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Últimos Parágrafos #8


«No dia em que o circo fechou, Julio Facada levou a sua cadela ao veterinário para a desparasitação, era um luxo para as circunstâncias do momento, mas Filipinha seria tratada como uma princesa até que lhe fosse possível. Já Rogério Fantasia dedicou as suas últimas horas na tenda gigante a limpar as bostas de Filipão, o Elefante mais velho e amestrado, que conseguira vender à justa a um circo checo e que tinha andado de diarreia nas últimas semanas, sensibilidades de animal, nada que não tivesse também acontecido a Nabucodonosor, um tigre com sete anos que acabou por ser praticamente oferecido a uma empresa de eventos e publicidade que tinha várias contas para multinacionais de champô. Enfim, a bicharada praticamente toda tinha encontrado um destino decente, até a dupla de macaquinhos, Saraiva e Gonzaga, tinham conseguido impingir a um contrabandista de animais ali com uma loja de fachada de selos e moedas junto à Paiva Couceiro. Aparentemente tinham ido num lote com três catatuas e um pavão roubado no jardim da estrela para um condomínio privado de banqueiros islandeses na Escócia. O que se aproxima mais da vida é o circo, todos na hora da despedida se lembravam desta máxima do fundador do circo, o velho Mariano Cacete, um equilibrista, mágico e faquir como o mundo nunca mais vira igual e que ainda hoje põe as velhas do lar todas malucas, ali num edifício rosa velho junto do Poço do Bispo, quando pega em três garfos e levanta a dona Zulmira à altura do candeeiro da sala da televisão enquanto o Goucha entrevista um sacristão de Tondela que faz tarte de maçã com os restos das hóstias que se desfazem antes de consagrar.»

in Sorte Macaca, de Custódia Passos, edições Choco com Tinta, 2013

Últimos Parágrafos #7


«A primeira varejeira apareceu muito antes de os primeiros vermes terem sido avisados da ocorrência. Os raios do último sol do dia refractavam pela janela dentro e incrustavam-se nas cartilagens mais expostas criando aureolas dum brilho de cristal. A boca mantinha-se aberta parecendo reter uma frase espirituosa, o olhar era ainda de interesse pela vida mas a postura do tronco já desenganava qualquer diagnóstico mais optimista. A tripa ondulada esboçava um tímido assomo pela fresta que se abria no imponente ventre mas não chegava a instigar nenhuma curiosidade mais exigente. Quando a luz da Lua grávida despontou, um serviço de porcelana ainda a desenvencilhar-se do embrulho quis recebê-la com a distinção que merecia, mas deitada na bancada pouco mais havia que aquela bela cabeça de pescada.»

in Colchão de Noiva, de Flaubert Queirós, Edições Cacimba, 2013

Últimos Parágrafos #6


«A memória dos seus beijos era já uma coisa longínqua, mal os distinguia de simples amostras de perfume, perdera para sempre aquela sensação única do contacto, fosse tímido fosse brutal, com a sua pele, o coração desabituou-se de batidas galopantes e nunca mais teve apertos de peito provocados pela espera, pela aproximação da despedida, pelo anúncio da chegada. Regressava agora ao ser amorfo do qual pensara nunca mais vir a pertencer, teve de repescar uma essência perdida, vasculhar nos confins da capacidade de nada sentir e voltar a militar na suas teorias de desprendimento científico. Teve-a ali, nas suas mãos e deixara-a fugir, nem sabia se para outro se para ninguém, só sabia que já não a tinha, o resto não interessava, descobrira que o nada é afinal a outra face do tudo num mundo onde o meio termo é uma ilusão de óptica.»

in Fim de Tarde, de Salvador Alves Arinto, edições Fuligem, 2013

Últimos Parágrafos #5


«Comprou finalmente o seu direito a ser escravo por duzentos dólares. A vida livre trouxera-lhe dissabores dos quais nunca se soubera desenvencilhar de forma conveniente e ficara com frequência encurralado entre escolhas várias. Encruzilhadas, Bifurcações, Alternativas, Opções, de tudo isso ficaria agora dispensado, pagava para que decidissem por ele, era a melhor aplicação para as poupanças que lhe restavam. Quando Philip lhe perguntou se não viria a ter saudades de ser livre, respondeu-lhe com um sorriso condescendente que a liberdade apenas lhe servira para ter comido gelado de pistacho quando afinal baunilha teria sido mesmo a melhor escolha. Só a escravidão lhe permitiria apreciar a desilusão como destino e o destino como ilusão. Comprou roupa nova com os seus restantes cem dólares e entregou-se a uma instituição pública como funcionário para todo o serviço. Tomariam conta dele como numa utopia comunista falida, e fariam novamente doutrina consigo. Adquiriria estatuto de case study e daqui a uns anos certamente um econometrista em busca de fama se haveria de lembrar dele para tomar conta de alguma abcissa.»

