As anotações de um picheleiro dos afectos

Caderno 1 - Tratado de educação sentimental para homens bons

5º capitulo - Cauda-de-pavão

Este pequeno estudo não podia deixar de elaborar sobre uma das situações mais trágicas do jogo amoroso. Ora a mulher, tendo também alguns traços humanos, esporádica, mas muito raramente, é acometida de momentos de fragilidade e fraqueza que a levam a iniciativas de pendor sincero e carinhoso para com o seu parceiro afectivo. A riqueza científica destes momentos está precisamente no tipo de reacção do homem e não tanto no tipo de carinho desenvolvido pela fêmea em estado de quebra psicológica passageira (não passam, contudo, daquelas absurdas festinhas no ombro, e um ou outro toque de raspão nas patilhas do homem – única razão para a sua existência, registe-se).

Por não pretender ser exaustivo vou apenas tratar dos dois principais tipos de reacção: a ‘reacção de espanto e terror’ e a ‘reacção de inchaço de peito’.

A ‘reacção de espanto e terror’ é a que ocorre com mais frequência na fase de maturidade afectiva do homem. A este, perfeitamente consciente da baixíssima probabilidade de ocorrência do fenómeno-carinho-sincero na mulher em situações de pressão e temperatura normais, a primeira explicação que lhe atravessa a sua sofisticada mente masculina é: «ela está doentinha». Efectivamente um homem fica adverbialmente marado se suspeita de qualquer maleita na fêmea que o destino pós diluviano lhe concedeu, e as reacções são quase sempre cruéis e imprevisíveis, desde a erupção cutânea, até às (vou-me arrepiar novamente) séries consecutivas de beijinhos-botão-de-rosa em zonas carnudas, passando pelos clássicos «queres que te prepare alguma coisinha, querida?» ditos com a meridiana do rosto a inclinar progressivamente para os trágicos 45 graus.

No entanto, é no segundo grupo de reacções – as de ‘inchaço de peito’ – que se encontram as verdadeiras epifanias do canónico ridículo masculino, que eu sintetizaria: ele julga-se ser adorado que nem um cruzamento de Buda com Van Damme. Geralmente o homem assume uma postura empertigada mas semi-negligente, simulando o distanciamento e a nobreza duma estátua num quartel de cavalaria, e querendo fazer crer a todo o mundo - que o olha nesse momento, obviamente - uma autoconfiança só ao alcance dum torpedeiro rodeado por traineiras. No fundo, trata-se de um homem a ser adorado em concreto por uma mulher, com as manifestações físicas que elas costumam ter nas sapatarias, ou, no caso das mais religiosas, com as imagens do Senhor dos Passos. O homem-inchado-por-indução-de-movimento-afectivo-sincero da mulher pode assim considerar-se como um património antropológico e deve ser bem preservado.


Não gostaria de terminar este capitulo sem frisar que esse sub-produto da relação afectiva-amorosa que é o sentimento feminino, é ainda um fenómeno pouco estudado, mas alguns autores inclinam-se para resquícios duma mutação que ficou incompleta durante o Grande Degelo, em que uma mulher não conseguiu terminar com sucesso a sua transmutação genética para bloco de gelo com pernas.

Two Ambiguous Figures (1 Copper Plate, 1 Zinc Plate, 1 Rubber Cloth...)

Max Ernst, ca. 1919/20
As anotações de um picheleiro dos afectos

Caderno 1 - Tratado de educação sentimental para homens bons

4º capitulo - Candela romana

Depois do último desvio epistemológico pelas veredas do ciúme e da posse, regresso para tratar dum problema estrutural da relação sentimental-amorosa: a maturidade afectiva do homem bom. Trata-se dum típico ‘conceito-atlântida’, ou seja, fala-se muito dela mas parece que não existe. Afectivamente o homem de boa índole é eternamente um aprendiz amoroso, mas é apenas a mulher que tem essa plena consciência desde o primeiro momento. O homem, bem flatulado na sua ignorância, cinco segundos depois de receber o primeiro beijo de volta sente-se mais poderoso do que um general de Alexandre; contudo, a mulher, detentora dos meios de exploração sentimental, se numa primeira fase o deixa alimentar essa ilusão, posteriormente aplica em doses rigorosas a receita da austeridade quando ele menos espera; fá-lo assim compreender, pela via abstémica, que o amor de uma mulher é um bem muito escasso e volátil, mas que o capricho é superabundante, pelo que o homem vai construindo a imagem da mulher-como-fatalidade.

A maturidade sentimental masculina é assim construída num ambiente adverso, misturando fluidos, palavras e olhares, sem os entender nem em separado quanto mais por junto, como se fosse um canarinho a construir o ninho com os raminhos a serem fornecidos pelo gato.

A mulher-fatalidade tornou-se então o verdadeiro objecto do desejo do homem bom e maduro. No entanto, quando seria de esperar um comportamento condizente da sua parte, relativizando e enquadrando as reacções da fêmea-fatal, pagando apenas o que tinha de pagar, é quando, inesperadamente, o homem começa a canalizar na mulher as suas ansiedades de natureza mais metasensual, tornando-a mulher-confidente. No fundo, ele que já lhe tinha dado o coração e depois a pila (a ordem é arbitrária), agora deixa que ela faça um escabeche com aquilo tudo.


