A Nirvanária de Lhasa

Joacir Suleim era já a maior revelação do tele-evangelismo da última década. A sua seita tinha nascido em plena cidade de S. Paulo, no seio dum grupo de descendentes de japoneses descontentes com o culto baptista local, que os descriminava em relação aos descendentes de escravos africanos, porque estes cantavam e dançavam melhor, e tinha alcançado uma forte expansão alicerçada em programas de rádio e televisão animados por recreações de cenas evangélicas em que Jesus aparecia sempre acompanhado de miúdas tailandesas giras e cujo jingle do genérico ‘Quem quer jogar a primeira pedra?’ foi um estrondoso sucesso, tendo vendido mais de 3 milhões de cópias, e posto meia América do Sul a cantar o refrão: ‘se você não sabe o que é o pecado / coma só o arroz e bote o filete de lado’. No entanto, outra das razões do seu sucesso foi ter prescindido do clássico dízimo e apenas exigir 7% aos seus prosélitos, que podiam assim gastar os restantes 3% no jogo do bicho, desde que 50% dos ganhos revertesse para um fundo denominado: ‘a bilha da pecadora’. Ficou assim conhecida nos congressos ecuménicos como a ‘Igreja da bilha’, e tinha cada vez mais seguidores que usavam como símbolo uma mão em forma de concha – pelo que eram tratados carinhosamente como os ‘apalpa bilhas’.

Joacir já há muito que tinha começado a fazer incursões apostólicas por outros continentes, e sempre com sucesso, mas sentia agora que tinha de fazer algo pelo distante oriente, que até estava ligado à sua génese sociológica, e pensou ser uma boa – e evangélica - oportunidade dar uma mãozinha aos Tibetanos, propondo ao amigo Dalai Lama uma espécie de franchise do tele-budismo. E lá arrancou ele a caminho da alta montanha com uma proposta revolucionária intitulada ‘A Bilha de Lhasa’.


Joacir – Oi, Seu Lama, belo granel ‘cê tem por aqui, heim?

Dalai L – Tudo bem, isto deve ser a corrente de energia a funcionar, um karma equivale a aí uns 300 amperes…

Joacir – Mas custa-me ver-vos a levar tanta porrada, nem os anabaptistas nos seus tempos mais duros…

Dalai L – O importante é cultivar o bem, manter o espírito limpo, e deixar os avatares poisar…

Joacir – Mas, Dalai, minino, ‘cê tem de ter mais iniciativa, ‘cê tem de acreditar com mais convicção… ‘cê tem de pôr esse nirvana a abanar!

Dalai L – Mas o mais importante é termos sabedoria, afastar-nos do mal...

Joacir – Param as máquinas, seu Lama! ‘Cê com esse negócio aí, e ainda para mais sem uma picanha em condições, ‘cê vai acabar com todo o mundo reincarnando em alcachofra!

Dalai L – Mas então que devo fazer, bodhisattva amigo, achas que devo ser mais activo e provocador como aquela rapaziada do turbante e do chá de menta?

Joacir – Brother Lama, não precisa de se esticar tanto… começa por pensar nisto: um, o povão aí gosta da jogatana; dois, ‘cê precisa de graveto; três, ‘cê não está oferecendo nenhum deus em condições para canalizar tanto karma; quatro, o povão precisa de sentir ansiedade para a religião medrar; cinco, ‘cê tem de pôr umas miúdas na engrenagem.

Dalai L – Humm… estou vendo… se calhar vou diversificar e tomar conta duns casinos em hong kong… juntar as pessoas à mesa da roleta e pô-las a pensar no grande espírito do bem…

Joacir – Vê Dalailão, isso é que é falar! ‘cê faz assim: na roleta, sempre que sair o número 6, toda a receita reverte para um fundo de renovação das pintura dos budas, e nas mesas de cartas, sempre que sair o rei de copas, todo o dinheiro que estiver na mesa ‘cê diz que vai para um fundo para as almas que tenham apanhado algum mau jeito na coluna durante o processo da reincarnação...

Dalai L - .. e se calhar todos os dias às 7 da tarde faço uma happy hour de espargos com berengelas grelhadas a metade do preço… e vai para um fundo para reparar as telhas dos mosteiros, porque se não os avatares ainda torcem algum pé…

Joacir – Ó meu Bodhisattva dum cabrão, ‘cê dava um evangelista dos 7 pentecostados, e como ‘cê vai chamar essa sua rede de casino maravilha?

Dalai L – Pensei em ‘Nirvanária do Karma’ e já tenho um patrocínio do Lipton ice tea…

Joacir – Só lhe falta mesmo uma musiquinha, ó Laminha!...

Dalai L – E tens alguma sugestão boa para manter o pessoal acordado, ali a enkarmar numa boa, a afastar o espírito do mal, e a largar o dólar para a corrente do bem?

Joacir – Basicamente 'cê tem de saber que a meditação só é negócio quando for 'cê mesmo a vender os sofás e a caipirinha, de resto o segredo é sempre: um bom cagaço e um melhor regaço.

Dalai L – Mas Joacir, meu avatar de andorinha, isto é uma espiritualidade milenar, uma coisa é injectar algum graveto na corrente do bem, outra é pôr os meus fiéis a andar de cu tremido… não te esqueças que o Theravada cruza com o Mahayana e nessa altura o Mantra encosta no Fo tsu que nem o Sidharta em flor de lótus a partilhar o Dharma

Joacir – Fosgasse, Lama, vocês parecem-me umas grandas dalailonas… não admira que os xiao pings vos queiram ir ao lombo…

Dalai L – Somos pacientes, queremos alcançar a sabedoria que nos levará à cessação do sofrimento e...

