já estava preparado para pintar uma maré-cheia na Cornualha. Saiu-me bastante bem, tanto em colorido como em ortodoxia de pincel, nenhuma cor parecia trair o espírito do mestre, de tal forma que depois de terminada a obra cheguei a hesitar em assinar o meu nome. O que geralmente destrói a carreira dum bom falsificador é a tentação de se tornar original e genuíno. Afastada a tentação, concentrei os meus esforços na sua venda a um antiquário estabelecido em pleno West Yorkshire, especializado em espelhos estilo Regency, e que ficou deslumbrado com a possibilidade de diversificação que eu lhe oferecia. Era aquilo a que se costuma chamar um comprador motivado, e que inclusivamente se deleitou com a história que lhe contei sobre a forma como o quadro tinha chegado às minhas mãos: um tio avô estalajadeiro que, um dia, de forma desinteressada, tinha acolhido graciosamente o pintor quando este, a caminho de Veneza, acabara de perder a carruagem das 7. E o que ele se riu com o pormenor da carruagem das 7! Mas, regra básica: o que põe um ser humano normal em estado de total incredulidade, serve para transformar um antiquário inglês numa sopeira com cio. Pagou-me com um banho de metal esterlino que me alimentou uma estadia poligâmica em Edimburgo, em que apenas tive tempo para escrever um poema inédito de Blake no intervalo das mudas de roupa. A regra dum falsificador em início de carreira é nunca repetir nem uma mulher, nem uma camisa.

‘A vida não é argumento’ [2/9]

Uma das falsificações que mais me entusiasmou foi a de um suposto original inédito (dactilografado) de Beckett. Na altura ainda hesitei entre ele e a Gertrude Stein, mas tive receio da opção pela americana pois, mesmo sendo literariamente mais fácil de falsificar, corria o risco de não poder apresentar uma história consistente sobre como me tinha chegado às mãos. Escolhi um conto breve, semi-labiríntico, brincando com as palavras ‘amours' e ‘moeurs’, encaixada cronologicamente entre a tradução francesa de Murphy e o original de Molloy, e não me foi difícil provar a consistência do texto, torneado à volta duma cena em que Miriam (a protagonista, digamos assim, se é que alguma coisa era protagonizada) repele o seu amante à base do arremesso de cadeiras chippendale em pau santo e de traições de índole sexual com um marceneiro de Lille. O alfarrabista de Rouen a quem vendi o dito produto não fez muitas perguntas, nem discutiu o meu preço (o suficiente para aguentar 10 Júlias em primeira mão durante 3 meses) e apenas indagou se eu sabia a marca e modelo da máquina de escrever. Hesitei, mas disse que efectivamente isso não sabia, tinha obtido o exemplar dactilografado em troca de mudar a fralda durante um ano a uma baronesa russa relativamente incontinente. O que faz um falsificador de sucesso é saber qual o momento certo em que deve ser sério.

‘A vida não é argumento’ [1/9]

Aceitei a minha vocação profissional para falsificador já ia para os dezasseis anos. A primeira experiência de mediano sucesso foi a pintura da quase-cópia dum Mondrian que vendi ao museu municipal de Aix-en-Provence. Na altura a explicação que dei foi que o tinha recebido em herança do meu tio avô, que afinava saxofones e que o tinha obtido como pagamento do próprio artista. O curador do museu era o que agora se chama de gay, mas na altura apenas me pareceu estranho, distraído e dado à exuberância do gesto. O quadro não me teria demorado quase nada a pintar, não fora o tom do encarnado que não me saiu bem à primeira; por falta de experiência, umas vezes aroxeava, noutras alilazava. Com o dinheiro que recebi comprei uma edição dos irmãos karamanzov em segunda mão e levei uma miúda chamada Júlia – também em segunda mão - a jantar a Monte Carlo. Corei três vezes, mas na altura já não tinha tantos problemas com os encarnados. Não me lembro do nome do restaurante, mas sei que, no dia seguinte, ainda tomei banho com ela numa praia a caminho de Nice. Um falsificador não precisa de memória, nem de imaginação. Apenas de muita atenção.