É por isso que se associa também esta fase de suposta maturidade ao conceito clássico de homem-banana, que chega a publicamente assumir que foi uma bênção esta grande mulher que sempre o acompanhou nos momentos difíceis, e lhe espremeu borbulhas nas costas, que inclusivamente podiam ter infectado. Ou seja, o homem já percebeu no buraco onde se meteu mas agora tem de transmitir para o exterior que foi tudo planeado. É esta a sua verdadeira maturidade-afectiva.

The Equivocal Woman

Max Ernst, 1923
As anotações de um picheleiro dos afectos

Caderno 1 - Tratado de educação sentimental para homens bons

3º capitulo - Balona de calibre

Devemos agora fazer uma pequena derivação pelos mecanismos de dissonância cognitiva que actuam na psique masculina em plena destilação no alambique amoroso.

O homem bom e saudável está plenamente convicto que ser amado pela mulher que o destino lhe atribuiu é um direito que lhe assiste, mas, paralelamente, sabe que tem de lutar por essa propriedade, perdão, esse tesouro. É da turbulência desta ambivalência que resultam as primeiras reacções imprevistas e arriscadas por parte do homem. Assistem-se assim a momentos em que o trincar duma bochecha, uma mão deslizando pela parte interior dum cós, ou mesmo uma onomatopeia mais arrojada, assumem a forma que o homem bom escolhe para testar se já está numa fase de usufruto ou se ainda tem de continuar a porfiar na fase de conquista mas com a armadura já toda escavacadinha.

A mulher parece então que foi treinada desde a fase das gâmetas para agir nesse momento como se duma guerreira mongol enxertada de druida se tratasse. Oscilando entre os risinhos que pretendem simular o nervosismo da entrega total, e os movimentos esquivos que procuram inflacionar o preço do activo em especulação, a fêmea, cientificamente programada, leva o homem bom para o território em que ele se enterra que nem um hipopótamo ganzado em areias movediças: a dúvida movida a entusiasmo.

Sabendo-se entre a possibilidade de ser trocado a qualquer momento por outro que o destino tenha seleccionado como suplente, e a possibilidade de ser ele próprio o suplente, o homem bom pressente constantemente um adversário invisível e é levado a cometer os chamados ‘movimentos helicoidais do ciúme’. Ora contraindo desesperado por profunda convicção de cruel abandono, ora distendendo investido da confiança infinita dum ser eleito, o homem bom rumina angústia com empolgamento, acabando por provocar na fêmea uma canseira só semelhante à que acumula no período dos saldos.

Ora é nestas fases que se assiste igualmente às grandes clivagens semânticas. O homem bom quer paleio extensivo, quer explicações, quer confirmar as suas teorias sofisticadas de fidelidade, sofrimento e correspondência, e a mulher basicamente acha que está a correr o risco de inversão de papéis: ela é que está ali para lhe encaramelar o juízo e não o inverso.


Quando o jogo amoroso já está numa fase de troca de fluidos, geralmente é à base da hidráulica que o equilíbrio é reposto, mas quando a metafísica da relação ainda não tenha saído do espartilho escolástico, o equilíbrio é obtido com juras clássicas de amor eterno, unicidade & exclusividade afectiva e, nos casos mais desesperados, a ajuda de catalizadores líricos de rima facultativa.

The Hat Makes the Man

Max Ernst, 1920
As anotações de um picheleiro dos afectos

Caderno 1 - Tratado de educação sentimental para homens bons

2º capitulo - Fogo preso

A etapa seguinte representa para o homem bom o desprendimento total das leis do amor próprio e da noção dos limites do chamado bom senso. Vendo a satisfação da sua carência afectiva presa por fios, começa a tentar entrelaçá-los, e assim fortalecê-los, à base da clássica ‘técnica dos miminhos’.

A noção de miminho é das mais críticas para a compreensão total do ‘jogo amoroso’. O miminho é uma espécie de mijadela hominídea tentando marcar afectivamente o território da fêmea, baseando-se na suposição de que a mulher é um animal sensível. Ora está provado que a única zona sensível das mulheres são os pés, ou seja, a mulher só é sensível no que concerne à possibilidade de usar ou não sapatos de salto alto sem desenvolver joanetes. Assim, enquanto o homem se esforça com técnicas sofisticadas de festinhas no cabelo, pico-pico-saramicos nos dedinhos e, numa fase mais avançada, beijinhos-botão-de-rosa (só de pensar nisto já arrepia) no pescocinho, a mulher nesses momentos vai-se descalçando e tenta massajar a planta dos pés na canela do homem, dando-lhe inclusivamente a sensação de que está respondendo ao seu parceiro com sofisticadas movimentações de sedução corpórea.

