Neo-Escatologismo


Negacionismos, faltas de memória colectivas, materialismos dialécticos, geno-taras, enfim, a um pouco disto tudo assistiam Deus nosso Senhor e a sua corte de anjos e santos vai para uma carrada de séculos e ultimamente com coloridos cada vez mais arco-íricos. O Altíssimo olhava em seu redor esperando algum comentário mais pertinente por parte das abençoadas hostes, mas apenas descortinava S. Francisco de Assis fazendo festinhas a um gatinho, Sto Inácio de Loyola a fazer palavras cruzadas, e Sta Cecília assobiando o strangers in the night. O arcanjo S. Miguel chegou a desabafar: não me digam que foi para isto que eu andei à porrada com o cabrão do Lucifer, arriscando-me ainda a arranjar uma tendinite nas asas.

Durante séculos o anjo Balduíno tinha visto a sua hipótese teórica da reincarnação posta de lado pelo Criador, - chegando a apresentar mesmo algum ar de enfado na sua Sagrada Face - para já não dizer que era alarvemente gozado pelos outros anjos que diziam «olha olha o beduíno armado em sultão». Mas Balduíno mantivera-se persistentemente num regime de just keep ringing durante uns bons milhares de anos e agora sentia com fresca confiança que tinha chegado uma nova e grande oportunidade de voltar a dar força ao adormecido 'lóbi-da-reincarnação', para o qual já tinha angariado como adepto o anjo Ramirez, uma potestade loira especializada em reconstituição de almas de náufragos da pesca do atum (como se sabe a humidade em excesso faz mal ao espírito), e inclusivamente sacara duas ou três palavras encorajadoras dum tal de Aquino que, afinal, também era incapaz de virar costas a alguma animação teológica e achava a sua Summa já demasiado em conserva.

Balduíno resumia as suas teses da seguinte forma: se as almas em vez de virem logo para aqui ou para a churrascaria do primo Satanás passassem uma ou duas temporadas noutra vida terrena podia ser que se aperfeiçoassem mais e deixassem de dar razão à célebre frase: «com a história aprende-se que os homens não aprendem com a história». Yahvé mostrou-se pela primeira vez sensível ao tema e quis ouvir mais, tendo, no entanto, avisado logo Balduíno e Ramirez que não queria floreados com reincarnações em bicharada, lavagens d'almas, ou outras pirotecnias penitenciais; «há princípios intocáveis!», foi a Sua deixa.

Mas o lobi-da-reincarnação desta vez tinha-se preparado bem. Ramirez sacou logo de início duma arma argumentativa fortíssima dizendo «estamos a despender recursos enormes com o sistema actual do Purgatório», e nem se acanhou perante os sobrolhos franzidos da zona mais conservadora, passando a palavra a Balduíno que rematou com uma sagacidade de felino «o bem é denso e cumulativo, o mal é volátil e esporádico». Deus se estivesse na Capela Sistina ter-se-ia espreguiçado, mas preferiu fazer um ar interessado, chamando-os mais para perto e perguntando-lhes: «Quer faríeis então com os recursos do Purgatório nessa vossa modalidade?».

Balduíno sentiu então aquele fernicoque de espinha próprio dos grandes momentos e mandou avançar Stª Matilde Rebuffel que se destacara em santidade por tratar os cavalos dos regimentos napoleónicos na sua campanha italiana à base duma pomada de guelra de faneca benzida nas margens do Reno, deixando-os prontos para brilhar em qualquer hipódromo com ou sem baronesas. Sta Matilde tinha desenvolvido um sistema de reincarnações em que cada alma ia experimentando situações de vida que lhe carregavam a garupa de experiência e elasticidade, ora do lado dos mais tendencialmente oprimidos, ora do lado dos tendencialmente mais opressores. Mas Matilde começa verdadeiramente a brilhar quando tira do bolso o papelinho onde tinha desenhado todo o esquema revolucionário de gestão de carreiras reincarnadas aplicado a almas em regime de purgatório-free. Os representantes do sindicato dos guardiães do reino de todas as purgas começavam a remexer-se na cova das nuvens.


(pormenor do papelinho de Sta Matilde contendo o esquema básico das reincarnações)

O verdadeiro segredo não estava afinal apenas no mecanismo pendular de reincarnações tipo homem rico-homem pobre, mas sim nos períodos intermédios entre elas, onde cada alma como que passava por um pousio de sabática recuperação, uma unidade celestial ali entre a nave espacial e a célula de neurónio de australopiteco, podendo rever alguns detalhes sobre as melhores técnicas de utilização de livre arbítrio sob condições hormonal e financeiramente adversas. Sendo certo que cada alma desconheceria sempre por completo os contornos da nova encarnação, este sistema permitiria, segundo o lobi-da-reincarnação, uma transição controlada entre os vários degredos terrestres, naquilo que os actuais representantes da espécie dependente de antibióticos designam pós-pós-pós-modernamente por sistema auto-sustentado.

Foi nesta altura que o Anjo Veloso (especializado em síncopes súbitas por intoxicação alimentar) e São Grunevaldo (conhecido por ir às amoras com São Bento), os dois chefes do sindicato do Purgatório, temendo pelo destino da sua corporação ancestral, se chegaram à frente e reclamaram «como podemos estar a dar antena a estes arrivistas lunáticos sem quaisquer provas dadas no exigentíssimo project management d'almas, quando é evidente que isto não é trabalho para maus desenhadores, e viver não é uma psicoterapia». Sta Matilde deu um passo em frente e disse que então ainda tinha algo de importante a dizer. Deus franziu a sua Sereníssima Face.

