walkin' to ...





smsantologia

"Stiller Freund der vielen Fernen, fühle,
wie dein Atem noch den Raum vermehrt."

R. M. Rilke, 'XXIX' ('Die Sonette an Orpheus', Aubier, pg 250)
Classic renhaunhaus & silly silly season

Cleópatra apesenta-se a
Goneril:



Mefistófeles apresenta-se a Jasmin:

Fazedor de rebanhos

Pega-se, para começar-se, em meia dúzia a fazer de vítima, mais uns três ou quatro, parecidos mas diferentes, a fazer de mártires, e nunca esquecer, nesta altura, de juntar logo outros quatro a fazer de perseguidos com um no meio a fazer de ingénuo; logo de seguida coloquem-se, bem juntos, os que fazem de irónicos e os incompreendidos, e acrescente-se uma dupla de crédulos a emparelhar com outra de incrédulos; é o momento certo de introduzir os fartos de boa experiências e os a quem abunda a capacidade de compreender os outros; para terminar, aconselha-se uma fila de aureolados pelo mistério entremeados com os suficientemente esclarecidos; pontilhar eventualmente aqui e acolá com engraçadinhos ou irónicos, sem nunca esquecer os de memória espevitada -seja de formato curto ou comprido - e os de imaginação arrebitada; se houver tempo será sempre preferível arranjar ainda dois ou três originais combinados com outros tantos dos que nunca se deixam enganar. A fechar mesmo eu cá metia um daqueles que diz que só gosta de olhar em frente. Um ou outro distraído também pode ser conveniente para ir entretendo os lobos.
Contos com uma bossa nova mas sem camelos II

Achavam que as suas opiniões políticas eram coisas muito íntimas e por isso dedicavam-se às questões do sexo. Nesse dia tinham ido para casa dela; entre um instrumental de ‘Tanto mar’ e umas revistas de viagens ela mostrava-se inesperadamente ansiosa. «Com músicas destas um homem nivela por cima e amolece as partes baixas» resmungava ele, ainda acrescentando, à procura de uma piada mais sofisticada «este gajo aqui lembra-me sempre a música do kusturica depois de tomar uma dose excessiva de relaxantes musculares». A chicobuarquização do sexo era algo que o aborrecia, o seu corpo não valorizava o charme e só reagia com a ivetesangalização das hormonas. E ela sabia-o. Mas ela também sabia que primeiro tinha de o arreliar um pouco. Há certos homens assim, precisam de se irritar um bocadinho para desenvolver depois. «Os homens são muito previsíveis», pensava ela, já sem dar demasiada importância (até há tipos que escrevem livros à conta disto). Depois chegam a aguentar com Simones e Betânias e marcha tudo, ‘cordilheiras’, ‘gotas de agua’, ‘yolandas’, é o que se quiser. Mas voltemos ao sexo que é para isso que aqui estamos. Naquele dia ela parecia também confusa por causa das questões de distribuição da riqueza, ou de um problema relacionado com o estado providência, não deu para perceber bem, é daquelas coisas que, sem se saber bem porquê, deixam certas mulheres com uma… avidez sensorial, digamos assim. A certa altura um tal de João Gilberto canta que ‘isto é muito natural’… e que ‘no peito dos desafinados também bate o coração’. Os deuses sabiam que esse era o momento em que os ventos mudavam: a irritação masculina juntava os trapinhos com o socialismo utópico feminino e iniciava-se uma revolução à espanhola. ‘Eu caçador de mim’ tocava ainda o Milton Nascimento, mas não ia a tempo: o molho já não estava para coalhar. Até dançaram ao som do Ney Matogrosso antes de voltarem a desfolhar as revistas de viagens. Tinham fornicado que nem uma ONG a viver à conta de transgénicos da coca, fazendo o bem com as forças do mal.
Contos com uma bossa nova mas sem camelos I