O miminho é assim um constituinte básico da consolidação do jogo amoroso, porque permite à fêmea momentos de sub-reptícia drenagem linfática sem induzir conclusão de rejeição ou indiferença, que seriam mortais, no homem bom.

O momento crítico desta fase regista-se quando a mulher já massajou todas as suas extremidades mais de 20 vezes e até lhe dava um certo jeito coçar atrás das costas, ou mesmo pintar as unhas, mas não quer correr o risco de parecer excessivamente frívola. É neste momento que surge a hipótese cinema ou, em casos mais desesperados, uma avó entrevada a precisar de mudar o penso.


O homem bom só aceita semi-pacificamente ser trocado por um acto de caridade para com ao mais fracos, mas desde que os mais fracos sejam do sexo feminino e estejam acamados a soro. O miminho amoroso só pode ser interrompido, sem crise de insegurança, por um miminho de misericórdia.

Oedipus Rex

Max Ernst, 1922
As anotações de um picheleiro dos afectos

Caderno 1 - Tratado de educação sentimental para homens bons

1º capitulo - Primeiros fogachos

A mulher gosta de ser amada sem que se dê por isso. O homem gosta de fazer figura de parvo a amar, sem dar por isso. São estas as premissas básicas do chamado ‘jogo amoroso’, um comportamento concreto da chamada espécie humana e que a atravessa desde a infância até à falência hormonal.

A etapa inicial do envolvimento amoroso, a que normalmente se dá a designação de ‘primeiros fogachos’, é sumariamente caracterizada pela gestão da carência. O homem está carente (registe-se: o homem é eternamente carente por desígnio divino), e a mulher está fodida por não ter ninguém a quem foder o juízo (registe-se: a mulher precisa sempre de foder o juízo a alguém por desígnio dela). A combinação entre estes dois estados de alma geralmente resulta numa aproximação gradual (diz-se hesitante) por parte do homem, completamente refém da hipótese de rejeição, enquanto que a mulher começa por dar os primeiros sinais interiores de impaciência, mas está ontologicamente proibida de os revelar. O resultado é uma cara a 45 graus por parte do homem (o definitivo paradigma estético da parvoíce amorosa, e que se apresenta exuberante já nesta primeira fase) e um focinho de enjoo por parte da mulher (verdadeiro ex-libris da sofisticada sonsice feminina)

O homem, como se sabe, é intrinsecamente um ser bom (noutro capitulo irei abordar os casos em que a mulher é escrava sexual dum homem até bastante bonzinho) e por isso pensa convictamente que a mulher é da sua mesma natureza. O primeiro contacto do homem bom com a sensação de que a mulher pode ser um pouco dada a comportamentos caprinos dá-se já nesta fase dos ‘primeiros fogachos’ quando ela não fecha os dois olhinhos no primeiro beijo e depois diz que foi dum rímel novo que comprou nas promoções do Feira Nova. No entanto, nesta fase foram raríssimos os casos registados em que o homem topa a pinta do espécime com o qual colou breves segundos os lábios, e geralmente chega a propor: «querida queres que te leve a alguma perfumaria melhor?».


Sintetizando, o primeiro encaixe de peças no jogo amoroso dá-se com o homem a ficar com a sensação que Deus Nosso Senhor lhe proporcionou uma alma gémea com a qual pode construir um caminho de paz, cateterismo sentimental, e de alguma serena penetração anatómica oriunda das zonas pélvicas, enquanto que a mulher apenas acalma um pouco a sua efervescente necessidade de poder ter um brinquedo sem precisar de esperar pelo Natal.

Célebès

Max Ernst, 1921
Las Chicas de Darwin

Apesar de Carla Bruni se ter apaixonado pelo cérebro duplo de Sarkozy, a inteligência já teve melhores dias no processo de selecção natural das espécies e inclusivamente no sub capítulo do apuramento de raças, se quisermos utilizar a famosa formulação Silva 2008. Hoje a mulher quando vai escolher, na hora de preparar uma potencial procriação e/ou posterior reforma, quer espécimes que lhe garantam máxima segurança & conforto, coisa que obviamente a inteligência não proporciona. Assim, o homem irá progressivamente normalizando para um ser fisicamente equilibrado, (reduzirão as taxas de corcundas e mancos) membros robustos, coração mole (reduzirão as taxas de ciumentos e possessivos) e pila telecomandada (reduzirão as taxas dos sexualmente sensíveis). Atributos conexos como a memória e a imaginação serão igualmente desvalorizados na sua forma mais exuberante – que assim se desvanecerão com o tempo - pois podem induzir o espécime masculino a tentar distrair-se, e consequentemente desviar-se, das suas obrigações antropológicas principais.
Algumas competências de natureza lúdica deixarão também progressivamente de ser exigidas aos homens, e passarão a ser substituídas por ficheiros mp3 com piadas de humoristas consagrados activados por bluetooth ligado aos sensores de estrogénio.
Com o tempo, o novo homo sapiens sapiens do género masculino ir-se-á consolidando como um mamífero de boas cores, pele entre a manga e a pêra rocha, vocabulário entre os 2.000 e os 2.500 vocábulos, olfacto desenvolvido e especializado em legumes frescos e brisa marítima, e bons conhecimentos de canalização na óptica do desentupidor.
A evolução da espécie humana neste ambiente adverso de aquecimento global e escassez de hidrocarbonetos terá assim como driving force a capacidade feminina de seleccionar e promover exemplares masculinos aptos a saber atear e manter uma boa fogueira, dar à manivela, e a fazerem de abano.

