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Os primeiros anos



Renata só tinha recordações felizes. Parecia coisa de vírus, mas só se lembrava do bem que lhe tinham feito, dos momentos bens passados, o seu arquivo mental era composto apenas de dossiers coloridos, cenas bem agrafadas, nenhumas pontas soltas, só paixões concluídas ora com amizades à prova de sexo, ora com acoplagens fecundas, ora esquecimentos olímpicos, tudo selado a sangue doce.
Houve sempre alguém que lhe puxasse pelas arrelias da vida, homens de flirt fluido ou de cérebro difícil, mas ela sabia encontrar o encanto de cada um, tinha um radar de virtudes, um detector de metais preciosos mesmo para as personalidades mais subterrâneas ou até cruéis.
Não conseguiu evitar alguns dilemas vertiginosos de deixo-não-deixo, não evitou alguns precipícios, mas conseguiu sempre encontrar uma corrente quente que a fez ascender aquele lugar plano, sereno e bucólico onde as mulheres gostam de pousar o coração por mais amazonas ou felinas que se sintam ou sejam.
Renata sabia-se uma privilegiada na lotaria dos sentimentos, jamais guardara rancores, jamais se revoltara com os caminhos por onde tinha deslizado, vivia a combinar a experiência de viver com a inocência de nascer, como um caldo de legumes frescos sempre a apurar e sempre a exalar o perfume dum prado sem maçãs nem serpentes.
Uma vez, lá num tempo semi-longe, esteve quase a deixar-se ir, agarrada por um peito incapaz de esconder funções irregulares, onde o coração já filtrava o ar e o pulmão bombava o sangue. E Renata, presa a uma rede de inexplicáveis, deixou-se arrastar, embalada por uma vaga longa, por vezes brusca, ou acelerada ou suave, ou redentora , fatal.
Era um homem inesperado, verdadeiro no olhar, safado, mas que amava também deixando-se amar, com uma intrigante ferrugem a luzir dourado, que não deixava perceber como é que o tempo passava por ele. Veio do nada. Mas ela para o nada o soube reencaminhar.

Era Rodrigo não querido por Sofia que não o queria


Podia ser desilusão, ou frustração, ou engano, despeito até, ou desespero, ou raiva, mera irritação, mas nenhuma destas explicações cobria os seus reais sentimentos. Rodrigo não sabia o que fazer com o que sentia depois de tantos anos para descobrir que afinal Sofia não o queria. Era um botânico afamado, tinha revelado ao mundo muitas novas espécies, aromas, cores, até havia uma forma geométrica que se tinha apropriado do seu nome, o rodriguezio, duma pétala de cinco lados rectos e quatro curvos que ele tinha encontrado numa planta moçambicana, até aí desconhecida, e quase parecia uma pétala que se podia vestir, nuns dias armadura, noutros dias corpete.

Fechou-se na sua estufa e procurou a resposta naqueles seres que, mesmo fustigados pelas intempéries, sabiam adaptar-se às circunstâncias, mais ou menos clorofila, mais ou menos polinização, mais ou menos enxerto.

Certamente as flores seriam capazes de lhe dar a resposta. Pegou no exemplar de malmequer mais antigo que tinha e pediu-lhe para se transformar em apenas não-me-quer. Regou-o, mudou de terra, testou vários fertilizantes, diferentes tempos e ângulos de exposição ao sol, níveis de humidade, e rezou ao tempo, o deus das flores.

Algumas semanas depois Rodrigo tinha a flor que lhe mostrava o não-me-quer de Sofia. Umas pétalas brilhantes dum lado e baças de outro, numas zonas enroladas para dentro, afastando-o, noutras com um recorte laminado, ameaçando fatiá-lo em postas se lhe pusesse as mãos sem perguntar primeiro. Olhou para elas com cuidado, procurando os segredos do não-querer e tentando descobrir como lidar com eles. Pegou em cada uma das pétalas com um cuidado dessexuado mas lúbrico, depositou-as em cima dum papel de branco lunar e apontou-lhes uma luz arroxeada, pascal, plena de intensidade curiosa e fatal como só a luz religiosa consegue ter.

E viu então o não-te-quero de Sofia. Ali explicado tim-tim por tim-tim, numa eloquência vegetal, imóvel como uma metafisica medieval: faltava a Rodrigo substância para atrair Sofia, todo ele era forma, estilo, simples desconteúdo, todo ele era um apenas apenas, um insuficiente.

Já não precisava de se sentir nem desiludido, nem irritado, nem frustrado, nem enganado, nem abandonado, nem sequer havia receio de ser mal parecido, bastava sentir-se desaparecido.

Porta 9B


Encontraram-se num restaurante que ocupava o espaço ao lado da galeria. Era um restaurante popular, com uma clientela fixa e onde nem Arménio nem Áurea, curiosamente, alguma vez tivessem entrado. Não seria o local mais aconselhado para uma conversa de reatamento, ou balanço, ou até de reconciliação, mas foi o que ela escolheu, e mais uma vez ele, inexplicavelmente, se mostrou incapaz de a contrariar. O prato do dia era cozido, um grupo de padres e seminaristas ria-se numa mesa próxima, como que querendo demonstrar que sob determinadas condições afinal a carne vale, por mais fraca que possa ser. Seria a carne algo que os unia ou os separava, pensou Arménio enquanto observava o excesso de formalismo de Áurea. Ainda ele  não se tinha refeito de uma certa estranheza em relação ao seu comportamento, quando ela o convidou a sair e a darem uma volta pela rua. Passaram por uma loja de sofás e entraram, ela queria renovar a decoração do seu escritório e pretendia comprar uns sofás para o seu gabinete - para alguns clientes especiais se sentirem mais à vontade, estás a ver? Ele estava a ver tudo. Lembrou-se do dia em que a vira pela primeira vez, lembrou-se do primeiro dia em que ela lhe embrulhara o primeiro não, lembrou-se do primeiro beijo que lhe deu a medo, lembrou-se dos repetidos calculismos dela, lembrou-se das aguarelas que ela lhe devolveu, lembrou-se das certezas que tinham trocado, lembrou-se daqueles momentos longínquos em que todas as dúvidas pareciam estar dissipadas. Ela subiu para o escritório e ele continuou a descer a rua, passando para o lado dos números pares. Poderia ser que ela ainda lhe viesse acenar à janela. Não veio.
Ela telefonou-lhe passado uma semana, disse-lhe que naquele dia quisera perceber se estava preparada para o receber outra vez no escritório, de voltar a trabalhar com o portfólio dele, e tinha ficado contente por concluir que ainda sentia o mesmo por ele. Achara-o distante, mas queria saber se ele estaria disposto a pintar uma nova série de aguarelas a ilustrar uns poemas que ela escolheria. Pintar só para ela - como nos velhos tempos. Fazê-la rir - como nos velhos tempos. Ele nem sabe bem o que respondeu. No dia seguinte Arménio dirigiu-se ao restaurante do 9B. O prato do dia era cozido outra vez mas os padres tinham ido pregar para outra freguesia. Enquanto se encostava no balcão viu passar um sofá novinho em folha para o escritório de Áurea e pensou que tinha guardado uma aguarela que calharia bem na parede que recebesse aquele couro em tons de terra barrenta. E foi nesse preciso segundo que descobriu que não passava de um parvo. E que merece um parvo?