Joacir – Quirido, ‘cê faz-se… mas arranca aí primeiro com esse negócio da ‘Nirvanária’ e depois eu arranjo-te umas bailarinas em Belo Horizonte que até sobes do Rossio ao Karma ainda o Bodhisattva Avalokitesvara Ksitigarbha Sakyamuni não acabou de dizer o nome.
Ora, Pascoela

Apichatpong de Antunes era motorista de táxi em Londres e nas horas vagas um sobredotado neuro-fisio-pato-químico; filho de mãe indiana e de pai incógnito, (mas de cópula registada na bomba nº3 da estação de Antuã, na categoria sem chumbo) só gostava de carros com mudanças automáticas e não aceitava gorjetas porque ia contra a sua religião, que ninguém conhecia, mas que passava por rituais bem determinados com uma máquina de calcular, semelhantes à recitação madrassânica do Corão só que sem tanta exigência para as costas, designadamente vértebras nº4 e 5.

Apichatpong tinha durante anos passado as suas horas vagas, incluindo semáforos com o sinal encarnado, no aprofundamento duma teoria da área das neurociências que concluía ser o cérebro humano muito mais indicado para produzir sentimentos, da mais variada índole, do que propriamente para assimilar, elaborar e reproduzir conhecimento. Assim, com o advento das tecnologias cibernéticas de última geração, estas deveriam servir para libertar o cérebro humano desse trabalho insípido da acumulação de saberes, e ainda por cima maçadoramente selectiva, e permitir que ele se dedicasse essencialmente a estimular sentimentos, que, para além disso, são o que verdadeiramente levamos para a cova, seguida de degradação da carne, juízo final e correspondentes desaguadouros teológicos.

Esta ideia de especialização do cérebro humano fora do âmbito das tarefas de amanuense do conhecimento veio-lhe quando um dia tentou enganar um físico nuclear num serviço entre Heathrow e Piccadily com uma conta de 2.000 libras, tendo recebido como resposta que ele «fosse para o protão que o pariu porque o graveto que lhe tinha custado a ganhar a desenhar bombas de neutrões não serviria para ensaboar a electrona da mãe dele». Ficou-lhe claro que o cérebro, ao ser deslocado para operações de raciocínio, armazenamento e movimentação de ideias e dados, poderia deixar de conseguir produzir eficaz e organizadamente verdadeiras sensações mobilizadoras e constitutivas de bem ou mal estar (nunca lhe tendo interessado a felicidade como variável do sistema).

A Apichatpong de Antunes começou a ficar cada vez mais claro nas suas pesquisas de retrovisor que os cérebros que se especializassem em propiciar para o ser que lhes calhou em rifa um determinado sentimento, e não se desgastassem a recolher e interpretar os múltiplos acontecimentos que a nossa condição - ávida de prolixidade - produziu, em muito pouco tempo conseguiriam sentir praticamente o que quisessem, no e durante o tempo que estipulassem, e tudo isso numa performance absolutamente sincera e sem quaisquer artifícios.

Assim, num teste sem paralelo na neuropsicofisiologia moderna, conseguiu pôr uma prima afastada, natural de Goa e analista financeira da Salomon Brothers, a ter um orgasmo em 2,5 segundos tendo-lhe sido apenas sussurrada a palavra ‘jeropiga’, quando ela normalmente ainda precisava de 19 segundos para ganhar 2 milhões numa operação de futuros com obrigações convertíveis da procter & gamble, e o mais próximo que tinha ficado do clássico êxtase de libido fora num dia em que um fox terrier amestrado lhe tinha lambido a zona supra rotular durante 4 horas a troco de dois rosbifes. Um segundo teste com um historiador de Cambridge foi ainda mais deslumbrante; passado 15 minutos de treino este conseguia chorar baba e ranho durante duas horas por uma tia americana de bigode com problemas na tiroide, - e que só conhecia por lhe ter oferecido ‘O Principezinho’ num natal longínquo - quando, mesmo nos seus melhores tempos de jovem catedrático, levava 1 dia inteiro a decorar a lista do nome dos cozinheiros da Invencível Armada que eram especialistas em tortilha com cogumelos, expediente esse que geralmente lhe servia de muleta pedagógica nos congressos em que os telemóveis eram admitidos.

A prova definitiva da sua tese de que o cérebro é muito mais competente como máquina de sentimentos do que como motor de saber deu-se quando Apichatpong conseguiu ir buscar o Sloterdijk ao observatório de Greenwich, e, antes de chegar a Covent Garden, o gajo conseguiu ter dois flagrantes delitos metafísicos sem espumar da boca, praticamente em menos tempo do que medeiam duas citações de Nietzsche no dragoscópio para explicar o funcionamento do sistema digestivo da baleia azul.

Ciente da revolucionaridade da sua descoberta, Apichatpong acabou por deixar o ofício de taxista, mas o incidente com uma cena de ciúmes mal calculada entre um casal de dinamarqueses surdos-mudos forçou-o a abandonar a prática da sua ciência, e hoje descasca e distribui concentricamente rodelas de cebola num descascall center da mc donalds de Birmingam, enquanto nos tempos livres chora em casamentos e baptizados; passa factura.
Luna Park


A ESCALADA

A famosa flotilha
Pela escotilha
Assalta a esconsa ilha

Um
Mais astuto
Subindo pelo regaço
Assenta firme o laço

Eis a escalada
a hábil
inacabável
perseguição lábil

Ana Hatherly, in ‘ A Neo-Penélope’, &etc 2007
Apichatpong Weerasethakul

Vem no umblogsobrekleist. Parece que é um realizador Tailandês que «tarda em estrear». Eu penso que um nome assim vale mais que mil imagens. E ainda mais por estrear. Sloterdijk, duraste dois posts.
Cantinho da lágrima #1

Há muitos, muitos, anos que a minha mãe, quando se despede de mim, quer seja por telefone quer seja mesmo pessoalmente, me diz sempre: «que Deus te abençoe meu filho». Claro que uma vez ou outra, por força das circunstâncias, pressa ou distracção, mas muito, muito, raramente, não o diz. Noutro dia dei por mim a sentir essa falta. Confirma-se assim que, como em tantas coisas da vida, sentir a ausência tem mais força do que as mais bem intencionadas demonstrações da existência.
Nota técnica sem interlúdio musical