Tinham como amigos comuns apenas as personagens secundárias de romances que não bestsellerizaram, os heróis esquecidos de epopeias mal resolvidas e os anjinhos anónimos e meio debotados dos quadros renascentistas. Amavam-se, mesmo, e acompanhavam-se mútua e gueixamente nesse mundo tão real como a música que ouviam juntos. Pintavam a quatro mãos, ao som de Toquinho em ‘Aguarela’ e inventavam cores só deles, sombreados só deles, curvas só deles. Tinham também um andar só deles - mistura de ronda de guarda fiscal com deambulação de frade em ruminação de vésperas – e gostavam de se perder para o treinarem melhor em ziguezagues devidamente disfarçados. Um dia cantaram juntos Caetano e as notas saíram-lhes tão puras que ‘com cinco ou seis rectas fizeram o castelo’ onde se beijariam no ‘silêncio da noite’ ‘juntando o antes, o agora e o depois’. Perceberam que quando Deus inventara o tempo dispensara-os das suas tormentas, dos seus enganos e deixava-os agora embalados com o ‘aconchego’ da ‘estrela mais linda’ cantada pela Elba Ramalho. Um dia ficaram tensos por causa dum personagem perverso que baralhava o ciúme iniciático com a inveja decadente e apenas o desejo cirurgicamente reprimido ao som duma Simone qualquer lhes conseguiu remendar o rasgo; decidiram daí para a frente cultivar amizades apenas com personagens de lirismo moderado, sem ambiguidades explícitas, com gostos gastronómicos bem fixados e sem traumas nem de classe nem de educação. Evitariam Vinicius – especialmente no ‘minha namorada’ – e, apesar de poderem consumir Elis em doses moderadas, era-lhe vedada a ‘Fascinação’. Brincavam até com os ditos amores platónicos, chamando-lhes, rindo-se, deboche, pois estavam convencidos que quem não soubesse amar como eles, um amor sem teorias clássicas por armadilha, estaria destinado a viver apenas a comer peixe em conserva, enlatado num carinho previsível e embebido num óleo para facilitar o escorrimento da vida.
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«O amor (...) manifesta uma tendência volúvel para se transferir num movimento desapiedado e enviesado de um objecto brilhante para outro mais brilhante nas circunstâncias mais inadequadas»

John Banville, 'O mar'
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«Je n’y perds pas; votre dot valait mieux que vous; à présent, vous valez mieux que votre dot. Allons, saute, marquis«

Marivaux, ‘Le jeu de l’amour et du hazard’
Conto de Beachbop & swinging days III

Mas ainda estava guardado Charlie Parker para um Relaxin’ at Camarillo, a fazer jus ao nome e a preparar a pele para ‘funky blues’. Muitas vezes só vale mesmo a pena a música que se sabe deixar arrastar, que sabe ’ficar para aí’, como aqueles amores que não conseguem ser escritos porque envergonham as palavras, e vivem tanto das pausas como dos frenesins. Charlie Parker enervava-o, porque fazia o inesperado tornar-se previsível, como se o livre arbítrio fosse uma brincadeira para deuses com falta de animação. As coisas mais insípidas da vida são as surpresas e os crescendos em piano porque, ainda para mais, dão a ilusão de que o céu é o limite, quando, o limite somos nós. Quer estejamos organizados em estados, ou bandos ou pandilhas; ou seitas, ou quartetos de cordas. Quer o nosso desejo fosse apenas fugir para Cantaloupe Island enquanto a alma ficava à espera do seu ponto rebuçado. Se bem que, se bem que, todos temos um dia em que trocaríamos a alma por um bolo de chocolate ou por arbitrar uma troca de galhardetes entre Parker e Monk.
Das metamorfoses

“os cavaleiros do asfalto devorando quilómetros” por um repórter da antena 1 na volta a Portugal em bicicleta
Conto de Beachbop & swinging days II