Porta 9A


Enquanto Arménio subia era assaltado pelos pensamentos mais vulcânicos que jamais tinha experimentado. Ainda estava a meio das escadas quando ouve a voz de Áurea, vinda dum patamar mais acima, pedindo-lhe para ir andando para a loja que ela já lá iria ter. Que saudades ele tinha daquela voz que já lhe revolvera todas as glândulas num passado não muito distante. Desceu de forma automática - sempre lhe tinha obedecido, como que movido por uma força inexplicável - sem sequer ter pensado no que significava a tal loja na qual ele nunca tinha reparado, nem sequer sabido da existência. Mas lá estava, era uma galeria de arte novinha em folha, aberta certamente havia poucos dias e onde se podiam ver, entre outros quadros, algumas das suas aguarelas.

Mal sabia Arménio que nunca mais subiria ao escritório de Áurea. Os seus clientes tradicionais tinham-lhe feito ver que ela não poderia prestar tanta atenção ao portfólio de Arménio e que isso a estaria a dispersar, desperdiçando eficiência e fiabilidade. Estava ele com o seu olhar vago e opaco quando ela entrou na loja. Os seus olhos expressavam uma tristeza ainda sem lágrima e uma revolta revestida de expectativa. Não perdeu tempo a perguntar: Porque andou a expor noutras galerias? Ele ficou espantado, não esperava a pergunta, ou melhor, a pergunta parecia-lhe despropositada, fora ela que o tinha abandonado por razões que eram apenas dela. E ele não tinha feito exposição alguma, tratavam-se de informações deturpadas a que Áurea tinha dado ouvidos. Criou-se um momento de violência silenciosa, como que tudo o que fosse dito só servisse para se agredirem, e os deuses promoveram a paz do consenso possivel. De todo o modo se houvesse algo a perdoar imediatamente ficou perdoado. Corroído pela memória, sufocado pelas frustrações reprimidas, Arménio naquele momento via a sua revolta ser totalmente diluída pela presença de Áurea. Naquele período de ausência algo se teria perdido e algo se teria ganho, mas naquele momento ele não tinha capacidade para grande saltos analíticos. Deveria ter sido claro para ele que Áurea o tinha marcado com o ferro do abandono e lhe quisera transmitir a real posição dele na vida dela: era apenas um cliente diferente, diversificava-lhe o risco, mas não estava no seu cuore business. Mas ele não percebeu, os seus sentimentos despidos de calculismo impediam-no de ver tão distintamente.

Todos os dias ia passando pela rua, como habitualmente, sempre à espera que ela o convidasse outra vez a entrar na loja, mas o mais que dela foi tendo notícias era pelos convites para inaugurações de exposições alheias. A suas aguarelas tinham passado à história , mesmo que ela se esforçasse por lhe fazer chegar aos ouvidos que não havia ilustrações como as dele. A sua ingenuidade foi-lhe alimentado uma ilusão crescente até que um dia ela o convidou para se encontrarem, em terreno neutro. Ele foi.

Porta 9


Arménio Jasmim subia aquela rua íngreme como o começara a fazer regularmente desde o início do ano. Por regra não assumida escolhia o lado da numeração par, mas naquele dia frio e seco preferiu o sol que se apresentava acolhedor do outro lado. As portas não lhe eram tão familiares, as caras dentro das lojas também não, uma ou outra talvez, do café ou da papelaria onde entrara três ou quatro vezes, se tanto. Ia observando com alguma atenção mas sem aquela curiosidade que produz verdadeiras descobertas. Foi assim com um ar meio displicente que deu de caras com uma tabuleta no número 9 que anunciava 'Drª Áurea Martins - Solicitadora'. Poderia ser mais um escritório entre muitos, mas um impulso sem explicação perceptível fê-lo entrar. Uma solicitadora poderia ser aquilo que ele precisava ou mesmo ansiava inconscientemente. Mas uma dúvida tinha-se-lhe instalado logo nos primeiros lances de escada: seria alguém que faria o que ele solicitasse, ou alguém que solicitasse por ele, ou que o representasse em actos oficiais, ou apenas uma pessoa formalmente solícita que se disponibilizava a ajudar os clientes em geral naquilo que eles precisassem. Iria descobrir. Mas convém dizer que de facto Arménio nada procurava em especial, parecia apenas movido por uma simples mas determinada intuição de que ali estava algo - alguém, mais propriamente - que lhe iria mudar o rumo da vida.

Quando entrou, Áurea estava num corredor amplo, em forma de meia-lua, uma espécie de recepção, e tinha um vestido preto que lhe dava um ar simultaneamente sensual e competente, aquilo que se poderia considerar uma combinação ideal, e que ele nem suspeitava, mas rapidamente mais que suspeitou, lhe iria dar a volta à cabeça, sendo a cabeça apenas um tudo por representação. Teve de arranjar um motivo para a visita e perguntou-lhe se estava disposta a representá-lo junto de uma galeria célebre onde ele queria expor um conjunto de aguarelas que  ilustravam de forma inovadora sem inovar, foi essa a expressão que usou, algumas cenas de 'Os Maias' de Eça de Queirós. Apesar de ser a primeira vez que lhe aparecia alguém com um pedido daqueles, claramente fora da sua actividade normal junto de entidades oficiais, não estava na sua marca genética nem comercial desdenhar qualquer cliente que fosse e aquele até lhe parecia um trabalho curioso e original, à noite sonhou-o até como raro e luminoso, mesmo que apresentado por um potencial cliente sem especiais atractivos de qualquer espécie ou jeito.

Iniciaram a colaboração e a porta 9 tornou-se um destino comum para Arménio. Com o tempo Áurea começou a gostar do seu cliente e não foi de estranhar que acabassem por criar uma relação de grande intimidade, não tanto física, mas física porque na pele e no olhar começa o corpo, numa enorme cumplicidade, termo que por aqueles tempos se tornava corrente ler nas revistas da especialidade sentimental. Áurea sempre conseguiu manter uma postura fria e distante - devia colocar um iceberg na sua tabuleta, dizia-lhe ele de vez em quando - com Arménio e este não a queria forçar a dar nenhum passo do qual não estivesse seguro da vontade dela, numa mistura de ingénuo, tímido e cerebral, se não lhe quisermos destruir já o carácter antes de acabar o terceiro parágrafo. Se algo a definia a ela era um superioridade assumida, um ascendente emocional próprio de quem gere a dúvida e a insegurança alheia. E assim, ou mesmo assim, de impasse em impasse, foram construindo uma ligação forte, inequívoca e singular, praticamente um erosmilhões para quem observasse de fora; mas ninguém observava de fora. Romântica, como qualquer ligação que desafie as regras da causalidade amorosa, Esforçada, como qualquer relação que não tem um suporte logístico a justificá-la, e Livre, como qualquer relação em que nenhuma parte tem compromissos com a outra que não a lealdade. Com o tempo o enredo estava marcado pela intensidade e pela extraordinária união de afectos, mais aguarela menos aguarela. Também com o tempo vieram as previsíveis primeiras frustrações dele, que não sentia provocar a mínima atracção em Áurea que não aquela que resultasse da curiosidade intelectual ou da mera companhia agradável. Nenhum homem gosta de concorrer na liga dos caniches, chegou a dizer-lhe naqueles momentos de balanço que aparecem sempre no meio duma onda mais atrevida que prenuncia uma tempestade.
Num inevitável-evitável dia deu-se um solavanco que os afastou. Ele continuou a subir a rua mas ela já não tinha tabuleta afixada no nº9, tinha-se mudado para outro escritório, nem muito longe dali, tinha escolhido uma clientela mais certa, achava que Arménio não lhe garantia estabilidade, era errático nas suas aguarelas e nos textos que ilustravam, ora um dia comédias, noutros dramas, tragédia e sátira demasiado juntas. Ele sentiu aquele abandono duma forma cruel, sim cruel não é excessivo, mas se abandonado estava, morto não estava, era um evidência, o que me lixa são as evidências, haveria ele de repetir muitas vezes para si próprio.
Quando ela lhe fez chegar um conjunto de aguarelas ele destruiu-as de imediato, uma saudade não correspondida é um sofrimento sem cruz. O tempo foi passando como um nada sem fundo. Um dia, Arménio descia a rua pelo lado dos números pares e viu luz num dos andares da porta 9. Áurea estava à janela e acenou-lhe, tímida, mas resoluta, aliás, mais resoluta que tímida, pois tinha a certeza que ele subiria. Ele subiu.