Vinha aqui apenas comunicar para os devidos efeitos que se tivesse 15 anos e se estivesse numa aula de francês e se uma colega minha semi-gorda estivesse aos berros com uma professora enfezada lutando pela posse de um telemóvel e com todo o pessoall aos berros e gajas gordas a saltar por todo o lado e tivesse um telemóvel que filmasse, atenção: eu filmava; tudo; e pedia às gajas gordas para me saírem da frente. E se calhar até dizia fodasse; umas três ou quatro vezes.
Procuro apenas uma nota de pé de página de Hume para explicar esta época da lagartada. (1)

«Os indivíduos que filosofam actualmente têm de, antes de mais nada, e ainda que queiram articular estados místicos em sua causa, aprender a falar sobriamente sobre o êxtase, isto é, a levar adiante uma biologia dos estados excepcionais no âmbito de uma física geral do conhecimento» , Sloter, Sloterdijk para a malta amiga, pg 79


Adozinda da Silva foi uma filósofa portuguesa dos finais do sec xviii que, ou por ser mulher ou por ser Adozinda, viu relegada para o esquecimento a sua original teoria dos estados excepcionais. Influenciada por um obscuro pensador francês de nome Phillipe Chartres - ostracizado pelos seus pares porque nascera em Reims – que introduzira o tema da pulsão do êxtase quando Decartes tinha começado a fazer furor com o seu racionalismo filigranado, Adozinda incorporou na seu pensamento a ideia de que todos somos seres de excepção, mas, como somos muitos, a excepção torna-se muito parecida com a normalidade. Todavia, com uma mentalidade reinante ainda embebida do barroco tardio, um raciocínio tão límpido, e ao mesmo tempo tão desmistificador do dogma empirista em ascensão, pouco mais poderia almejar do que duas ou três referências num livro de culinária editado pela sacristia de Tibães dedicado à pelicula queimada do leite creme. A sobriedade com que Adozinda abordava a excelência do espírito liberto das insinuações da carne, sem enveredar pelo facilidade do paradigma místico, era realmente inovador, e não fora um padeiro em Sangalhos se ter interessado pela sua forma de descrever a alma como um enfarinhado com um ligeiro travo a erva doce, e hoje Adozinda não passaria duma mera professora de francês para filhos da corporação de correeiros de Oliveira do Bairro. Adozinda, sem se deixar «surpreender em flagrante delito metafísico», (2) realçou firmemente - mas sem o histerismo anti-positivista - o carácter ascendente da alma em relação ao destino último e, sem perder tempo com prefigurações aristotélicas, remeteu o ser para a sua real e natural condição de ausência de pachorra para essências, nem que cheirassem a alecrim. Abordando Nietzsche mesmo antes de este andar sequer aos pulos de colhão em colhão, Adozinda da Silva explorou a capacidade de autofermentação da natureza humana, realizando finalmente, se bem que desconhecendo ainda o genoma do malmequer, que o homem não é flor que se cheire; ou, melhor dizendo, como Sloterdijk repescaria do subterrâneo de Dostoievski: é um «animal bípede ingrato». Após uma vida apagada, jaz na Mealhada, numa vala incomum.

(1) kant já procurei, não tem
(2) vide Sloterdijk pág 103, obra supracitada

Mas Adozinda Cruz já me parece um bom nome

Aqui para nós, não me cativa especialmente o que as pessoas pensam em concreto, e é até muitas vezes um critério bastante mais fiável para mim se os nomes delas caiem bem na verdadeira dinâmica da vida, que é a dinâmica do paleio, ou se me põem a língua em risco de ficar presa com alguma cãibra; é aliás essa a especial razão do fraco sucesso que fazem os Nietzsches e os Kierkegaardes, por exemplo, e da pouca influência que qualquer um deles tem, efectivamente, no coração dos homens, algo que está bem patente no facto de não se lhes ter sido dedicado nenhum prato de bacalhau, bem diferente do que aconteceu, por exemplo, com o Mr. Brás ou o Mr Pipo. Ora foi esta regra básica de bom senso que sempre me afastou dum tal de Sloterdijk, mas tenho de reconhecer que um momento de fraqueza me fez recentemente tomar contacto com essa figura, e não foi em nenhuma salada, nem num molho de barbeque: foi mesmo num cabrão dum livro. Comprado ao calhas e lido ao calhas, fodendo-me progressivamente a curiosidade que nem uma broca diamante, e estando eu bem consciente que ao soletrar o nome desse gajo me aproximarei duma velha atropelada por um comboio, de placa rachada, e em ressaca da terapia da fala a pedir um saco de amêndoas recheadas no lidl. Comecei descontraidamente pela página 38 (reparem que nas páginas 38 nunca aconteceu de certezinha rigorosamente nada de especial até à fusão entre Sloterdijk e a paginadora da Relógio de Água) só que nesta página 38 o supra referido Sloterdijk – até a dedilhar isto estou mais hesitante que a escolher o programa certo da máquina de lavar loiça – delibera que se a sabedoria de Shakespeare (ora aí está um nome bom de amanhar) for de fiar, «o homem, graças à sua cobardia, é o ser no qual o infortúnio amadurece», o que, diga-se, é uma ideia boa de mais para estar numa página 38. Pensava eu que se tratava dum mero acaso, e preparava-me para saltar para uma página 79 quando, de relance e ainda meio desfocado pelas filhas da puta das lentes que devem ser de contrabando, constato que o gajo a quem a mãe em vez de lhe arranjar um diminutivo carinhoso parece que lhe arranjou um aumentativo, escreve como quem não quer a coisa que «a fuga na paciência e na contenção é, também, juntamente com a fuga para um devir futuro, uma resposta-protótipo dos homens às crescentes adversidades da situação mundial». Calma; o Sloter, Sloterdijk para os amigos, em primeiro lugar, aconselha calma.