em dia de s. joão


(*)

Wie soll ich meine Seele halten, daß
sie nicht an deine rührt? Wie soll ich sie
hinheben über dich zu andern Dingen?
Ach gerne möchte ich sie bei irgendetwas
Verlorenem im Dunkel unterbringen
an einer fremden stillen Stelle, die
nicht weiterschwingt, wenn diene Tiefen schwingen.
Doch alles, was uns anrührt, dich und mich,
nimmt uns zusammen wie ein Bogenstrich,
die aus zwei Saiten eine Stimme zieht.
Auf welches Instrument sind wir gespannt?
Und welcher Geiger hat uns in der Hand?
O süßes Lied.

Liebes-Lied (März 1907, Capri), Rainer Maria Rilke, in Neue Gedichte (1907 - 1908)

(*) Marilyn Horne - Orfeo ed Euridice (Gluck): "Che Faro Senza Euridice?"
Acho que abriu vaga em Hipona

Não estando o diabo disponível acabei por vender o meu coração à estatística: não sofro por coisas improváveis.
Deixei por isso de me apoquentar com as derrotas da selecção em momentos chave, deixei de roer as unhas por causa das carreiras europeias da lagartada, e não alimento ansiedades em torno de festinhas ternurentas que os meus filhos nunca me darão na volta geriátrica. Por isso, interesso-me emocionalmente apenas com despiques russias-espanhas, ou rangeles-vitalinos canas, ou mesmo rubens de carvalhos-graças mouras, ou seja, querelas inconsequentes para o meu débil coração, ou então invisto sentimentalmente em sucessos garantidos, género: chantagens a filhos pagas a peso d’oiro, aumentos de preços a clientes totalmente dependentes de mim, exploração de fornecedores com igual desespero, enfim, maldades sem pedigree, recheios de confissão que não me ruborizem na frágil posição de joelhos.
Sou, assim, uma pessoa medianamente horrível, um autêntico aspirante a filho de darwin, praticante amador da fórmula testada de explorar os mais fracos e evitar os mais fortes, tudo isto devidamente decorado com um paleio que vai servindo para adiar uma crise qualquer para os lados da famosa meia-idade que, espero, me encontre de péssima saúde, pois nada melhor para levar uma crise a bom porto do que uma filha da puta duma dor nas costas.
Enfim, mas o que me traz aqui a este odioso post é o meu amor à estatística. Sinto que o meu coração lida bem com a probabilidade, os meus afectos lêem os acontecimentos com um filtro de combinações e arranjos que os impedem de se colar a orgasmos impossíveis.
No entanto ainda não atingi a perfeição pois uma das fraquezas que mais me persegue é mentir um pouco quando aqui escrevo.
Com Gresso ou com Mimosa


A minha santa mãe, como de costume, fez-me o resumo do congresso do psd com a sua previsível e treinada lapidaridade: um «meteu-me dó» aplicado a Santana Lopes, um «tenho pena de não o ter ouvido porque ele agora está parvo» aplicado a Pacheco Pereira, e um «disse que não tinha ido por causa dos problemas de circulação nas pernas e eu bem sei o que isso é» aplicado a Alberto João Jardim, fizeram as honras da síntese. A comiseração e a vertigem por parvos foram duas características que eu herdei sem quaisquer percas de património genético e, por isso, sou incapaz de não admirar um coitadinho, um pirrónico e um desbocado. Felizmente não serei um eleitor padrão, pois, ao sê-lo, seríamos sempre governados por demagogos repetitivos, o que, sem petróleo no Beato, poderia ser aborrecido. Mas em politica, (tal como em assinaturas de ligações adsl e em queijos camembert) eu retiro algum prazer em ser enganado e acho mesmo que a eficiência de governo é um subproduto das circunstâncias. Ultimamente penso o mesmo em relação aos pastéis de bacalhau da minha mãe, mas, aqui, algo de mais profundo me impede de ser sincero com ela. Que o seu bolo de chocolate não sofra com uma repentina paixão por um tal de Rangel é o meu desejo neste momento.
Cinco anos a tentar desistir; algum dia conseguirei.
Civilização

Quando foi do «porque no te callas’ de Juan Carlos a Chavez, ficou-me a dúvida se estava ali apenas mais uma excentricidade borbónica ou se havia algo mais. Hoje encontrei a chave num livro do Umbral - comuna que Deus tenha - onde, dissertando sobre o sangue azul num capítulo do seu ‘Amado siglo XX’, acaba por definir-me um dos lados bons da civilização: «Una liberdad de maneras que es una nueva respiración, un aire limpio de gente que es más osada porque es más educada. Eso es lo que sin saberlo veníamos buscando». A boa ousadia é filha da boa educação. É um bocadinho irritante mas é verdade.
Minha querida Nossa Senhora do Caravaggio