[continua]

o garimpeiro de jales


Quando Carlos Búzio viu oiro a reluzir pela primeira vez estava a pensar em Licínia Cosme. Tudo se passou a 50 metros de profundidade e a sua cabeça parecia um tremor de terra.  Carlos tinha trocado o tungsténio de Valpaços porque lhe tinham dito que fazia mal aos amores não correspondidos e assim optou pelo metal de todas as ilusões para tentar recuperar a esperança. Mas a esperança só surge aos 100 metros. Pediu ao encarregado e desceu mais um pouco, demorou uma semana até começar a entranhar aquele cheiro intenso que exala do subsolo misterioso e que traz consigo um formigueiro que os mais optimistas comparam à paixão amorosa. Logo na primeira noite Carlos sonhou com uma Licínia sorridente, com um olhar de cobiça e uma pose de desafio. Acordou com os suores da praxe e com o seu companheiro do lado a olhá-lo com espanto.  Esse rezava, tinha ido procurar um Deus mais disponível para o perdão nas catacumbas da tabela periódica. Até em Deus podemos testar a incompreensão tal é a nossa debilidade. Ficaram os dois a falar um bocado, por entre o silêncio das entranhas duma terra em digestão lenta. Não podiam falar sobre o tempo e por isso acabaram por desfiar algumas desconfianças do mundo como quem conta carneiros. Carlos tinha a cara encostada à rocha fria, por vezes forçava a testa a provocá-la, até que o seu companheiro brincou e perguntou-lhe se procurava algum corno a nascer; então Carlos abriu os olhos e disse: felizes dos que são enganados. Tossiu, tossiu uma e outra vez, como que a tosse o estivesse a recriminar por qualquer pecado de coração. Tocou a sirene e salvou-o da penitência. Passaria o dia debruçado na garimpagem,  pensando se não teria sido melhor ter ficado em Valpaços, onde os desamores pelo menos eram recompensados com noites bem dormidas e sonhos de plástico.

O Ardor nos Tempos de Cólica

Leonel estava já reformado da Associação de Socorros Mútuos dos Vendedores de Bolo Rei de Loulé quando decidiu dar uma utilização mais criativa e colorida à sua reduzida reforma. Os tempos eram difíceis, já não se arranjavam amantes apenas à base de paleio e muito menos a debicar dom rodrigos depois de passeios à beira-mar, e havia que fazer muita ginástica com a sua parca pensão para alimentar os desejos mais ou menos íntimos de uma amante que fosse minimamente apresentável e que dignificasse um viúvo em fase de retoma hormonal. Sendo o seu primo dono dum pronto a vestir em Faro o problema da ornamentação têxtil parecia mais ou menos resolvido, mas o trinómio jantar-dançar-cama exigia um concentrado de despesas que fazia a sua pensão gemer ao fim de três sessões de troca de fluidos in-shore. Rapidamente teve de riscar as representantes de faixas etárias mais apelativas, estimulantes e exigentes, e pura e simplesmente esquecer em definitivo as deliciosas senhoras que tivessem plásticas em fase activa de project finance. Assim, enquanto a população em geral sofria de espasmos com os saldos bancários para preencher as boquinhas famintas das suas proles, Leonel ardia de desejos carnais e sentimentais por satisfazer. Face à forte discriminação de preços entre jantares e almoços Leonel teve de começar a optar por concentrar os seus contactos erofílicos nos almoços executivos, só que, face às maiores exigências de timming da sua digestão, quando se mostrava capaz de fazer uso das suas capacidades de propiciar consolo e êxtase já era quase hora dos telejornais; para além disso parecia ter a pila directamente ligada à pensão de reforma, numa causalidade confrangedora e não raras vezes a cópula foi acompanhada de visões com a sua falecida a acenar-lhe com o extracto bancário libertando cifrões por todo o seu cerebelo. Chegava a casa extenuado, cheirando a um misto de sexo e naftalina e adormecia a ouvir o troika-troika dos noticiários. Contudo, amaldiçoar a miséria da sua pensão e praguejar as sucessivas mudas de decoração com que a falecida tinha absorvido as poupanças, de forma alguma criava um clima de estabilidade nos seus recursos de sedução e, assim, Leonelão concentrava heroicamente os seus esforços em aproveitar o melhor possível as franjas já desfiadas da sua pensão e nunca por nunca deixar transparecer a terceiras que daí vinha qualquer sinal que fosse de travagem ou mera desaceleração nos seus argumentos de homem experimentado, sabedor, conselheiro e camarada fodilhão. Uma ou outra vez quase se deixou atraiçoar com desabafos do género querida achas mesmo que é preciso esse modelo de cuequinha com tantos rendilhados, querida em minha casa os edredons são dos mais fofinhos, ou mesmo querida então ele há pastelarias também tão jeitosas, mas acabou por saber virar a ansiedade que lhe acometiam as faltas de zeros nas transferências da caixa geral de aposentações no sentido de aparentarem ser meras apreciações estéticas ou até bucólicas. Com a sua pensão continuamente em stress test, Leonel, já nas mãos da previdência, colocou-se também nas da providência para poder coroar a sua ardente masculinidade em cada donzela que se perdesse nos seus braços e apêndices colaterais, como ela fosse uma espécie de complemento de reforma, um fundo de capitalização que ainda estivesse abrigado da permanente pré peritonite do estrangulado orçamento de estado. Há todo um modelo de sociedade que se joga nos pendentes dum reformado.