Quase 1600 anos antes de Shakespeare pôr Hamlet a falar com um fantasma, e mais de 1800 anos antes de Dostoievski ter posto Raskolnikov a matar a velha

Em Jerusalém, numa sala especialmente preparada para ser pintada uns anos depois por pintores renascentistas, «sabendo Jesus que o Pai depositara nas Suas mãos todas as coisas e que havia saído de Deus e ia para Deus, levantou-se da mesa, tirou as vestes e, tomando uma toalha, colocou-a à cinta. Depois, deitou água numa bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha.

Simão Pedro - Tu vais lavar-me os pés?

Jesus - O que eu faço, tu não podes entendê-lo agora, mas hás-de sabê-lo depois.

Simão Pedro - Nunca me lavarás os pés

Jesus - Se Eu não te lavar não terás parte comigo

Simão Pedro - Senhor, não só os pés, mas também as mãos e a cabeça

Jesus - Aquele que está lavado não necessita de lavar senão os pés, pois está todo limpo. Também vós estais limpos, mas não todos.

Depois de lhes lavar os pés e de retomar as suas vestes Jesus volta a de novo à mesa

Jesus - Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-Me de Mestre e Senhor, e , dizeis bem, visto que o sou. Ora se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também.

Dito isto Jesus perturbou-se

Jesus - Em verdade em verdade vos digo que um de vós há-de entregar-me

Os discípulos olharam uns para os outros, sem saberem de quem Ele falava. Simão Pedro fez um sinal a um dos discípulos, aquele que Jesus amava, e que estava à mesa junto ao peito de Jesus.

Simão Pedro - Pergunta-lhe de quem fala.

Discípulo - (inclinando-se sobre o peito de Jesus) Quem é, Senhor?

Jesus - É aquele a quem Eu der o bocado que vou molhar.

Jesus, molhando o bocado, deu-o a Judas Iscariotes, filho de Simão, que o engole; e nele entrou Satanás.

Jesus - O que tens a fazer fá-lo depressa sem demorar.

Nenhum dos que estavam à mesa compreendeu a que propósito lhe dissera isso, porque como era Judas que tinha a bolsa, pensaram alguns que Jesus lhe tinha dito para ir comprar aquilo de que precisavam para a festa.

Judas saiu imediatamente. E era noite.

Jesus´- Filhinhos, ainda estou um pouco convosco. Procurar-me-eis e, como disse aos Judeus, também vo-lo digo agora: Para onde eu vou, vós não podereis ir. Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros. É por isto que todos saberão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.

Simão Pedro - Para onde vais Senhor?

Jesus - Para onde vou não podes tu seguir-me, por agora; seguir-me-ás depois.

Simão Pedro - Porque não posso seguir-te agora? Por ti darei a minha vida.

Jesus - Tu darás a tua vida por mim!? Em verdade, em verdade te digo: não cantará o galo sem tu me teres negado por três vezes»



Escrito supostamente por João, um dos doze apóstolos, o «discípulo amado», de quem se diz que esteve com Maria junto à Cruz, e que com Ela depois ficou, e de cujas conversas, que supostamente ambos tiveram em Éfeso, agora Turquia, haveria também de surgir este texto profundamente teológico, e a que também se veio a chamar de Evangelho, (parte) lido hoje por todo o mundo; mas ainda não saímos da idade dos porquês.
right on time

Resmoneias bem mas não me filáucias

A reportagem anterior sobre o caso do tráfego ilegal de inconscientes ficaria indesculpavelmente incompleta sem o relato dum inesperado cruzamento de vidas que se viria a revelar dramático, se não mesmo praticamente shakespiroso. A troca de perspectivas entre a arq. Flávia e o sr Calisto corria de tal forma animada que este chegou a pensar em montar um negócio de lavandarias panorâmicas ali na encosta de Alhandra virada a Sul; mas o que não estava nos cálculos do Sr Calisto é que Gasparzinho (o estofador que debutou no rebentar de águas desta reportagem) para terapêutica contra o golpe que a dra Ludovina lhe tinha desferido, passou a fazer uns biscates para gabinetes de arquitectura que diversificavam no cluster da decoração de interiores. Não será por isso com estranheza que os meus estimados ouvintes – se encostarem o ouvido ao ecran vão notar um barulhinho: sou eu – acolherão a notícia de que Gasparzinho em pouco tempo passou a tratar da moldagem dos enchimentos da arq Flavia. A inevitabilidade da tragédia estava no ar: Flavia não aguentou uma escolha permanente entre o sifão e o almofadão, e, um belo dia, depois de ter ido vistoriar um corrimão com torcidos destinado a decorar uma cavalcavia a instalar no logradouro dum condomínio privado ali junto ao jardim das Cortes, foi assolada por um ímpeto de desgraça, e anakareninou-se para debaixo dum eléctrico na calçada do Combro. Gaspazinho, que tinha ficado com um par de fronhas ente mãos, rapidamente lhes arranjou destino, porque a espuma e a fibra adaptam-se a tudo, no entanto, o sr Calisto estava inconsolável pois, como se calcula, o tambor duma Indesit não centrifuga numa Ariston qualquer. Quando Gaspazinho lhe foi apresentar os pêsames, numa atitude que só o dignifica – e inclusive lhe pode garantir o céu - acrescentou que o que mais lhe encantava na Arq Flavia era o cheiro afrutado do amaciador que ela usava na roupa, ao que o Sr Calisto respondeu, qual Mário Crespo, «é escusado, mas vindo de si é sempre bem vindo». Ficou uma amizade para a vida, daquelas que nem uns pastelinhos de bacalhau com batata a mais conseguem desfazer; chamam-lhe destino.
Oracles are not to be trusted (*)

Édipo escutando o enigma da Esfinge (467 a.C.), Museu do Vaticano.