Tinha sido com ‘Lush live’ que Chet lhe prestara o seu primeiro servicinho cupidiano. No entanto, apenas servira de aperitivo para um Sonny Rollins em ‘Decison’, onde, ao seu ouvido - também fraudulento – tudo lhe pareciam trompetes. De castigo, durante dois anos apenas se deu a ouvir guitarra, apenas lhe passou pelos ouvidos um envolvente e quente ‘west coast blues’, e não se sentia capaz do saxofone, nem de trocadilhos mais palavrosos . Quando voltou ao ‘Stopper’ do bom do Sonny sentiu que já não tinha o estômago preparado e teve de digerir muitos clarinetes antes de lá poder voltar de peito feito, que nem profeta em crise de terras prometidas. Chet fazia-lhe ainda mais falta agora que Benny Carter já não o surpreendia com ‘Angel eyes’. O próximo big bang, Deus vai fazê-lo ao som do Coleman Hawkins, e aí sim, body and soul ficarão definitivamente ligados, e S. João baptista vai comer gafanhotos para o Mississipi.
Conto de Beachbop & swinging days

Chet baker cantava qualquer coisa como «let’s get lost’ … in each other eyes… let’s tell the world we are in that crazy mood..» , com aquela voz a fugir para o efeminado, enquanto os miúdos lagartavam nas dunas; num riso que cruzava o cacarejar nas subidas e o uivar nas descidas mostravam um mundo que não existe. Nas fotografias antigas apenas a areia aparentava ser a mesma. O nome dos cremes ia mudando, reflectido um progresso de plástico em cima duma pele de estufa. Os feitios ora se arredondavam ora se lapidavam num processo de sobrevivência, meio de selva, meio de salão, mas os olhares já não conseguiam ficar pendurados numa surpresa qualquer, num disparate, numa inconveniência. Se não fosse o Chet Baker o mundo seria um mero duke ellington entremeado de Coltranes. Mas, se não fosse o cool, o tempo nunca mais teria voltado a ser afrodisíaco.
Da curiosidade (dos 'contos' e da vida pelas cartas da Senhora Baronesa)

Ter-se-á passado mais de um ano sobre o acaso da leitura de um post num blog cujo nome não retive - e de que apenas me recordo estar alojado no Wunderblogs - sobre a, para quem necessitar de classificações, chamada 'escrita feminina'.

Numa recente passagem por alguns blogs novos - pelo menos para quem se fidelizou a uns raros três ou quatro, todos quase contemporâneos deste -, supostamente escritos por mulheres, vinha-me frequentemente à ideia a crítica mordaz lida nesse post. Crítica essa em que, se calhar não por acaso, a autora Clarice Lispector - de quem, de resto e mau grado o óbvio de uma escrita aforística em que se ensaia a intelectualização por transferência do território instintivo das vivências próprias ou alheias, aprecio algumas obras - era um dos alvos. O que li nesses blogs femininos encaixa - apesar da abissal diferença de Lispector, no que à qualidade da escrita se refere,
em relação à rudimentaridade, tantas vezes limite, da linguagem usada nos blogs a que me reporto - em pleno na crítica antes referida. Porque, ao contrário da Zerlina de Hermann Broch a que parecem aspirar assemelhar-se, falta-lhes a capacidade de mediação estratégica entre os territórios do erótico e do discursivo. E nessa medida mesma, o que se pretende fazer passar por discurso erótico mais não passa de arremedo de linguarejar ético, constituindo-se pela insuficiência de recursos (quiçá de propósitos, também) na incapacidade de ajuizar o produto que assim se converte aos olhos de quem o lê, seja por inabilidade seja por inocência, no seu próprio carrasco.