Queria dizer-Te que estou um bocadinho à rasca que tu me castigues a mim e aos meus meninos por eu ir para o Chelsea ganhar tanto dinheiro, e, para cúmulo, o mais parecido que lá há com um santuário é aquela coisa de Stonehenge mas que nem tem sítio de jeito para um gajo se ajoelhar. Mas, prometo-te já, com a minha alma mais pungente que a franja do Nuno Gomes, que se amanhã ganharmos à Alemanha dou todos os meses 200 libras para o aquecimento central das capelas mortuárias da diocese de Birmingam e, se enfiarmos mais de três com um golo de penalty do Ricardo, fica já combinado que vai haver picanha tenrinha na mesa do Bispo durante toda a semana santa. Podes também ter a certezinha que vou acabar com a miséria, a violência e a macumba no Brasil, e que, no Carnaval, por cada filha de Eva que mostre as maminhas eu ofereço em expiação um terço de madrepérola às carmelitas de Ibiza. Que o demo me depile já o bigode a sangue frio se não foi por causa das alminhas do purgatório e pela salvação de todos os anglicanos de bom coração, que eu aceitei este sacrifício de ir para a missão do irmão abramovitch, que o Senhor lhe mantenha os santos poços sempre a espirrar que nem o ronaldo com a nereida nos dias de folga. Portugal é um pais que Te adora, Tu própria já lá aterraste numas azinheiras, e também sabes que esta vitória é muito importante para eles, eu até cheguei a falar com o irmão abramovitch para saber se ele tinha lugar para mais 10 milhões, mas ele disse que quando o petróleo chegasse aos 300 por barril isso talvez fosse possível, mas para já só podia levar o Deco, foi pena, mas Tu és testemunha que em primeiro lugar eu pus sempre esta pátria que me acolheu que nem uma lágrima num quadro do Murillo. Permite-me então, minha Mãe do Céu, que mandemos os alemães para o caravaggio, e que o rabinho deles arda que nem a virilha dum maratonista com os calções largos e molhados. Que a corte de anjos Te Glorifique em trivela, e me encha a boca de sabão e os olhos de ramela, se não Te falo do fundo do coração, sempre teu, pecador prenhe de arrependimento,
Felipão

Pobres mas asseados; e amaciados

Youssoup d’ Hassan era um arménio vendedor de toalhas turcas. A sua fama ia da Anatólia à Transilvânia e vangloriava-se de possuir o melhor lote de turcos felpudos de toda a Eurásia, incluindo a Irlanda que pertence à zona dos betinhos que não se querem drunfar com tratados e preferem Bushmills. Os jogos de atoalhados turcos de Youssoup eram fabricados com um algodão seleccionado e de performances impares, tanto quando tocava a absorver ou a secar, como aquando do amaciamento de pêlo que todo o mamífero valoriza, independentemente de géneros, raças, feitios e demais micoses etnológicas. Ora vendo-se acossado pela força e agressividade comercial das grandes multinacionais dos toalhetes húmidos, d’Hassan criou uma linha de toalhas turcas leves, discretas, mas sedutoras, baseado na ideia - de pendor democrático - de que todos têm direito à sua reserva de turco fofinho, procurando assim que cada europeu se apercebesse da necessidade de trazer sempre consigo uma toalhinha turca, não fosse ele e o seu sovaco judaico-cristão apanhado por um inesperado bloqueio de estrada, ou uma greve de rebocadores, ou um lock out de sex-shops, ou mesmo um surto de despejos precipitados de ameixas Rainhas Cláudia para o aterro, ou de petinga para o mar. ‘Um europeu surpreendido deve estar sempre de turco prevenido’ era o seu lema para amaciar todos os cantos do velho Continente fundado por Jacques Delors e Carlos Pimenta, frisando sempre que «nada de poliésteres», porque aquecem muito quando for caso de se precisar duma sombrinha na berma da estrada, ou mesmo no meio das moitas com aquelas baguinhas que começam brancas e avermelham com o sol e que agora não se me recorda o nome, se bem que podem ser perfeitamente camarinhas.
No entanto isto pelas redondezas não se apresenta fácil


«Everybody knows this is nowhere » (1), so «Everything is meant» (2) , but «Je est un autre» (3) , and, just in case : «We have no more beginnings» (4)


Epígrafes ‘clássicas’, que se podem encontrar por aí

(1) In ‘french kissin’, de Neil Young
(2) In ‘animais domésticos’, de Ali Smith
(3) In ‘outro eu’, de Rimbaud
(4) In 'origem das espécies', de George Steiner
120 anos e uns pózes