in Purificação, de Raimundo Múrcia, edições Mosca Morta, 2013

Últimos Parágrafos #4


«O diabo saiu-lhe do corpo pelas três da tarde. Aproveitou e foi beber uma cerveja bem gelada testando de caminho em que estado lhe tinham ficado as entranhas. A primeira sensação foi boa, afinal o diabo deveria ter passado o tempo apenas em zonas mais subidas, e o paladar também não o traiu, exceptuando um certo travo exagerado, mas esperado, a enxofre. A ultima golfada foi acompanhada duma ave-maria mental, uma espécie de oração de circunstância mas eficaz. No pires ainda jaziam uns quantos cajús, que de forma súbita começaram a exalar um odor bafiento e acre. O diabo esconde-se nos aperitivos, riu-se. Sentia-se verdadeiramente aliviado, tinham sido dois anos de convivência controlada com o maligno, sem subsídios, sem nenhuns apoios, contra a opinião de todos, sem nunca saber ao certo onde estava metido, diga-se, mas guardara a última moeda no forro das calças para o exorcismo e vencera a tentação de a trocar por um arroz de lampreia; afinal um arroz de lampreia não passa dum arroz de lampreia e uma alma sem diabo ainda é um mar de oportunidades.»

in Infernizar, de Dário Carneiro, edições Choco com Tinta, 2013

Últimos Parágrafos #3


«A graxa já estava em grânulos, muitos anos tinham passado desde a última vez que tinha aberto aquela lata. Olhou para os sapatos castanhos com a mesma complacência com que tinha escrito a sua carta de demissão, e tomou consciência de que começara agora a ser mais um homem a carregar a sua insignificância, despido da influência que tinha exercido de forma implacável. Quase por reflexo cuspiu para o coiro seco e reparou que afinal quase tudo precisava duma boa cuspidela antes de ser começado.  Imolara-se no fogo do esquecimento para salvar a pele a um presidente eleito por meia dúzia de votos manipulados, mas quem cospe por último cospe melhor, foi a resposta final da sua consciência bem treinada para produzir consolações de recurso.»

in Surto de Sorte, de Jaime J. Jardim, edições Derrapagem, 2013

Últimos Parágrafos #2


«O ranho corria-lhe agora sem cerimónias e quando, por fim, recolheu o sal de duas lágrimas que ainda deslizavam como que perdidas, já nem estranhou a falta da saliva, que entretanto ficara retida na represa de entre-lábios, secos, tão secos eles estavam de não ver boca alheia ia para mais de vinte horas, incluindo as duas do sonho que Sofia levava. Quando Bartolomeu chegou, inclinou-se, e perante aquele panorama hídrico encolheu os ombros, virou-se para uma mulher de olhos brilhantes que o controlava em espera técnica, abraçou-lhe a cintura vindo de estibordo e levou-a para a proa. Já o sol nascera e Indira vencera.»

in Mangericão e Coco, de Vasco Dias, edições Adamastor, 2014

Últimos Parágrafos


«Carlos desceu então as escadas, deu-se ainda ao cuidado de olhar para cima, pôs as mãos cuidadosamente nos bolsos e só depois de respirar quase piedosamente fundo saiu para a rua. Foi recebido por uma chuva cinematográfica, mas sem táxi a parar à porta, pelo que teve de esperar dois literariamente infindáveis minutos. Teria sido um crime passional, uma precipitação, uma negligência, o resultado duma indiferença moral, não sabia. Os advogados que decidissem. Para ele chegava-lhe uma consciência pesada, afinal de contas nunca se dera bem com a alma limpa. Só o crime pondera, disse por fim ao taxista, e é para o Beato, mas não vá pelo rio, por favor.»

in Ruído e Sombra, de Flávio Cossaco, edições Fuligem, 2013