Diz a Zerlina a certo momento: "as cartas da Baronesa, que dantes tanto despertavam a minha curiosidade, agora só me causavam asco". Mas a Zerlina está muito longe, na altura em que faz esta afirmação, de ser "uma jovem e inocente camponesa". E sabe que "parvoíces [daquele] género deitava ["a cabeça de galinha", Srª Baronesa] cá para fora às dúzias". Como sabe, fruto de uma sageza fundada em percursos tão difíceis quanto pedagógicos, que entre os leitores masculinos há "homens que colocam as mulheres ou nos píncaros ou nas profundezas, e que por isso têm de as servir com o seu corpo, enquanto que com a alma não as podem ter em consideração". Homens que "não podem amar, não podem senão servir". E que, como Don Juan, "servem, em cada mulher que encontram, aquela que não existe, mas que amariam se existisse, e que por isso não é mais que um mau espírito que os subjuga". E a que uma mulher que os ame mais não resta como forma de auxílio, se não para a tarefa impossível da libertação pelo menos para a exequível da vindicação, que a impiedade (ou a maldade) de anular a força do ódio pela fraqueza da ternura. E assim ser mulher. E, se isso ainda fizer algum sentido depois de (se) ler enquanto mulher pelo olhar de um homem como Hemingway ou Broch, sendo "o pudor [...] como uma roupa" - pelo que convém não esquecer a qualidade do design nem a do tecido - escrever 'como mulher'. E rematar tudo, mas sobretudo o que saudavelmente se deitou para o cesto dos papéis ou para o recycle bin, com uma enorme e inevitável gargalhada.

Excertos assinalados por "": Broch, H. (1988) "A Criada Zerlina". Lisboa: Difel. (pp 43-50)

Conto sem assador

Acordou mulher bomba. Vestiu-se à pressa e meteu qualquer coisa à boca. Sim, essa mesma boca que o tinha beijado horas antes. Correu para o autocarro, sentou-se a olhar pela janela para lado nenhum como tinha visto num filme e pôs-se a pensar na vida. Sim, essa vida que nunca tinha vivido. Não parou mais de dois segundos na mesma cena, passou pela infância que nem um foguete, fez a baixa adolescência num abrir e fechar de olhos, e nem perdeu tempo com a perca da virgindade. Sim, ela já tinha sido virgem. Encalhou no primeiro amor, como todos aliás, mesmo aqueles que nunca o tiveram. Sim, principalmente esses. Um ligeiro solavanco apanha-a numa discussão com o pai, subitamente sobe-lhe pela espinha uma saudade desse homem que o coração agora arquivava como referência. Sim, tinha coração de arquivista. Não se muda de flashbacks com facilidade e com a inevitável cabeça atirada para trás suspira uma contrariedade inesperada, vinda dum período confuso, tão cheia de homens como de perfumes, tão cheia de dinheiro como de azedumes. Felizmente um inconsciente bem treinado fá-la atravessar esse período sem embaciar muito a janela. Sim, uma mulher também pode não conseguir chorar. Começou a sentir um nervoso miudinho, estavam quase a aparecer-lhe os filhos, aquela prisão com cheiro a camomila, sem querer riu-se, apesar do motorista não ter notado, mas também faz parte da função destes motoristas especiais que transportam vidas em balanço serem o mais discretos possível. Sim, estamos todos sozinhos quando se trata de filmar com a alma. De repente o pensamento tornou-se errático, aquilo tecnicamente até deixou de ser pensamento, porque deixou de ter meio e saltava constantemente dos princípios para os fins. O banco começou a incomodar, o corpo fez sinal de que havia vidas para matar. Deu o encontrão ao bêbedo aforístico que aparece sempre nessas alturas e saltou para a rua. Desgraçadamente estava um dia radioso, às vezes dão raiva dias tão bons, céus tão esplendorosos, deuses com tanta misericórdia, acordes com tanta melodia. Sim, a terminação a felicidade atrapalha certas rimas. Vinha-lhe uma música à cabeça, um folk mal amanhado, arrastado quase gospelianamente, e deixou-a parada no passeio procurando uma montra para fingir outro olhar. Calhou-lhe uma drogaria em promoções. Era o dia da benzina. Nunca mais o sonho foi o mesmo, uma nódoa não estraga um vestido, a vida é para ser esfregada e continuada. Meteu a bomba no saco e só não foi comer castanhas assadas porque era verão. Sim, para celebrar o regresso à normalidade dão sempre jeito umas castanhas assadas para o estômago se preparar. E ela tinha uma cintura tão bem desenhada que era uma pena aquele cinturão de dinamite. Era preferível encostar-se numa esquina a snifar a benzina.
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Folheei o teu corpo como um livro
à procura da tua alma: encontrei-a no índice.

Albano Martins, "Como um livro", Coração de Bússola (1967)