(*) Stravinsky (1927), Oedipus Rex
Quem filáucia sempre resmoneia


O sr Calisto entristeceu-se quando percebeu que tinha sido usado pela doutora Ludovina. A sua ignorância etimológica não lhe permitiu detectar no nome dela essa vertigem para a brincadeira, e confiou-lhe abertamente as suas pulsões, complexos, recalcamentos e outras azias d’ego, como quem deixa uma camisa amarrotada numa engomadaria. Quando ela lhe dizia ao ouvido «és o exemplar de homem que põe qualquer mulher que nem o tambor duma wirthpool» ele sentia-se ligeiramente incomodado, mas jamais suspeitou que, para além do corpo, a cabeça dele também estava ali a render. Acabou por se sentir vingado quando a viu frágil e hesitante em tribunal, defendendo-se da acusação de tráfego ilegal de subconscientes sob hipnose. O advogado dela era um tipo gordinho, bem falante, bem calçado, via-se que gostava de saber o chão que pisava, e via-se também que conhecia desse negócio de roubar consciências, babando constantemente as ausências de ‘prova material’ e os ‘nexos de causalidade’, mas tendo um pudor tremendo a usar a palavra ‘coincidência’, quase com medo que olhassem para ele como um mero canalizador de factos e não um litigador de razões.
O sr Calisto não percebia essa alergia generalizada do mundo moderno ao valor das coincidências; ele, sempre que lhe diziam «só o sr Calisto me consegue descobrir decentemente onde centrifugo melhor», respondia invariável, ingenua e quase poeticamente: só pode ser coincidência, sou apenas um homem que Deus quis que bonito fosse.
Um certo dia, ainda mal refeito da experiência com a dra Ludovina, teve um serviço num gabinete de arquitectura que se tinha especializado em health clubs. Estavam com um problema no enquadramento da zona de lavagem das toalhas, que interferia sistematicamente com a pressão na borbulhagem dos jakuzis. O sr Calisto nunca tinha conhecido uma arquitecta, mas quando viu a arq Flávia sentiu as mãos a tremer-lhe. Debruçados sobre os desenhos, como que cheirando caninamente o papel vegetal, a arquitecta Flávia introduziu-o nos mistérios da perspectiva, enquanto que Calisto («Flávia, deixe o ‘senhor’, por favor») lhe desvendava os segredos inimagináveis do ponto de centrifuga. Naquele novo balneário, as borbulharias seriam um vê se te avias.
as palavras dos outros #n

Punição: processo pelo qual um estímulo ou um acontecimento tornam menos provável a emissão subsequente de um dado comportamento.

Tavris, C. & Wade, C. (2001). Psychology in Perspective. NJ: Prentice Hall.

Clímaxes quaresmais


Os pachecos pereiras da bola dizem agora à boca cheia que os lagartos são um clube de resignados, um clube que perdeu a ambição e que se esconde no infortúnio dos Project finance, das mialgias e do Paratyismo. Paulo Bento será mesmo até o reflexo directo e mais perfeito dessa nossa imagem de derrotados: uns olhinhos húmidos a brilhar numa cara calimerosa, à qual uma lagriminha cairia melhor que num quadro de Murillo.
Enfim, talhados para sofrer, destinados ao sacrifício, à dor, à injustiça e à incompreensão, a lagartada este ano tem decorado a preceito o altar desta imolação, e vem aperfeiçoando a vitimologia a níveis nunca antes experimentados, passeando-se na sua via crucis que nem uns josés de arimateias a tomar conta da banca das queijadinhas à beira do calvário sempre a queixar-se da falta de trocos.
Mas muitos estarão esquecidos de que os lagartos se regem há bastante tempo pela máxima socrateana : «o que nos convence não é a força dos números, é a força da razão». Cientes de que o 5º império se vai construir ali entre telheiras e a churrrasqueira do campo grande, os lagartos são um clube de gentes que se sabem forjadas para libertar a civilização dos espartilhos pagãos da vitória e do sucesso, e que em cada lágrima retida de Bento está uma força praticamente catecumenal, tal como em cada pseudo cabeçada de Purovic estão contidas as sete chagas de Cristo.
Espero sinceramente que contra o Bolton, e depois de João Moutinho ter sido forçado a sair por lhe ter rebentado um furúnculo na virilha, e de Vujevic ter uma afta a debilitar-lhe o calcanhar do pé esquerdo, os ingleses marquem um golo já depois da hora, em puro fora de jogo não detectado pelo árbitro, que entretanto olhava para as barbaras elias nos camarotes.

A Quaresma deve ser pois vivida e sofrida a preceito, e para compensar todos os lagartos desta dolorosa e sinuosa via crucis, que certamente lhes propiciará a devida redenção, só que não se sabe é quando nem como, deixo-lhes aqui um atalho alternativo pela via penelopis, mas que também vai lá dar.




Na campanha da Mango, e naquela pose de valha-me-deus-onde-é-que-ela-tem-a-mão.
uma questão de pH


Juntar um pouco de filáucia e ripipilar bem por cima

Senhor Calisto era o nome do descalcificador de máquinas Indesit referido na reportagem anterior. Começou a fazer psicanálise porque dizia sentir o corpo como um tambor em centrifugação e a doutora Ludovina vendo aí um caso com fortes potencialidades terapêuticas e, eventualmente, literárias, lá convenceu o homem a deslocar-se de Alhandra a S. João da Talha às terças e quintas depois da bucha.

Doutora Ludovina – Então sr Calisto conte-me lá o que se lembra da sua infância.

Sr. Calisto – O facto que mais me marcou foi quando assisti ao meu pai a abusar duma máquina de secar Candy e tudo com a minha mãe a ver enquanto segurava numa varinha mágica da Bosh.

Doutora Ludovina – Humm… e a sra sua mãe lambia a vareta da varinha ou limitava-se a passar por água?

Sr. Calisto – Se bem me recordo, aviou com ela uma coronhada no pescoço do meu pai, aliás foi a partir daí que ele teve de passar a reparar aspiradores porque não lhe exigiam tanto das costas.