Não sei se tinha chegado a dizer-vos (este ‘vos’ é um acto que demonstra a minha enorme esperança e não inferior optimismo) mas praticamente arranquei a ler o Pessoa ao mesmo tempo da sopa de legumes. Quando ainda estava de biberon houve uma tentativa de bordadura dumas frases soltas do Desassossego no meu babete, mas eu extasiava-me, parava-se-me a digestão, e por duas vezes bolcei de forma extemporânea (acho que é a primeira vez que escrevi esta palavra, daí algum nervosismo) pelo que a minha mãe optou por me iniciar apenas aquando da ingestão da sopa, utilizando o velho expediente de ter um verso avulso do ‘Guardador de rebanhos’ no fundo do prato, coisa que me inspirou de forma orgânica e definitiva, e além disso me tornou muito bom de boca, entre outras extremidades, se boca for considerada tecnicamente uma extremidade, claro. Como calcularão, no meu primeiro conjunto de pás, balde e ancinho estava gravada toda a ‘Ode marítima’ porque a minha avó gostava muito daquela frase: ‘eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos’, e vai daí comecei a andar, a mijar de pé, e a comer pasteis de bacalhau sem refluxo gástrico, até aqui chegar, hoje, sendo que, o meu desporto favorito é, dizem-me, foder a cabeça ao próximo, o que, a par de ser incompreendido, experimentem e confiram, é um clímax. Mas acabou por ser quando uma vez mijei ao desafio um verso do ‘Tabacaria’ numa parede da Calçada da Estrela do lado esquerdo de quem desce – outros tempos de bexiga musculada e desperta para a poesia – que fixei definitivamente o cânone Pessoano na minha vida: ‘serei sempre o que não nasceu para isso, serei sempre só o que tinha qualidades, (…) fiz de mim o que não soube’. Ainda se nota lá hoje uma manchinha amarela pois qualquer poeta que se preze marca o seu território a ureia e sal. Os meus colegas mijavam todos poetas franceses e ainda hoje têm a próstata mais rendilhada que a Torre Eiffel; é conhecido no meio como o síndrome da uretra baudelairiana, e acabaram todos a dietas à base de sartres frias com molho camushel.
Ocimum minimum

Aquecimento para os Manjericos #6


Deuses da ternura ,/ adoçai-me a saudade amarga e pura, /(...) porção do mais leal dos amadores, (..) o que nasceu dos dissabores (...) torcendo-lhes o caminho. / Levai-me este suspiro aos meus Amores, (...) eu sou tão infeliz que isso me basta.


Prosaclite com corruptela de poema de Bocage em ‘Rimas’.

Aquecimento para os Manjericos #5


Cansei a vida / (...) à força de ambição e nostalgia, (...) /e fui-me (...) no grande rastro fulvo que me ardia. (...). Endureci de tédio, (...) nada me vive, (...) / fartam-me até as coisas que não tive.

Prosaclite com corruptela de ‘Além-Tédio’’ de Mário de Sá Carneiro

Feira

«Os jovens legalmente maiores têm tendência para a rebeldia e a libertinagem. Se os censuras num tom grave e sentencioso, mais não farás do que agravar as suas inclinações. De modo que, em geral, mais vale armar-se de paciência e esperar que se emendem sozinhos ou que se fartem dos seus erros»

Mazarin, cardeal, sec XVII, 1ª barraca do lado esquerdo de quem sobe
O barril ultrapassou os dois libidos no mar do norte, mas há quem especule em édipos esterlinos. Sem complexos.

Aloísio Frias era um psicanalista da velha escolha e sempre tinha resistido às tentações de refreshing metodológico. No entanto, um dia sentiu necessidade de experimentar a libertação desse espartilho e lançou o serviço telefónico 'SOS Pulsão'. Encarou o momento com uma mistura de ansiedade e curiosidade mas nunca esperou ter logo no primeiro dia uma chamada que lhe haveria de mudar a carreira. Aloísio Frias quis que este seu novo processo mantivesse a atitude clássica e tinha definido exigir aos tele-im-pulsionados que se deitassem num cama confortável e olhassem para algo que lhes transmitisse serenidade e confiança. Depois de ter recebido a chamada enganada duma senhora que tinha uma tendinite há coisa de 35 anos, foi a vez de atender uma outra chamada…

Utente- O meu nome é José e acho que estou com uma pulsão.

Aloísio Frias – Em primeiro lugar, sr José, está confortável?

Utente José - Sim, mas tenho andado com sonhos esquisitos…

AF – Podemos começar por aí, conte-me lá então esses sonhos, se lhe convier.

Utente José – Só na última semana foram dois com a bruxa má, três com a madrasta da cinderela, dois com a madre Teresa a abrir um hospício no teatro da trindade, e um com o pai natal a fugir para Marrocos, para já não falar daquele em que eu fazia festinhas a um Santana Lopes insuflável ...

AF – Humm, e porque é que esses sonhos o perturbam?

Utente José – Acho que estou fodido, e que isto está a virar do eros para o tanatos.

AF – Acha-se portanto a entrar numa rota vertiginosa de destruição?...

Utente José – Acho que estou a perder o domínio sobre mim próprio… e a ser conduzido por forças que não controlo… o barril de petróleo, a euribor e até os gajos de barbas que também já lixaram o Menezes e o Soares.