O caderno

Para Samuel Bonifácio chegara o momento em que tinha decidido casar-se. Era um homem de critério, possuidor dum cepticismo de cariz peri-científico e com um processo de decisão elaborado e de concomitâncias várias. Para primeiro modelo tinha escolhido o género 'mulher bonita'. Seu pai, de natureza mais prática, e depois de conhecer a escolhida, disse-lhe o primeiro óbvio das teorias do gosto: «com muito bonitas não dura». Mas Samuel seguiu o seu desiderato. Durou 3 anos e 3 meses, não parece terem ficado marcas na sua cartografia íntima e o seu sémen também não semeou. Reflectiu, todavia, e encontrou as razões no cabaz do costume: capricho e ciúme. Seguiu assim para a segunda hipótese na calha, uma mulher de cariz mais 'companheiro', da qual a sua mãe o alertou: «quando fazem  muita companhia depois não se distinguem muito dos spaniels» Como era de esperar Samuel seguiu o que tinha traçado e 4 anos e picos depois voltou ao estado civil de consumidor. As razões desta vez eram também clássicas: não ultrapassando muito a fronteira da companhia há sempre algo que murcha. Daí que a terceira modalidade do seu plano para a vida conjugal fosse previsível: critério: sexo. Desta vez o pai ainda lhe disse: é um bom critério, mas. Samuel seguiu, fodeu o que tinha de foder, como e quando nunca foram variáveis que atrapalhassem e durou 3 anos quase completos. Da introspecção saiu um veredicto: a pila é o orgão menos exigente do corpo e não pode servir de critério. Em quarto lugar estava a hipótese 'amor'. Samuel nunca pensara ter que chegar a esse ponto e inclusivamente só conhecia o conceito vagamente de ouvir falar em livros e filmes e de raspão por uma prima afastada que era frígida  e se tinha casado com um anestesista. Depois da mãe lhe ter dito que era um critério menos válido que a capacidade para fazer uma boa cabidela, mais uma vez seguiu em frente e, depois duns esponsais bem mimosos, foi trocado, pela primeira vez, por um playboy lituano ao fim de 2 anos e meio. Estranhou que o vulgo encornanço tivesse surgido apenas com este critério, mas da sua reflexão concluiu que o tal de amor é algo com bases pouco sólidas e que não deve extravasar os limites da arte ou, numa ou outra excepção, servir apenas de bónus para usar em fase de menor liquidez de recursos. Com quinto critério apresentava-se uma terminologia vaga que indicava ' 'admiração e respeito mútuo'. Como a definição de critérios já tinha muitos anos Samuel chegou a pensar que se teria tratado duma espécie de conceito residual, o equivalente ao descargo de consciência usado na psicologia de supermercado. Há que tentar, foi o que lhe disseram alguns amigos pois os pais já tinham mais que fazer. Depois de 3 anos promissores deu-se o fenómeno da dissolução da admiração, algo como um orgasmo que vira arrepio de frio, e depois de verificada a inoperacionalidade carnal do processo Samuel virou-se para o sexto e último critério, um curioso: 'bons negócios comuns'. Tratava-se de colocar a finança num patamar adjacente à moral, e fazer dela uma espécie de átomo de carbono do erotismo organizado. Inesperadamente, ou talvez desesperadamente, Samuel avançou para esta derradeira experiência com um afã de sucesso que não tinha experimentado nas anteriores. Depois de terem explorado juntos um negócio de decoração de águas furtadas não conseguiram resistir a um contentor de edredons de algodão chineses que se revelou ser de fronhas de poliester paquistanesas. Romperam definitivamente junto dum quartel da guarda fiscal 3 anos depois do dia da escritura de constituição. Samuel já nem procurava explicações e encontrava-se agora numa fase de balanço: fornicara, provocara inveja passeando ao lado de uma mulher que fazia parar o trânsito, passara serões a ver tricotar e a dar opiniões sobre cortinados, trocara ideias de forma exuberante com uma interlocutora brilhante, avalizara livranças solidariamente, enfim, experimentara um pouco de tudo o que havia para experimentar junto de uma mulher e quase que estava convencido que exagerara no seu racionalismo e que devia ter seguido o modelo do comum dos mortais em escolher um pouco ao acaso e atrás das circunstâncias, mais ou menos transvestidas de oportunidades. Mas, constatava, no fundo agora perdera a hipótese de viver com a maior das nostalgias, aquela nostalgia que já ascendeu ao pódio dos grandes sentimentos que alimentam as almas: não possuia aquela coisa da 'mulher perdida', aquela mulher com a qual, fruto das vicissitudes da vida, não tinha juntado os trapinhos. Pegou no caderninho dos critérios e escreveu: «o sucesso alcança-se com a existência duma ilusão possivel-impossivel. O terceiro excluído. A reserva intocada. A frustração é a madrinha de guerra da acção». Entretanto, o pai de Samuel enviuvara e descobrira o caderninho do filho. Apesar de conhecedor de todas as peripécias pensou que ainda tinha tempo para experimentar. Se calhar o problema não seria do critério mas antes do criterioso.

austeridade

Ela pediu-lhe para ele descrever uma cena com os dois de mão dada a ver o luar. Ele ficou relutante pois sentia que perdera momentaneamente o jeito para escrever com as emoções ao colo. Afinal de contas ele não era um escritor, um escritor tem de saber escrever em qualquer circunstância, tal como um canalizador tem de saber desentupir um cano mesmo que a mulher lhe tenha posto os cornos. Mas ele sentiu-se desafiado, qualquer coisa lhe mexeu no cordelinho da lírica competitiva e pôs a imaginação e as letras ao caminho. Pensou nos dois com as caras encostadas, entre o encosto suave do acaso e a tangente do desejo, primeiro a tentarem distinguir a tabela periódica dos cheiros e depois, já com um cheiro comum bem constituído, a avançarem para a Corte do céu. Dá muito trabalho construir um cheiro comum mas depois ele faz muito milagre por conta própria. Um céu estrelado a dois é uma moeda seguríssima, quem a possui pode considerá-la uma recordação de refúgio. Ele, entretanto, na história, segredara-lhe de repente qualquer coisa, poderia ser um simples amo-te tanto, ou um quero-te muito, ele gostava mais dos tantos do que dos muitos, ela impingira-lhe o clássico medo aos sempres, mas acabavam fatalmente naquele riso gramatical, nem a lua, em qualquer fase que fosse, lhes impedia de brincar com as palavras, tinham-lhes perdido o medo depois dum primeiro adeus mal parido e dum regresso bem sofrido. Na história já se beijavam, mas ainda os parágrafos se conheciam pelos nomes já ela o afastara por duas vezes porque queria ver melhor as estrelas, e ele já reclamara da sua curiosidade astronómica pois nenhum homem nasceu para ser acólito de telescópio, nem para ter que concorrer com uma lua armada em disco voador. Sob as estrelas o homem sabe que é o sexo fraco, prefere as grutas desde que não tragam nenhuma alegoria filosófica de brinde ou fava. Quando deram o primeiro beijo prolongado já a ursa maior parecia ter apanhado um jeito nas costas de tanto esperar. Quando o musgo recebeu o primeiro rolar de dorsos já se gemiam palavras sem significado definido, apenas decifradas por aquele desmontador de códigos que são dois lábios húmidos organizados em flor. Quando na história ele lhe mordeu um local sem designação científica autónoma, ela - feita critica literária - disse que o romantismo estava a ir pela ravina, ele corrigiu a passagem e pôs-lhe um novelo de falangetas por uma zona que não via planetas há bastantes anos, então ela sorriu, com um sorriso aberto, um sorriso de constelação, e umas pupilas em rotação, mas agora já não consigo distinguir se foi na história, se foi na imaginação, ou se foi mesmo uma manobra da sua mão.

O Padrão Louro

A melhor moeda da história é a mulher. Evitemos a indignação fornecida pela aparência escandalosa da afirmação e concentremo-nos na análise. Tudo pode ser mensurável naquilo que quisermos e, portanto: em mulheres; por outro lado todos sabemos que existem umas mulheres melhores que outras e inclusivamente a famosa lei de Gresham (também famosamente revisitada por Cavaco) pela qual a moeda má expulsa a moeda boa, ao contrário do que se supõe, nasceu da experiência dele com uma prima cozinheira que o mantinha refém à conta duma receita de entrecosto estofado com cominhos mas que acabou a coser meias para um orfanato depois de ter aparecido uma outra moça que colocava o seu entrecosto em zonas que Gresham nem supunha possuir.