Doutora Ludovina – E essa cena de violência é algo que lhe vem muitas vezes à cabeça?

Sr. Calisto – A verdadeira lição que me veio daí é que as mulheres são ciumentas com tudo o que tenha um buraco, nem que seja do tamanho dum tambor de máquina de lavar…

Doutora Ludovina – Então porque é que escolheu essa profissão e não enveredou, por exemplo, por frigoríficos ou esquentadores?

Sr. Calisto – Basicamente eu acho que gosto de mulheres ciumentas, estão para o meu ego como o amaciador de roupa está para o detergente e…

Doutora Ludovina – Agradecia que deixasse as figuras de estilo para o meu pelouro… diga-me então agora… como descreveria a sua relação com o seu corpo.

Sr. Calisto – Muito má sra doutora, sinto-me, como hei-de dizer…sempre a centrifugar mas parece que não se me alivia humidade nenhuma…

Doutora Ludovina - … Nunca pensou em mudar de marca?

Sr. Calisto – Não sei… afeiçoei-me à Indesit e… mesmo tendo colegas que de vez em quando fazem uma perninha com umas Mieles que são de alto rendimento… mas eu não me sentiria bem…

Doutora Ludovina – Diz-me então que nunca pôs a mão no tambor de outra marca….

Sr Calisto – Bem… um dia estava a tratar duns vedantes ali em Sacavém e pediram-me para dar uma mãozinha num transístor da Blaupunkt… e nem me saí mal para uma primeira vez…

Doutora Ludovina – Mas não sentiu vontade de repetir?...

Sr Calisto – Desde que encontrei e tratei do Blaupunkt dessa freguesa que ela não pára de me telefonar…

Doutora Ludovina – Mas incomoda-o ser um técnico muito desejado!? …

Sr. Calisto – Não é a minha pessoa que procuram mas sim a minha técnica, sinto-me mais usado do que a chave-inglesa que me acompanha… acho que estou transformado num canalizador objecto…

Doutora Ludovina - Humm…conte-me então agora os seus sonhos, sr Calisto.

Sr. Calisto – O que mais se repete é aquele em que eu estou a raspar calcário duma máquina velha e com as aparas faço uma escultura da Vénus de Milo mas com uns bracinhos a segurar num aspirador da Hoover, e enerva-me porque é sempre da Hoover, marca com que eu nunca trabalhei e até embirro…

Doutora Ludovina – Tem uma explicação fácil, como Hoover tem dois ‘o’s’ representa o complexo do sr calisto em não conseguir trabalhar com máquinas de lavar com tambores de duas entradas… Ora e mais…

Sr Calisto – Nos últimos tempos tenho começado a sonhar com máquinas de lavar que são bimbys disfarçadas, e que em vez de lavarem a roupa deitam cá para fora bacalhau à gomes de Sá e polvo à bordalesa…

Doutora Ludovina – Humm..e qual é o seu papel nesse sonho?...

Sr. Calisto – É um papel muito ingrato porque me pedem para provar o bacalhau e eu não gosto… mas noutro dia depois de ter posto um fato-macaco a lavar saiu uma vitelinha de jardineira e aí até acordei bem disposto…

Doutora Ludovina – E não sonha com nada que não envolva electrodomésticos de linha branca?

Sr. Calisto – Bem, naquela fase em que me pediam para tratar dos Blaupunkts sonhava muito com antenas parabólicas, mas também coincidiu com a minha mulher ter fugido de casa…

Doutora Ludovina – Ah, mas isso é um facto relevantíssimo!... não me tinha dito que descobriu que a sua mulher era lésbica!? …É que quando fogem com homens o sonho é com carros de bombeiros, com mulheres é que é com antenas parabólicas…

Sr Calisto – Ainda não me recompus… foi com uma enfermeira do Prior Velho, e ainda para mais eu tinha-lhe montado um exaustor vai para dois anos, mas, lá está, não era Indesit, era Samsung, e eu devia ter desconfiado logo…

Doutora Ludovina – Sim, há mulheres que são umas autênticas samsungas, mas sabe… vai ter de superar isso…

Sr Calisto – Olhe enfiei-me na primeira Fagor que me apareceu… e, bem!... quase que ia dando cabo da minha chave-inglesa porque aquilo tinha mais calcário que a escadaria do Bom Jesus.

Doutora Ludovina – Afagorar as mágoas é também um comportamento refúgio muito relatado, sim, e ainda bem que não lhe calhou uma Ariston, que, têm-me contado, são uma despesona em braçadeiras e anilhas.

Sr Calisto – Nem me diga nada, num dia de desespero pus-me a tentar safar uma cliente com uma Ariston que já tinha as borrachas todas ressequidas e acabei a esfregar-lhe a cozinha com viledas.

Doutora Ludovina – Olhe, senhor calisto, agora vai para casa sonhar mais um bocadinho com fornos encastráveis e amanhã passa-me lá pela marquise porque a máquina de secar está-me a enrodilhar a roupa toda e há anos que não encontrava ninguém com tanta vocação para me passar a ferro.
The man in his own bubble #n

Como a reportagem anterior já deixaria antever, hoje debruçar-me-ei sobre o fenómeno da bolha hipnótica.

Trata-se duma ocorrência cíclica em que franjas alargadas da sociedade, como que adormecidas e embaladas, são conduzidas por governantes com caras de armandos varas cruzados a vitalinos canas, que lhes vão fazendo olhinhos - distinguindo-se claramente do outro fenómeno bastante mais conhecido da ‘mão invisível’ porque esta não nos apalpa tanto – sem que as ditas franjas consigam esboçar qualquer tipo de reacção que não seja o famoso ar de basbaque luso, com entrada autónoma já a ser preparada para a tal nova enciclopédia da vida online e turbo.

