Frequentemente (esporadicamente, vá) me pergunto porque terá Deus inspirado o escritor bíblico com a metáfora da costela. Note-se que não ponho em causa a costela em si, até me parece um pedaço de corpo bem escolhido, - colocado numa zona a meio caminho entre as zonas de desfrute e as zonas dos bicos de papagaio, e bastante preferível a um fígado ou a uma verruga – apenas me pergunto das razões por detrás da escolha. Concedo que poderá ter sido algo mesmo da lavra exclusiva do escritor, que se sentiria no momento especialmente acossado, ou mesmo espartilhado, por algum processo de emancipação mais veemente, não ponho de lado essa hipótese, mas motiva-me mais a elucubração positiva sobre a opção da costela. Reparemos que o mundo ainda vivia uma fase de comunhão (não forçada) com o ambiente, e uma solução literária na altura baseada num elemento mais vegetal (um pinhão, um caroço de azeitona, ou um pezinho de agriões) ainda hoje poderia ser vista com outros olhos, e eventualmente mantivesse por mais anos as energias femininas focadas no núcleo pacificador do lar, que é, como sabemos, o microondas e a sopa de legumes. Mas não, foi escolhida a costela, o que eu interpreto, numa primeira fase, como um desejo de salientar inequivocamente o fenómeno do ‘osso mau de roer’. Ora se foi essa a mensagem fundadora para a feminilidade, não a devemos descurar acomodados no que tem de relativizador qualquer figura literária. Mas, por outro lado, a costela representa um osso dalguma forma envolvente, protector, propriedade que as mulheres olham com progressiva ambiguidade, e mesmo desconfiança, tanto mais que por vezes até se galvanizam com o uso da expressão «não sou a tua mãezinha», algo que, registem, deixa qualquer homem perplexo, pois em todas as mulheres está a nossa mãezinha, obviamente. Não deixa também de ser um osso que se apresenta em arco, em efectiva tensão, largando pois um lastro de energia instável mas igualmente sempre em estado de prontidão. É um osso interessante, temos de reconhecer, e uma outra opção metafórica com um cotovelo ou uma rótula poderiam ter levado a sociedade a desarticular-se ainda mais rapidamente. No entanto, reforço, o mundo vegetal tem razão em sentir-se posto de lado, foi uma certa desfeita, foi sim senhor, daí até talvez a maior propensão para a recorrente descalcificação feminina e alguma grelificação genital. Se quisermos ir mais longe, - não é dignificante, mas também não será condenável - o próprio reino mineral poderá sentir-se posto de lado, pois um feldspato ou um xisto também gostariam certamente de ter feito parte da metáfora fundadora da guerra dos géneros, reparem que até daria algum estilo um episódio do género, ‘e ao sexto dia Deus pegou num belo e roliço pedaço de basalto, esfregou-o num montinho de terra avermelhada, polvilhou-o com pólen de madresilvas, elevou-o aos céus e disse: adão, toma, põe na forja e amanha-te’» Definitivamente, penso mesmo que a necessidade de não assustar logo adão foi o que presidiu à escolha de um elemento próximo e do seu corpo, designadamente da costela, um osso que até já dava um bocadinho de si quando ele se espreguiçava todas as manhãs. Como mais ou menos já dizia Abraão a Isaac: «Deus providencia tudo». Nós é que fomos aos poucos perdendo o controlo à coisa; à costela, digamos.
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