Se no caso do decadente papel-moeda o seu valor sempre foi único, ou seja, uma unidade de moeda , qualquer que ela seja, vale tanto seja para comprar batatas seja para comprar fivelas para sapatos Valentino, no caso da mulher-moeda esta permite um salto verdadeiramente revolucionário na teoria monetarista pois deixaríamos de ter como únicas e incontornáveis variáveis a massa monetária, o juro e a inflação e introduziríamos uma sofisticação que facilmente se compreende quando, por exemplo, pomos lado a lado uma gaja boa com uma gaja que faça bem polvo à lagareiro, ou seja: cada mulher pode alimentar um sistema monetário inteiro. A mulher como objecto sexual puro (uma espécie de franco suíço se não quisermos perder ainda uma ténue referência ao actual sistema monetário) é uma bom índice para sintetizarmos a nossa análise. Dividamo-las em 3 tipos:  a) a mulher-sexual-activa ( ou seja, uma mulher-moeda adaptada a tempos de excesso de austeridade) ; b) a mulher-sexual-enjoadinha ( a mulher-moeda que deve ser protegida em momentos de bolha especulativa) ; c)  a mulher-sexual-tímida (tipicamente indicada para momento de excesso de liquidez). Será de fácil constatação que uma economia que se baseie num elemento de troca desta natureza tridimensional tem todas as condições para viver constantemente ajustada aos tenebrosos ciclos económicos, que mais não são que meras transferências epistemológicas do mais famoso ciclo da natureza que é o ciclo menstrual.

Serve este preambulatório para vos apresentar um economista hoje quase esquecido, Jaime Rodrigo de Alarcão, um venezuelano radicado em Lyon em meados do séc XVIII e que para além de ter sido um libertino conhecido da época ( eventualmente já poderão ter ouvido falar do 'apalpão à alarcão', um tipo de apalpão em que a mão rodeia e conforta a coxa deixando o polegar fazendo movimentos ora verticais ora circulares naquela zona em que o lombo foi justa e nalgamente promovido pelo criador)  desenvolveu aprimoradamente várias teorias em torno do conceito de mulher-moeda e deixou para a posteridade aquilo que hoje é o seu maior contributo perdido: o Padrão Louro. Para Jaime Rodrigo a riqueza e base monetária duma nação, ou dum qualquer sistema economicamente homogéneo, residia no número e qualidade de mulheres que se dispusessem à gratificação da sociedade em geral e dos portadores de pénis ( dickholders) em particular. No entanto, Jaime sabia - até por experiência libertina própria (o libertino está para a mulher-moeda como o banqueiro para o papel-moeda) - que a proliferação em quantidade e a indestrinçabilidade da mulher seriam bastante nefastas para o sistema, ao introduzir muita insegurança e decorrentemente volatilidade na equação monetária.
Foi assim com algum brilhantismo que Jaime Rodrigo ao reparar que a mulher loira se tornara um refúgio para os homens com maiores carências, pois nela identificavam uma combinação ideal de malandrice com maternalismo que os deita irremediavelmente de beiços e por terra, considerou que o número de mulheres em circulação deveria estar estreitamente indexado ao número de mulheres loiras em reserva.  Nasce dessa forma a sua Teoria do Padrão Louro. No seu primeiro opúsculo intitulado 'La force des blonde', recentemente descoberto na biblioteca municipal de Clermont Ferrand, Jaime d'Alarcão desenvolve um modelo já bastante completo e que , segundo ele, permitiria aos sistemas socio-hormonais manterem-se equilibrados, e que não surgissem nem pressões inflacionando certos elementos (como é a clássica e cíclica sobrevalorização dos tornozelos ou das portadoras de receitas de torta de laranja) , nem deprimindo excessivamente outros (já verificado também em casos relacionados com mamas pujantes, ou mesmo com mulheres especialmente dotadas para a piedade ou para as receitas de bolo de chocolate com ou sem cobertura). Este modelo tinha a virtude de ser claro e explicativo. Por exemplo por cada 10 loiras naturais em reserva (o seu palácio foi colocado como hipótese académica para banco central) poderiam estar em circulação: 25 loiras artificiais, 150 portadoras de rabo arrogante (hoje chamadas de jenniferlopez), 50 fazedoras de brincadeiras com a língua, 10 anãs, 15 estrábicas, 30 equilibristas, 150 morenas com tendência para recitar estrofes de dante enquanto as suas coxas simulavam os movimentos de reagrupamento de proas da armada invencível, 50 especialistas em sopa de cação e 30 cheesecakers. Na altura, as primeiras reacções vieram dum economista-libertino rival, o corso Victor Balestini, que considerava a ausência no sistema proposto de ruivas com jeito para pietás uma falha crítica e que iria potenciar o aparecimento das famosas madeixas que acabaram por inflacionar tanto o sexo pós-prandial, como distorceram as relações de toca com sistemas menos eficientes onde a mulher-moeda ainda era vista com desconfiança face por exemplo ao chocolate ou à sardinha.

São desconhecidas as razões que levaram à queda no esquecimento desta notável teoria do Padrão Louro em ambiente de mulher-moeda, e a viragem definitiva para sistemas de papel moeda (com o recurso ou não a padrões de reserva como o ouro ou o dólar)  acabou por nunca conseguir produzir modelos consistentes, e inclusive promoveu desequilíbrios relacionados com as disparidades de produtividade - agora amplamente tromboneadas - que evidentemente a adopção da mulher-moeda nos deixaria isentos, face à enormíssima homogeneidade de valor que se atribui , por exemplo, a uma qualquer loira com o seu par de pernas em posição de elevação de rating, saiba ou não ela fazer arroz de tomate malandrinho.

A impertinente sedução

Esta é a história de como um lapso condicionou a vida dum rapaz que até tinha algumas possibilidades de vingar na vida, designadamente na vida que interessa em momentos de dívidas soberanas, que é a vida amorosa, considerando que a moral é de um campeonato diferente e não está sob a ameaça dos mercados. Soeiro Vicente era bancário e ganhava a vida ajudando o seu patrão - mesmo que anónimo - a sacar comissões de descoberto a comerciantes dum centro comercial. Fruto dessa ignominiosa actividade foi criando uma rede de contactos que o levou sem especiais percalços a travar conhecimento dalguma forma intima com Sónia Luz, competente vendedora duma loja de relógios, moça com boa apresentação e que nem abusava do doping cosmético, se bem que não conseguia fugir da alavanca do salto alto, uma verdadeira vertigem para quem tem de sobreviver abaixo duma certa métrica. Um bancário discreto e uma vendedora de relógios parecia garantir um equilíbrio de forças com boas hipóteses de sucesso quer emocional quer até nas outras amanuências adjacentes à paixão. No entanto, Soeiro achava-se pouco atraente e, mesmo que não enciumasse em excesso , não poucas vezes fechava a agência pensando autobotonicamente em que pulso estaria nesse momento a sua Soniazinha a segurar, tentando impingir um par de cronómetros que, já se sabe , são tão falsos como o amor e os pêssegos que largam caroço. Geralmente dois suspiros e um alivio no elástico das cuecas e a ansiedade passava. Mas certo e não previsível dia, a sua irmã Lurdes deu conta da insegurança de seu irmão e foi peremptória como são quase sempre as irmãs nestes temas: tens de aplicar a sedução, mano. Infelizmente tal conselho foi-lhe dado no rescaldo duma intromissão periscópica em certos e determinados canais do seu interior gástrico e, inevitavelmente, pelas leis reveladas ao universo por um moço vienense de maus fígados, Soeiro interpretou que tinha de aplicar uma sedação em Lurdes para a libertar dessas putativas tentações com os pulsos dos clientes, e um dia, ao fim da tarde, aviou-lhe um spray pelo bucho. Sonia relaxou, inebriou, toldou-se-lhe a luz e ficou-lhe nos braços. Foi nesta altura que Soeiro pegou na gramática e com espanto reparou que se um verbo avançava para seduzida o outro se afastava para sedada. Agora, nada a fazer, ajeitar as almofadinhas, e esperar pelo despertar de Sónia: viria à superfície como uma sereia agradecida pelos feitiços do seu morfeu, ou como uma bulldozer pronta a dizer, prepara-te, meu cabrão, que aqui vou eu. No fundo o dilema de todos os homens que mesmo sem se enganarem nas terapias ficam com uma mulher nos braços. Soeiro, bancário de comissões a descoberto, afinal fora esperto, teve-a na mão, nem que fosse à base duma lapsada sedação, mas passou o resto da tarde nas compras, a aliviar da pulsão que levou nas trombas.