Esta bolha hipnótica desenvolve-se nos momentos em que a sociedade está mais absorta nas novas tecnologias, apresentando-se por isso a extremidade pós lombar com menor sensibilidade e permitindo assim que sejamos governados como quem nos colonoscopia, mas sem tanto espasmo.

Ao contrário da bolha imobiliária, por exemplo, a hipno bubble tem um ciclo de insuflação lento e, muitas vezes, já balançamos todos lá bem dentro mas ainda julgamos estar numa excursão de balãozinho de ar quente para ver abutres leonardos na serra de Monchique.

Agora normalmente falaria sobre o período de auge da bolha, depois vinha a parte do esvaziamento, já me tinha até lembrado de como encaixar a obrigatória associação artística com a epidural, cheguei até a pensar em incluir uma visita de estudo ao aquário Vasco da gama guiados pelo manuel pinho, mas a grande verdade é que ainda pouco passa das onze e já estou com uma soneira do caraças, devo estar a fazer uma bela cara de tamboril a olhar para uma caldeirada de garoupa, mas só se perdem os posts que caem no chão. Vai-se a ver estou anémico.
quelqun m'a dit



"La disproportion entre les protagonistes est la même que celle qui opposerait un gringalet et le gorille d'un night club, un samedi soir à l'heure de la fermeture…" in La liseuse de rêves - Dan Ferdinande, Octobre 2005, La Nouvelle Revue Moderne n°17, Automne 2006.
Diz-me com quem calhandras dir-te-ei quem és

Ludovina era o nome da psicanalista da reportagem dois posts infra ilustrada, tinha-me esquecido de dizer. Mulher de fino trato, apesar de nome rusticamente traiçoeiro, mostrava-se profissionalmente brincalhona e atrevida, fazendo suscitar nos inconscientes mais calcinados autênticas cascatas de sinceridade, pelo que acabou implicada numa famosa rede de hipnose ilegal. Esta rede tinha sido montada por um grupo de escritores que não tinha verbas para organizar correntes de escrita, e destinava-se a colocar em semi-transe cabeleireiras, taxistas, porteiras e canalizadores, no intuito de obterem enredos originais para os seus romances, sem necessidade de recurso a quaisquer justificações, plágios ou consultas à wikipédia. Foi assim criada uma bolsa hipnótica (não confundir com a bolha hipnótica em que vivemos espremidos pelas grandes forças furunculares do universo) onde os membros desta corrente se podiam abastecer mediante o depósito de uma pequena caução em esperma ou em baba consoante a glândula que tivessem mais activa. A marosca fora descoberta pois um dos livros, baseado no depoimento onírico duma esteticista de Belas, envolvia um pleonasmo com fofos da citada vila que não se encontravam no prazo de validade. Tendo a asae seguido o rasto do enredo, facilmente chegou ao cenário em que o inconsciente da usurpada esteticista fora forçado até à última migalha: o, agora famoso, boudoir de S. João da Talha. Desmontado o esquema da burla que estuprava os recalcamentos mais íntimos das vítimas, foi com naturalidade que acabou por ser encontrado o local onde se enterrava a bolsa hipnótica, que já apresentava um cheirete a édipos, certamente com para mais de dois meses fora do frio. Ludovina, num acto desesperado, negou tudo e ainda chegou a alegar a eventualidade uma escuta ilegal montada por Gasparzinho, revelando assim grande ingratidão para com quem lhe tinha tratado quase graciosamente de todos os almofadados. E este mais perplexo ainda ficou quando, numa das sessões do julgamento, se deu conta que, enquanto caprichava nos chapitonés dum sofá de orelhas em bombazina, Ludovina verificava os níveis de calcário da Indesit com um canalizador das bandas de Alhandra, preparando-lhe a psique para mais uma sessão de hipnose, mas vindo de baixo.
‘No me pongas tan facil’

A capa do Expresso deste sábado dizia que «Sócrates dá tudo por Lurdes» o que, antes de tudo, me parece uma enormíssima desfeita para com Fátima, tanto mais que esta possui um santuário muito mais adaptado ao jogging, arte esta que é, como se sabe, a par do ladrilho sépia e da recuperação da cassete como arma política, o principal legado deste grande socialista da coincineração para as gerações vindouras. No entanto, o que me ressalta com mais clareza da audição – ontem – do debate entre Zapatero e Rajoy, e me enche de orgulho, é que o nosso Sócrates é muito melhor que o deles.
um «boudoir»; ou dois

© Krista Sewell - French Boudoir I

Querido, ripipila-me aqui a filáucia e não resmoneies


Garparzinho queixava-se de que nunca tinha encontrado uma mulher suficientemente vocacionada para os caprichos da carne. Assim tinha decidido tornar-se estofador para poder pelo menos apalpar enchumaços de espuma que lhe exigissem um cuidado e manutenção constante. Geralmente as clientes eram muito minuciosas na escolha do sentido do tecido e no centramento dos florões no espaldar da zona lombar, mas já se mostravam mais negligentes na escolha da rigidez e resiliência do material espumoso. Só que Gaspazinho sabia de vida feita que se fosse persistente e rigoroso neste capítulo haveria de aparecer uma freguesa que lhe desse o devido valor, rentabilizando-se assim finalmente os seus anos de investimento na técnica de afagar poliuretano expandido.
E foi como de costume nas curvas do inesperado que se deu a guinada definitiva na sua carreira. Um bodoir em veludo grenat fazia toda a diferença numa psicanalista com consultório em são joão da talha, que se tinha especializado em vítimas de crimes passionais mal consumados; mas actualmente estava a perder clientes pois o seu divã apresentava uma protuberância na zona do supraspinatus que as levava a exibir complexos de édipo cruzados a vertigens orgásmicas com leite creme. Tirando na pastelaria defronte, que vivia tempos de florescimento, por todo o consultório notava-se algum desconforto. Ao ser descoberta a origem da perturbação foi trazido o nosso Gaspazinho para tratar da parte técnica do assunto. Era uma mola solta, já não tinha reparação, haveria que mudar para a foam solution, - o inglês técnico quando nasce é para todos – aproveitando-se a estrutura em pau santo, do que já não há. Num ápice se voltou a gemer como nunca naquele bodoir, e a psicanalista não ficou indiferente à revolução onde os inconscientes pareciam movidos a vapor. Gasparzinho foi requisitado para tratar de todos os almofadados da senhora doutora e em pouco tempo ela ficou viciada nas suas mãos de oiro que descobriam constantemente helicoidais emergências onde outrora apenas se desenvolviam insípidas rotinas. Gaspazinho já não sabia para onde se virar, os extensor começaram a dar de si e deixou cair as primeiras reclamações de tendinite persistente. Mas uma psicanalista sabe sempre onde encontrar as forças mais escondidas da natureza e foi pronta a exigir--lhe: «e, lembra-te lá melhor, a única coisa que tens que saiba mexer são os dedinhos, é?»; francamente.