AF – Sente que o perseguem mesmo, ou que apenas andam por aí…

Utente José – Acho que... me espreitam, é isso.

AF – Interessante; e consegue ver-lhes a cara, sentir-lhes o bafo, ou são apenas sombras, sensações, algo recôndito na marquise da sua consciência?..

Utente José – Neste momento é já algum cagaço técnico mesmo…

AF – E o medo é algo que o incomoda?...

Utente José – Sim, foda-se, prefiria peixinhos da horta, ou mesmo polvo à lagareiro.

AF – Humm, lembrou-se de comida… e logo só de peixe…

Utente José – Pois… então até os cabrões dos pescadores, que já ninguém sabia que existiam, se lembraram que são gente…

AF – Hélàs, isto é a força da associação livre a trabalhar no inconsciente!…

Utente José– Merda, não me diga que esses filhos da puta também se vão manifestar…

AF – Calma, isto são os valores da psicanálise, continue José… eu tenho o tempo todo e são só 0,60€ por minuto… podemos voltar aos sonhos.

Utente José – O mais intrigante de todos foi mesmo o da bruxa má que apareceu quando eu fazia de branca de neve e julgava que já controlava os anões todos.

AF – Todos?…

Utente José – Pois... o cabrãozito do Resmungão virou-se contra mim e foi conspirar para a mina… olhe dr Aloísio, apetece-me matá-lo com um daqueles corta papeis que servem para abrir os livros de poesia antigos…

AF – Muito bem José, deite tudo cá para fora…é a falar que se cura...

Utente José – Gosto da sua voz calma, o sr dr lembra-me um amigo meu que foi para a construção civil, para o Porto, ele abandonou-me, ele saberia dizer-me o que fazer, não sei, e acho agora que o dr Aloísio o pode substituir ..

AF – Calma José, esta ligação que começa a sentir por mim é algo normal, que acontece durante a terapia, continue a contar-me os seus sonhos… a fazer o seu encontro com as palavras...

Utente José – Hoje acordei com suores frios por causa dum sonho em que eu estava preso num sanatório e era uma mulher parecida com a margarete thatcher, mas em escanzelado, que me vinha dar um antibiotico alaranjado, mas que não era Bactrim, dizendo: «a partir de agora são três tomas, meu querido, o teu pulmão anda a fraquejar muito, e isso já lá não vai só com jogging». Não sei, dr Aloiso, eu por um lado fiquei à rasca, mas por outro lado ela lembra-me a minha mãe quando me dava umas sandes de paio com queijo de cabra que eu nunca mais comi em Lisboa.

AF – Bem sr José, vamos fazer assim, isto já vai para cima de 300 € e os gajos do concorrência agora andam com pouco que fazer e ainda me lixam com a acusação de estorsão pela forma utentada, e por outro lado já tenho outra chamada em linha, dum gajo chamado Ribau Esteves, que diz que já não sabe quem é o pai e a mãe, e antevejo um Édipo colorido, não posso perder. Agora então o meu amigo vai levar o cãozinho a fazer chichi, depois bebe uma camomilazinha com mel e depois, em princípio, vai sonhar comigo, com o Tony Carreira, com o Raul Meireles e com as bochechas da Manuela Moura Guedes e isso passa-lhe.

Os Pachecos Alegres


A fase decadente da democracia sufragada e parlamentar, no climax do seu processo de degradação, produziu o que aparentava ser uma proteína salvadora mas que veio a verificar-se ser um mero sub-produto, gente que nem faz de hormona nem faz de enzima. Estes trovadores dum vento que nunca passa especializam-se em vidências do passado e dedicam-se a informar o povo onde acaba o crocodilo e onde começa a carteira de pele. Mas, sendo todos nós meninos da casa pia a quem os Pachecos Alegres guardam e protegem o rabinho dos predadores populistas que nos oferecem vaselinas falsificadas, só lhes devemos estar gratos, e ansiar que sejam eles os últimos a fechar a luz, porque, o mais certo, é não saberem encontrar o interruptor. Roliços, Bem postos, Burgueses à procura de pintor flamengo, Vida Repleta de Perseguições em Salas de Chá. Guardadores de Proletariado. Velhos sem Hemingway e sem Mar. Decoram povos que fazem do vestíbulo sala de estar, mas serão sempre Yves sem Laurents.

Aquecimento para os Manjericos #4

Imagens que passais pela retina / dos meus olhos, porque não vos fixais? (...) Porque ides sem mim, não me levais? / Sem vós o que são os meus olhos abertos? / (...) Espelho inútil, (...) aridez de sucessivos desertos.

Prosaclite com corruptela de ‘Imagens que passais pela retina’ de Camilo Pessanha

Aquecimento para os Manjericos #3

O teu rosto inclinado pelo vento; / (...) a feroz brancura das mãos (...) irresponsáveis. / (...) O triunfo cruel das tuas pernas (...) em repouso;/ (...) a boca sossegada onde apetece / (...) simplesmente ser (...) o peso duma flor; / as palavras mordendo a solidão. / (...) A única razão. Um pouco mais de sol – eu era brasa, / um pouco mais de azul – eu era além.