la nouvelle menstruine

Depois da banalização do mal, do bem, e do assim-assim, depois da banalização das uniões e das desuniões de facto, de direito, de uso e de costume, depois da banalização do sexo, da dívida, da democracia e do pacheco pereira, depois da banalização dos blogs, das bonecas insufláveis e dos campos de 18 buracos, resta para celebrar apenas a menopausa. Juliana Ester da Costa detectou a oportunidade, vendeu a sua parte numa empresa de fabrico e distribuição de scones ao domicílio e dedicou-se a organizar festas de despedida da fertilidade. Mulheres que finalmente se viam livres desse encargo ontológico de parir face à incursão selectiva dos espermatozóides mais inteligentes e atrevidos, mulheres que finalmente se viam a entrar em fase de útero decorativo, eram o mercado alvo de Ester. A  sua primeira cliente foi Helena Gusmão que dera cumprimento ao mandato bíblico por 4 honrosas vezes acrescidas de 2 falsos alarmes e um desmancho precoce originado pelo ataque fulminante dumas salmonelas marroquinas. Fora senhora de concupiscência racionalmente dirigida e nem sequer ao vizinho de baixo, um advogado especializado em direitos de autor e possuidor de fraseados com fortes poderes persuasivos, tinha propiciado uma tão ansiada comunhão copulativa & alternativa. Despedia-se assim duma fertilidade socialmente agraciada, psicologicamente tricotada e afectivamente compensadora. Estiveram presentes oito das suas melhores amigas, três ajudantes de farmácia, uma ginecologista, duas floristas e um especialista de arte ecográfica. Foi rotulada para o ocasião a edição especial dum branco frutado da Bacalhoa, e de presente recebeu um jogo de lençóis franjeados com um aproveitamento imaginativo do bordado do seu vestido da primeira comunhão, ideia da sua prima Guida que acabou por não poder estar presente por motivos inflamatórios mas impróprios para a descrição estética. Ester, ciente da importância do seu primeiro evento comercial de despedida-de-fertilidade, decidiu, por sua conta, enriquecer a festa com um grupo de musculados cuspidores de fogo da Nicarágua. Um sucesso: quatro bebedeiras medicamente confirmadas, dois momentos de carinho de índole lésbica, um jarro de tílias embebidas em pisang ambom e a revelação entusiástica de um teste de gravidez positivo numa das suas amigas ainda em idade parível. Juliana Ester sentiu-se confiante depois da estreia e avançou destemida no negócio. Antes de terminar um ano de actividade já tinha ajudado a despedirem-se da era-da-fertilidade quatro executivas do sector da cosmética e cinco da higiene íntima, duas editoras-chefe, uma escritora de roteiros para revistas de viagens, uma pintora de azulejos, três professoras de francês, uma veterinária e duas críticas literárias. Pode dizer-se sem exageros que ajudava a franquear a menopausa das mulheres propiciando-lhes um sereno e gozoso adeus à ovulação.
Rita Coutinho passara pelos seus primeiros afrontamentos com uma irritação comedida, e dissera de si para os seus estrógenos: meus filhos, ide-vos foder. E telefonou de seguida para Juliana. Foi num ápice que combinaram tudo: uma entrada faustosa pela menopausa adentro; queria deixar a fertilidade como um toiro que se afasta gloriosamente da arena deixando todos a sentirem-se uns rabejadores precoces. Juliana, com orçamento praticamente ilimitado, iria transformar essa festa retumbante numas inolvidáveis Ovaríadas do Desassossego. Rita convidou todas as amigas com quem tinha, durante o seu Período Fecundolítico, confidenciado angústias e esperanças, dilatações e estreitamentos, lubrificações e securas, exigindo-lhes um dress code que incluísse uma máscara alusiva à fertilidade e, sem quaisquer preocupações com a comparticipação financeira estatal, tudo estaria por conta dela, a nova deusa da menopausa, uma Menstrua Sagrada. Como num regresso às ancestrais manifestações dos valores e mistérios antropológicos mais básicos antevia-se a inauguração dum ritual que deixaria as tribos de todo o mundo encolhidas de vergonha e espanto. Luísa Passarinho, a sua grande companheira de rambóias universitárias, foi a primeira a chegar e vinha mascarada de espermatozóide com duas caudas. Perante a estranheza que provocou, explicou: é aquela coisa do eros e do tanatos, vem logo no fluxo ejaculatório: a virilidade é sempre um pau de dois bicos. Estava dado o mote. Não foi pois de estranhar que aparecesse um pouco de tudo, desde pílulas em veludo e cetim a deusas mamalhudas, desde vaginas gigantes a afrodites com lencinho no cabelo e espanador do pó na mão, revelando que a iconografia da fertilidade feminina é um mundo tão rico e surpreendente quanto as finanças da pérola do atlântico.
Ester tinha conseguido com a festa de Ritinha Coutinho elevar o seu conceito de festa-da-menopausa a um estatuto de quebra-mitos, desafiando convenções e alargando o grande horizonte das leis do condicionamento hormonal para lá do bojador ovárico. Chamavam-lhe agora a Mary Quant Uterina, inaugurando uma nova geração de deusas pós-Cibelianas e renovando todo o ideal feminista, transformado agora na nova trompa de falópio da humanidade: a libertação do espartilho hormonal da mulher representava a união da natureza com a espiritualidade. E assim Juliana foi criando à sua volta não só um empreendimento comercial sólido como também uma sólida ideologia de pós-fecundidade, tornando-se numa espécie de Ferran Adrià das hormonas, abordando cada cliente menopáusica como quem confecciona um bouquet místico de joie de vivre com raminhos de gloriosa emancipação: la nouvelle menstruine.