Eu já o temia antecipadamente. O mais irritante que existe é uma coisa que era suposto irritar-nos acabar por não nos irritar convenientemente. Mário de Carvalho escreve este livro sabendo desde o início que ele vai ser uma trampice e, por isso, tirando uma ou outra utilização irritantezinha de palavrinhas tolas, não investe nem se desgasta nos artifícios de engracadice que são a sua marca de água. Procurando aplicar os segredos da profundeza da alma russa às relações entre irmão e irmã no madurez da vida, faz apenas um daqueles livros banais sobre «caos de crepitações, a chispar à deriva, num fundo tisnado de falhanços», polvilhado de algum sortido de palavreado fornecido pelos dicionários de sinónimos, do qual se aproveitam o ‘resmonear’ da página 15 ( que irei usar e abusar) e o ‘ripipilar' da página 169 (que já terei mais dificuldades porque tenho uma curvatura de palato muito acentuada, é boa para o assobio mas menos adequada ao ripipilo), se bem que o clássico ‘filáucia’ da página 153 tenho toda a sensação que ainda me vai ser útil - mas, sosseguem, não estou a confundir com outra coisa. O momento ternurento que me chegou a alimentar algumas esperanças aí pela meia noite e meia foi quando, na página 93, MdCarvalho constata que ao personagem Gustavo lhe «desagradava que ela usasse roupa interior desirmanada», suscitando-me inclusivamente que se devia criar a grande ‘Desirmandade das Cuecas’ a fim de recolher e apoiar aqueles que não conseguem dar um flic flac na presença dum soutien que não condiga, mas não podia deixar de aproveitar o saudoso método George e assim detectar uma repetição de ‘encastelar’ na mesma página (pág 27), algum exagero no uso do ‘subjazer’ - mas que não chega a ser um subxagero – e uma nova repetição, dalguma forma mais desgastante, de 'calhandrice', se bem que esta acaba por estar na sentença da página 35 que me parece definitivamente proveitosa para o actual mundo do trabalho precário: «umas vezes era actriz, outras dactilógrada, às vezes montadora, nos múltiplos sentidos do termo, e sempre calhandreira».

Como seria previsível não consegui resistir a comprar imediatamente ‘ a sala magenta’ do mário de carvalho, escritor português da minha oficial irritação. Forçarei uma noitada para o ler, sendo certo que passarei ao amanhecer por ser um dos 12 ou 13 parvos que já terá lido o livro, mas, no meu triste caso, por irracional, mas absolutamente sã, casmurrice; espero que este desperdício de energias, e eventualmente graças, ao poder não ser aceite como sacrifício quaresmal – Deus nosso Senhor sabe distinguir o trigo do joio mesmo fora das parábolas – possa pelo menos pesar na balança da providência, e amanhã faça novamente a bola ressaltar na cabeça de Purovic, já de si possuidor duma técnica de torcicolo de fazer inveja a qualquer trivela. O primeiro parágrafo do livro – o mais longe a que cheguei neste momento, momento este em que me avisam está a dançar a clara pinto correia num programa de televisão – é já garante de muito tombo de cabeça pela noite fora, pois nesse único parágrafo de uma dúzia de linhas, e apenas para descrever uma puta duma mata de sobreiros e pinheiros, usa 17 verbos: 'carregar', 'pasmar', 'pender', 'tombar', 'empastar', 'rarear', 'altear', 'delinear', 'adensar', 'vibrar', 'emergir', 'restolhar', 'balancear', 'resolver', 'frisar', 'desinquietar', 'desvairar', e todos aplicados a uns parcos elementos do reino vegetal e mineral e metafísico naquilo que é certamente a 1ª revolução clorofílica da literatura mundial. Não sei se irei chorar, mas isso até era muito bem feito pois, não sendo o primogénito, a minha mãezinha sempre me disse que foi por mim que chorou mais, tornando-me assim o lacrimogénito. Voltarei para contar; ou para não contar.

Dizem que é um governo subprime

Temos de reconhecer que foi preciso um ministro da agricultura de bigode para introduzir nos sofisticados meandros conceptuais da arte política em Portugal o conceito de ‘calote politico’. Um país que já tinha produzido ‘a tanga’ e ‘o oásis’ vê-se agora municiado de mais uma expressão de riquíssimo conteúdo programático. Portas, roído de inveja por ter ficado com a metonímia a meio e ter entregue de bandeja o artístico floreado ao ministro dos pousios, vai levar o assunto aos tribunais - que, como se sabe, estão aliviados - representado por Garcia Pereira, que nos últimos tempos tem perdido aos pontos, e em toda a linha, para os gatos fedorentos, estando a sua fama revolucionária já ao nível da do pedopsiclista eduardo sá junto das empresas de bronco-dilatadores. Portas deseja assim que lhe sejam conferidos pelo menos dois terços dos direitos de autor referentes à expressão e, inclusivamente, a possa usar sem restrições na suas próximas incursões de boné pelo país real, ou nas idas do Diogo Feio ao barbeiro
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