Prosaclite com corruptela & fusão de ‘Litania’ de Eugénio de Andrade e ‘Quase’ de Mário de Sá Carneiro

Procura-se colcha rendada para divã com estrutura em pau santo e embutidos a cerejeira – parte III ( e fim)

Mal ficaria contudo se eu não me referisse ao valioso contributo que Eric von Tooze prestou ao conhecimento dos mecanismos de construção dum inconsciente equilibrado. Teve bastante destaque académico a sua tese relativa às fases do recalcamento: «na 1ª fase puxa-se o inconsciente para fora, numa 2ª fase limpam-se as suas zonas adiposas por fatias, numa 3ª fase puxa-se o recalcamento com jeitinho até à beirinha, e finalmente, na 4ª e última fase empurra-se outra vez todo o conjunto para dentro até ficar bem rente». Este processo permite que o recalcamento fique alojado numa cavidade própria e assim, ao retornar, no processo da análise, não venha a entrar em contacto com as zonas mais irrigadas pela fonte líbida que lhe poderiam provocar algumas manchas de gordura.



Esboço para ‘Inconsciente fatiado com manchas de recalcário’, Eric von Tooze, lápis viarco, colecção da Fundação Skip


Finalmente, Eric von Tooze acabaria também por se dedicar a desenhar inconscientes de artistas célebres; deixo aqui, a título de exemplo, um desenho de 1947 tentando ilustrar o inconsciente de Paul Klee depois de ter cuspido uma espinha de sardinha entre duas associações livres com anchovas.

O inconsciente – um caso Kleenico’, Eric von Tooze, lápis ikea, colecção da Associação de Socorros a Náufragos da Ilha de Man
Troco uma reivindicação pulsional por duas saladas de polvo – parte II

Foi no entanto em torno do Complexo de Édipo que Eric von Tooze acabou por deixar a mais distintiva marca da sua originalidade. Um pouco ao arrepio da ortodoxia, von Tooze defendia que o desejo de matar o pai derivava em larga medida de problemas com a mesada, e que a figura paternal deveria consolidar-se sempre à base de benesses financeiras que lograssem comprar o amor dos filhos. Ficou famosa a sua frase «o pai faz com um cheque aquilo que uma mãe apenas consegue depois de espremer 50 litros de leite».

Esboço para ‘Inconsciente ediposo com pérolas’ de Eric von Tooze, esferográfica Staedtler, colecção da comissão instaladora da casa-museu Serenela Andrade

Troco uma reivindicação pulsional por duas representações intoleráveis e uns chocos com tinta

Eric von Tooze foi um psicanalista famoso que também se distinguiu por uma singular carreira de artista plástico. Filho de mãe belga e de pai austríaco tomou contacto com a actividade de Freud em Viena quando a sua mãe – um caso clássico de neurose obsessiva com tendência para salgados – trincou a língua num sonho que lhe tinha sido recomendado pelo mestre, a troco duns rissóis de mexilhão que fazia divinalmente. Von Tooze, que tinha assistido ao encontro de Freud com Breton, e se tinha escandalizado com alguma desilusão do Francês, desde cedo se quis afastar de qualquer ligação ao ideário surrealista, considerando que a psicanálise era muito mais um infindável chouriço do que um fiambre da perna. Uma viagem a França liga-o definitivamente ao movimento lacaniano e ficou conhecido pela expressão ‘o inconsciente está no traço’, numa alusão à famosa frase de Lacan ‘o inconsciente está nas palavras’, mas para a qual também certamente contribuiu o facto de ser gago e acabar por custar o dobro do dinheiro aos seus pacientes, que, não poucas vezes, e já em desespero, lhe pediam para fazer um desenho.

Esboço para 'Inconsciente a trincar a lingua depois de um lapso da mesma', Eric von Tooze, lápis ikea e lapiseira rotring, colecção particular

As suas primeiras teses desenvolveram-se em torno do ‘amor de transferência’. Firmemente convencido de que apenas quando a ‘neurose de transferência’ se sobrepusesse ao ‘sintoma’ se caminharia então para o fim da análise, Eric von Tooze formulou um modelo didáctico que fez algum sucesso baseado na tese: todo o analisado tem de saber desenhar o seu inconsciente a torturar o inconsciente do analista que nem uma chave-inglesa.


Esboço para 'inconsciente tipo chave-inglesa', Eric von Tooze, lapis viarco nº2, colecção da Fundação para o Apoio e Libertação Ortográfica (F.A.L.O.)

Já numa fase mais madura da sua vida e carreira von Toose teve de abandonar este modelo, pois um dos pacientes com indicações histéricas era dono duma loja de ferragens, e dedicou-se à análise e aprofundamento dos ajustamentos finais de Freud no que diz respeito à teoria das pulsões e à sua visão mais estruturalista depois de ‘Eros e Tanatos’.

Esboço para 'Inconsciente completamente feito em Tanatos', Eric von Tooze, lapiseira rotring, colecção do ministério das finanças do Sri Lanka