O Talismã do Barrote

Farto daqueles personagens escritores, reformados ou no activo, filósofos, professores, artistas e afins que pululam pela novelística contemporânea, julgo que chegou o momento de dar novamente algum estrelato a profissões mais simples, como os carpinteiros, que desde o Nazareno não têm nenhum representante ilustre no cluster dos grandes fornecedores de enredo literário. Carlo Clitorini era apenas um desconhecido marceneiro de Trento quando um dia descobriu que as suas peças de mobiliário provocavam reacções no mínimo curiosas e no máximo fascinantes nas mulheres. Tudo começou quando Julia Endorfini lhe encomendou um pequeno escadote para chegar às prateleiras mais altas da sua arrecadação.  Aquilo que parecia destinado a ser uma mera combinação de traves, barrotes e vigas tornou-se quase um ser vivo, passando Julia a confessar-se ao escadote cada vez que se servia dele para arrumar umas garrafas de vinagre balsâmico ou uma lata de polpa de tomate ou até uma embalagem de parmesão. Muitas vezes sentava-se ao fim da tarde num dos seus degraus, passava os lábios e o pulmão por um ou dois cigarros, e deixava-se levar pelos pensamentos mais galopantemente sensuais que a sua imaginação alguma vez tinha concebido. Descia com o corpo ainda a estremecer e quando se ia refrescar parecia sair-lhe das faces um vapor cor de sucupira. Vulcões havia que comparados com aquilo mais pareceriam bidés de massagem.  Não era pois de estranhar que Gabriela Serotonini ao encomendar a Carlo um espaldar em cumaru para montar na sua garagem, a fim de a ajudar a tornear melhor as suas coxas e cintura acabasse por criar um relação de intimidade com aquela lubricopólia de madeira que lhe recebia as costas com a dedicação dum Hércules em fase de trabalhos. O espaldar de Gabriela parecia segredar-lhe ao ouvido em pequenas descargas de prazer quando ela lhe entregava num misticismo olímpico o seu património lombar e adjacente. Não havia zona do corpo de Gabriela livre de convulsões.  Com o tempo foi ficando impossível esconder os efeitos da marcenaria criativa de Carlo e então quando este entregou a  Firmina Colamini um genuflexório em sândalo deu-se uma revolução do calibre do wonderbra. Firmina via o que mais ninguém via e como não resistia em contá-lo ao pormenor às suas amigas foi alimentando sem recuo o mito dos Móveis Clitorini. Será importante dizer que Carlo não percebia em rigor o que se passava. Confeccionava aqueles pequenos altares de marcenaria fina da mesma forma com que fazia uma cadeira, uma mesa, uma consola, ou mesmo uma cabeceira duma cama, por isso ficou estarrecido quando lhe chegaram aos ouvidos os primeiros sinais da sua improvável extasoterapia mobiliária.  Não foi pois de estranhar que quando entregou a Lilina Dopamini a sua encomenda de dois curules em angelim já antevisse dias felizes para a sua cliente. O que não esperava é que Liliana praticamente subisse ao céu cada vez que se sentava naquele curule estofado num veludo cor de terra barrenta. Foi de tal ordem a rapidez da passagem de sólidos a gasosos no seio do inconsciente bulboso de Signora Dopamini que esta não descansou enquanto não descobriu as outras clientes eleitas de Clitorini como que numa vertigem de solidariedade de prazer. Juntas faziam quase um clube dos olhos revirados e a fama da terapia de Carlo começou a subir vertiginosamente, mesmo sendo o escadote apenas um dos seus afamados produtos de madeira. Não se sabia se era dos nós escondidos das madeiras, não se sabia se era dos seus acabamentos, não se sabia se se tratava de alguma receita magnética nas ferragens utilizadas, não se sabia se existia alguma energia que brotasse das batidas do martelo de Carlo Clitorini, mas na verdade das suas mãos saíam como borboletas com cio lotes de peças únicas que forneciam às suas donas um cocktail de sensações como já não se assistia desde que Cleópatra lavara as partes baixas com o leite da burra.  Curiosamente, e para benefício das finanças de mestre Clitorini, os efeitos só se faziam sentir nas donas dos seus móveis, e quando estas convidavam as amigas para as suas casas nada acontecia para além de uma ou outra luxação devida ao esforço suplementar que faziam ao tentar penetrar no espírito da madeira. Mas, por outro lado, quando Carlo quis expandir o negócio e empregar outros artesãos para aumentar as cadências o efeito era igualmente nulo, e até, espantemo-nos, quando ele quis criar um mínimo de método na sua produção, como fosse, num dia só fazia traves para escadotes, noutro só barras para espaldares e noutro só pernas redondas de curules, as peças assim produzidas pouco mais serviam que para alimentar as lareiras durante os invernos sudalpinos, ou, quanto muito, para fazer bengalas para os maridos das clientes de Carlo, aos quais se lhes encarquilhavam os musculos passados alguns meses depois da celebrada aquisição. Daí que não havia outro remédio: uma peça de cada vez e do princípio ao fim, como se de um encantamento se tratasse, aliás, os outros homens invejosos de tanta fama com proveito (ah, se calhar pensavam) apressaram-se a chamá-lo o Carlotte, o talismã do barrote.  Fixou-se o rumor de que tudo se deveria a uma fórmula secreta de tapa-poros mas nunca se consegui confirmar tamanho segredo. As peças de Clitorini foram, naturalmente, passando de gerações e, também como era esperado, cada vez que se dava essa passagem o seu poder ia-se desvanecendo, tanto que o último êxtase registado já remonta ao ano 1998 quando uma trisneta de Julia Endorfini (a primeira cliente e que chegou a passar alguns serões oleando o serrote de mestre Carlo) ainda sentiu uma aragem morna pelas pernas acima quando subiu ao escadote de sucupira para ir buscar uma garrafa de medronho que estava escondida entre as latas de mexilhão em vinagrete.

de girino a sapo parteiro

Saraiva Gusmão era um sapo toleirão e Isabelinha Rebordosa uma libelinha caprichosa. Esta é a história dos dois, vinda do tempo em que os animais sabiam coisas.

Saraiva, quando parecia ainda estar fresquinha a sua saída da girinidade, andava pelo charco distribuindo lampeduzadas. Isabelinha achou-lhe piada e deixou-se namorar num nenúfar recatado, defendido por uma cortina de juncos que lhe abafavam as gargalhadas. Riam juntos e em separado, mas namoravam mais de sonhos que de beiços.

Cada dia que passava Saraiva parecia aos olhos de Isabelinha um sapo raro, tocado pelos espíritos do charco, e deixava de ser apenas o sapo brincalhão, mais se parecendo quase um sapo-da-guarda, um elfo da coaxada.

Com o tempo Saraiva foi fazendo com que o charco parecesse a Isabelinha um mare nostrum, e ela deslizava por entre as nuvens, que se tornavam caravelas tais as preciosidades que ia descobrindo no seu saraivinha cor de oiro velho,  uns verdadeiros tesouros babushcamente dentro doutros tesoiros.

Saraiva sabia que não havia nenhuma razão para que Isabelinha gostasse dele, nenhuma libelinha esperta fica muito tempo com um sapo apenas por causa dum jeito especial de pestanejar e enrolar ideias ao entardecer. Isabelinha começou a sentir que os nenúfares estavam a ficar muito pegajentos e foi criando uma redoma onde Saraiva só podia tentar entrar à base do seu insinuante, sedutor e sinuoso coaxar, mas com poucas hipóteses para a sua perninha alçar.

Saraiva Gusmão ora investia ora recuava e Isabelinha Rebordosa divertia-se a fazer voos rasantes, voos sem tocar, ou raspando mas sem aterrar. Sabia-se no comando das hormonas do charco e sabia que o seu Saraivinha estaria sempre num nenúfar à sua espera, contando palpitações pelos dedos, ora vestindo uma casquinha de ovo, ora fazendo uns olhinhos que mais pareciam pérolas baças pela ansiedade e a incompreensão, acompanhados de porquês lançados fugazmente pela neblina.

Um dia Isabelinha bateu as asas com brusquidão, cansou-se, foi à vida dela, deixou o rasto do adeus nos céus,  e deixou de aparecer. Quem precisa dum sapo espirituoso e chato quando se pode ter um frigorífico cheio em casa. Um manto negro baixou sobre o charco e este transformou-se num pântano à espera de dreno. Drenou, secou, e Saraivinha adaptou-se à sua nova condição de guarda de deserto artificial mas sem direito a fardamentos novos.

Veraneantes de fim de semana iam visitar o que no passado tinha sido uma luminosa lagoa. Gafanhotos, centopeias, flamingos, garças, tartarugas e pelicanos. Não se sabe se percebiam o que lá se tinha passado, nem o sapo Saraiva dava fé de nada. Limitava-se a receber com cordialidade as visitas, mordiscando as bordinhas do cromossoma de girino parvo que ainda lhe restava. Não podia ficar a olhar para o céu senão mesmo sem pescoço ainda arranjava um torcicolo, e ninguém acreditaria num sapo com torcicolo.

