O Talismã do Barrote

Farto daqueles personagens escritores, reformados ou no activo, filósofos, professores, artistas e afins que pululam pela novelística contemporânea, julgo que chegou o momento de dar novamente algum estrelato a profissões mais simples, como os carpinteiros, que desde o Nazareno não têm nenhum representante ilustre no cluster dos grandes fornecedores de enredo literário. Carlo Clitorini era apenas um desconhecido marceneiro de Trento quando um dia descobriu que as suas peças de mobiliário provocavam reacções no mínimo curiosas e no máximo fascinantes nas mulheres. Tudo começou quando Julia Endorfini lhe encomendou um pequeno escadote para chegar às prateleiras mais altas da sua arrecadação.  Aquilo que parecia destinado a ser uma mera combinação de traves, barrotes e vigas tornou-se quase um ser vivo, passando Julia a confessar-se ao escadote cada vez que se servia dele para arrumar umas garrafas de vinagre balsâmico ou uma lata de polpa de tomate ou até uma embalagem de parmesão. Muitas vezes sentava-se ao fim da tarde num dos seus degraus, passava os lábios e o pulmão por um ou dois cigarros, e deixava-se levar pelos pensamentos mais galopantemente sensuais que a sua imaginação alguma vez tinha concebido. Descia com o corpo ainda a estremecer e quando se ia refrescar parecia sair-lhe das faces um vapor cor de sucupira. Vulcões havia que comparados com aquilo mais pareceriam bidés de massagem.  Não era pois de estranhar que Gabriela Serotonini ao encomendar a Carlo um espaldar em cumaru para montar na sua garagem, a fim de a ajudar a tornear melhor as suas coxas e cintura acabasse por criar um relação de intimidade com aquela lubricopólia de madeira que lhe recebia as costas com a dedicação dum Hércules em fase de trabalhos. O espaldar de Gabriela parecia segredar-lhe ao ouvido em pequenas descargas de prazer quando ela lhe entregava num misticismo olímpico o seu património lombar e adjacente. Não havia zona do corpo de Gabriela livre de convulsões.  Com o tempo foi ficando impossível esconder os efeitos da marcenaria criativa de Carlo e então quando este entregou a  Firmina Colamini um genuflexório em sândalo deu-se uma revolução do calibre do wonderbra. Firmina via o que mais ninguém via e como não resistia em contá-lo ao pormenor às suas amigas foi alimentando sem recuo o mito dos Móveis Clitorini. Será importante dizer que Carlo não percebia em rigor o que se passava. Confeccionava aqueles pequenos altares de marcenaria fina da mesma forma com que fazia uma cadeira, uma mesa, uma consola, ou mesmo uma cabeceira duma cama, por isso ficou estarrecido quando lhe chegaram aos ouvidos os primeiros sinais da sua improvável extasoterapia mobiliária.  Não foi pois de estranhar que quando entregou a Lilina Dopamini a sua encomenda de dois curules em angelim já antevisse dias felizes para a sua cliente. O que não esperava é que Liliana praticamente subisse ao céu cada vez que se sentava naquele curule estofado num veludo cor de terra barrenta. Foi de tal ordem a rapidez da passagem de sólidos a gasosos no seio do inconsciente bulboso de Signora Dopamini que esta não descansou enquanto não descobriu as outras clientes eleitas de Clitorini como que numa vertigem de solidariedade de prazer. Juntas faziam quase um clube dos olhos revirados e a fama da terapia de Carlo começou a subir vertiginosamente, mesmo sendo o escadote apenas um dos seus afamados produtos de madeira. Não se sabia se era dos nós escondidos das madeiras, não se sabia se era dos seus acabamentos, não se sabia se se tratava de alguma receita magnética nas ferragens utilizadas, não se sabia se existia alguma energia que brotasse das batidas do martelo de Carlo Clitorini, mas na verdade das suas mãos saíam como borboletas com cio lotes de peças únicas que forneciam às suas donas um cocktail de sensações como já não se assistia desde que Cleópatra lavara as partes baixas com o leite da burra.  Curiosamente, e para benefício das finanças de mestre Clitorini, os efeitos só se faziam sentir nas donas dos seus móveis, e quando estas convidavam as amigas para as suas casas nada acontecia para além de uma ou outra luxação devida ao esforço suplementar que faziam ao tentar penetrar no espírito da madeira. Mas, por outro lado, quando Carlo quis expandir o negócio e empregar outros artesãos para aumentar as cadências o efeito era igualmente nulo, e até, espantemo-nos, quando ele quis criar um mínimo de método na sua produção, como fosse, num dia só fazia traves para escadotes, noutro só barras para espaldares e noutro só pernas redondas de curules, as peças assim produzidas pouco mais serviam que para alimentar as lareiras durante os invernos sudalpinos, ou, quanto muito, para fazer bengalas para os maridos das clientes de Carlo, aos quais se lhes encarquilhavam os musculos passados alguns meses depois da celebrada aquisição. Daí que não havia outro remédio: uma peça de cada vez e do princípio ao fim, como se de um encantamento se tratasse, aliás, os outros homens invejosos de tanta fama com proveito (ah, se calhar pensavam) apressaram-se a chamá-lo o Carlotte, o talismã do barrote.  Fixou-se o rumor de que tudo se deveria a uma fórmula secreta de tapa-poros mas nunca se consegui confirmar tamanho segredo. As peças de Clitorini foram, naturalmente, passando de gerações e, também como era esperado, cada vez que se dava essa passagem o seu poder ia-se desvanecendo, tanto que o último êxtase registado já remonta ao ano 1998 quando uma trisneta de Julia Endorfini (a primeira cliente e que chegou a passar alguns serões oleando o serrote de mestre Carlo) ainda sentiu uma aragem morna pelas pernas acima quando subiu ao escadote de sucupira para ir buscar uma garrafa de medronho que estava escondida entre as latas de mexilhão em vinagrete.