Por razões que os deuses do pântano desconhecem, a libelinha caprichosa resolveu certo dia fazer um voo de nostalgia pelo pântano e encontrou um Saraiva mais frio e distante do que lhe sopraram os seus radares. Era um sapo dorido. Habituado à secura e indiferente aos ventos que silvavam por entre os canaviais. Isabelinha inesperadamente sentiu um aperto no seu outrora bem camuflado coração e com os sentidos ainda perturbados pelos novos odores da seco charco começou a ter visões de saraivinha rodeado por grilas, borboletas, besourinhas e até escaravelhas, a todas dando troco com o seu encanto de coxeador. Ora quem dá o coxear um dia vai cobrar na coxinha - pensou Isabelinha - e trocou-me pela primeira beija-flor que lhe apareceu.

Afinal Saraivinha Gusmão era um galã dos pântanos. Isabelinha pensara nele mais para irmãozinho mais novo, um anfíbio-de-companhia, um parceiro de nenúfar, um galhofeiro alternativo, alguém para ir discutindo as nuances de colorido do charco, mas no fim de contas tinha ali um garanhão dos juncos. Como era possível a libelinha Rebordosa e tão segura, não ter percebido que no meio de tamanho espírito, preciosidade e tesoiro estava um salteador de arcas perdidas, um fornecedor de lemes para libelinhas, um debochado que não descansava enquanto não fizesse cavalinhos com elas.

Esta é a história sem moral de como um sapo pode passar de porreiraço brincalhão a destrauss-kahnas dos pântanos. Mas o que aconteceu foi apenas os nenúfares terem secado com falta de oxigénio e, quando o sol voltou,  a sua pele limitou-se a reflectir a luz, que antes estava filtrada e esmorecida pela sombra frígida dos bambus.

sete vezes nove não é igual a nove vezes sete

1. Quando G. se despediu de F. fê-lo duma forma displicente,  sem carinhos ambíguos nem frases de charneira, foi um adeus de currículo, uma coisa para ficar. F. enterrou essa despedida num canto do seu jardim das rejeições estúpidas, um canto onde nem os cães mijavam descansados, mas onde as chuvas ensopavam, nunca deixando lugar para a merda secar. O clássico cada um foi à sua vida prega partidas várias e naquele caso estava de serviço um destino dos que espreita sem se fazer notar. O Grande Pêndulo parecia perro e quando voltou bateu com estrondo. G. e F. gaguejaram com as suas primeiras investidas, ambos se explicavam e nada parecia ter explicação. O novelo foi-se desfiando aos poucos, cada borboto no encalço do seguinte, mas experimentando palavras antes caladas no segredo do preconceito, e na dúvida que transporta sempre o excesso de certeza. Os sentimentos mais banais pareciam bombas voadoras apanhando o balanço do Grande Pêndulo. Conseguiram fazer duas ou três paragens do tempo. É fácil fazer parar o tempo, mas exige que apenas se pestaneje nos segundos ímpares. G. era uma mulher talhada para ser única, saída dum fôlego inspirado. Uma mulher de agarrar. Mas não se pode pestanejar e F. baralhara-se na conta dos segundos. O problema dos regressos é como lidar com as partidas. Elas ficam arquivadas em que sótão? O problemas das luzes são as sombras. Onde se arquivam as sombras? Poderá uma sombra substituir a luz? Tiveram de deixar algumas perguntas no grande limbo da dor a caminho dos vários purganários da esperança. Quando cada um olhava para dentro de si via o outro. As melhores provas são as que vivem coladas à pele, como parasitas. Até a alma fica com inveja delas. Não há nada mais invejoso que uma alma alerta. Não há amor sem provas mas não há provas sem amor, concluíram.

2. G. pegara na mão dele e cartografara-lhe a personalidade. F. sabia que tinha entregue a mão para sempre. Num primeiro instante não percebeu o que tinha ido atrás da mão. Aos poucos foi percebendo. Tinha ido tudo. Saberia G. que lhe tinha ficado com tudo. Ninguém tem tudo de ninguém, diz o bem senso. E o mau senso também diz o mesmo. Como discernir, naquele caso. Pelos efeitos chegamos às causas. E quem se intromete no caminho entre as causas e os efeitos merece o desterro para os abismos da sorte. Tinha ido tudo.

3. F. beijara-a a primeira vez numa ladeira ao pé de sua casa, fora um beijo pensado como todos os beijos são pensados senão os lábios secam e G. arregalara os olhos de tal forma que F. ainda hoje não sabe o que isso significou, mas não consegue perguntar pois não se devem sobrepor perguntas umas às outras e há tantas outras por fazer mesmo sabendo-se que em cada pergunta por fazer há um menino que chora no outro lado do mundo. Mesmo assim.

4. G. dizia que não se ajeitava a exprimir sentimentos. F. dizia que era tão bom nisso que chegava a exprimir antes de sentir. Riam-se com aquele prazer que produz o riso descomprometido. Aliás, tinham-se comprometido a ser descomprometidos o que ainda dava mais vontade de rir. Mesmo quando arrufavam sabiam que acabariam a rir-se. Um dia choraram. Mas foi só um dia e nada comprometeram com isso.

5. F. conhecia bem G. G. conhecia bem F. Afiança-vos um narrador imparcial. Muito conhecimento mútuo gera confiança. Muita confiança gera segurança. Muita segurança gera tranquilidade. Muita tranquilidade não gera porra nenhuma. Afianço agora que não se conheciam assim tão bem.

6. G. um dia disse finalmente que o amava. F. estava sentado, felizmente. Inclinou a cabeça para trás e deu para os céus aquele sinal que, sob qualquer zodíaco, significa: foda-se até que enfim. Os céus não reagiram, certamente já saberiam, ou então simplesmente não queriam que ele se enchesse de entusiasmos. Um homem lida melhor com a rejeição do que com a correspondência. A correspondência é uma espécie de paz não anunciada, um armistício sem escaramuça. F. ficou tão feliz que ainda hoje pisca o olho à lua cheia. Às vezes até nem se aguenta e vai logo no quarto crescente.

7. Casaram numa igreja vazia. Só eles os dois, e a água benta descansando na pia; nenhum luxo faraónico, e  cada um testemunha do outro, no maior rigor canónico. Só ele sabia que estavam a casar, G. apenas sentiu que era um momento ou de sorte ou de azar, um solene e especial momento; hoje discutem se houve consentimento, chamam-se amor, príncipe e princesa, querido, flor, sim, parece ter sido consentido, e sem ponta de relaxe;  treinam as ternuras da praxe, em várias línguas, sabendo que umas são mais doces e outras mais afoitas e, claro, já tiveram de se esconder atrás das moitas. Treinaram todos os tipos de beijos: os audazes para demonstrar força na adversidade, os fugazes para provar bom aproveitamento do tempo, deram-nos bem cobertos e ao relento, mas sempre de olhos abertos. Minto, também com eles fechados, a sussurrar ténues obscenidades, como quem trafica mentiras ao preço de verdades. Chegam a dizer que mantêm a frescura do primeiro dia, aquele em que os olhares se cruzaram, os vasos timidamente se dilataram, e as prudências mais alto falaram. Se um tesouro de diamantes incrustado, muita falta lhes fazia, têm-no, bem guardado, pois possuem um, só deles, primeiro dia.