«O mundo vive enfatuado num progresso com presuntos de barro. A história consome a história, a treva consome a luz, o velho consome o novo. O homem queima oportunidades numa braseira de esquecimento. A invenção do futuro não está a compensar o desgaste do passado. É preciso uma nova via de preparação de almas, a penitência purga mas pode não salvar. Há que saber fazer uma pausa quando não é a meta que define a vitória».

Sururu montado nas fraldas da last frontier das galáctias. Balduíno pensava que tinha marcado pontos, mas o lobi-da-purga tinha muito peso. São Grunevaldo pega na palavra e não é de rodeios: «o homem tem todas as oportunidades inscritas na sua alma, a vida é um único contínuo, one body-one soul, foi assim que tudo foi concebido, foi assim que Job ficou com desgastantes azias, foi assim que David aviou com o Golias, não transformemos a providência num plano tecnológico de novas oportunidades...». «Chega!» - disse Deus, sentindo já demasiada poeira cósmica no ar, não havia uma guerra químico-teológica daquelas desde os tempos em decidira abrir as águas para o Moisés passar.

O reaparecimento do lobi-da-reincarnação significava um abanão nas bases da Criação, mas de facto as Sodomas agora reproduziam-se que nem pombos. O homem tornara-se um bicho entre o obstinado caprichoso e o desinteressado folgazão. A roda da história alimentava-se da inércia da estupidez. Mas o que fazer com homens que passariam a aprender com 'as vidas' em vez de aprenderem com 'a vida'. Balduíno & Ramirez teriam de continuar a esforçar-se, mais ainda não era desta que um tipo passava de marceneiro a banqueiro com intervalo para lanche místico-táctico. E Veloso & Grunevaldo também teriam de dar mais corda aos sapatinhos, o purgatório andava num certo marasmo e já não acicatava as consciências.

Foi então que Deus decidiu dar uma chicotada psicológica no balneário dos anjos ( se resulta nos lagartos resulta em qualquer lado). Chamou os dois líderes das facções em confronto no concurso de bricolage teológico e disse-lhes: «Meninas e meninos, ponham mas é essa cambada de calaceiros em que se tornaram os anjos da guarda a mexer os rabinhos, pois os indicadores aqui do Paraíso estão a ficar piores que os lá de baixo».

E foi assim que começaram a ficar conhecidas as 'beatificações Veloso & Ramirez', nas quais um gajo que só tinha feito merda a vidinha toda era safo à ultima hora só por ter ajudado um saramago qualquer a atravessar a passadeira com o semáforo encarnado.

Rolando Ginja

Rolando Colaço fora um rapaz perfeitamente normal até se ter submetido a um tratamento revolucionário para a recomposição demográfica do seu deficit capilar. Nessa sequência e após vários implantes de duvidosa proveniência foi confrontado com uma moleirinha ao nível duma paisagem lunar após a explosão em busca do milagroso agádoizó. Inconformado, recorreu aos serviços de plástica & estética dum especialista credenciado que, nada lhe prometendo no seu aspecto em geral, lhe garantia farta cabeleira em particular. A intervenção correu sem necessidade de atestados falsos e o efeito obtido levou a que a enfermeira do recobro, Vânia Coentrão, de fogosa fama, exclamasse: «Rolandinho, o menino ficou uma autêntica ginja!». E assim ficou posterizado: Rolando Ginja.

Rolando Ginja no pós operatório

A tara pelos clássicos que o cirurgião plástico Leonardo Vassily alimentava desde os seus tempos de faculdade, levara-o a uma técnica de recuperação de coiros cabeludos denominada de minotaurização, uma combinação entre criatividade hormonal, cogumelos mágicos, transplantes avulsos, e citações de Plutarco. Nalguns casos, como foi o de Rolando Ginja, esmerava-se; iconoclasticamente.

Rolando estava assim pronto a iniciar uma nova vida, procurando fazer render ao máximo a sua nova condição de minotauro-ginja. Desde logo percebeu que uma vida solitária não estava protegida pela lei que inexplicavelmente apenas contemplava uniões entre machos e fêmeas sem qualquer atributo mitológico, num desprezo evidente pelas raízes culturais da nossa civilização. Decorrentemente todas as suas experiências de teor romântico se viram turvadas ao desembocar num beco sem qualquer possibilidade de relevância jurídica, para além de desencadearem um, mais do que justificado, alarme mitológico nas mulheres que, ao olharem para o seu minotauro-ginja pensavam de si para si «uma coisa é fornicá-los outra é pari-los».

Rolando Ginja e Célia Saraiva em Amor Romântico na sua fase turva
Rolando Ginja sentia-se assim desiludido com o rumo que tinham levado a suas experiências românticas, nas quais ele tinha entregue o melhor de si a todos os níveis - desde os corninhos à ginjinha - mas não tinha sido o suficiente para se libertar do labirinto de incompreensão constitucional que lhe estava destinado. O amor não quebrava todas as barreiras, envergonhando-se assim séculos e séculos de poetas e místicos, e abria-se caminho a mais um rol de séculos e séculos de orgulho para dramatófilos e existencialistas carecas.
Restava-lhe enveredar pela etapa seguinte de relacionamentos mais baseados no intercâmbio de fluidos e afago de coiros. Aumentava a despesa em álcool e lingerie, mas diminuía a conta da florista e do trovador. Rolando mostrava-se episodicamente melancólico, mas regra geral fazia jus à sua condição de minotauro-ginja, ora investindo, ora bufando, ora sendo um autêntico tauro-sapiens que apresentava a ternura ainda num estado tão puro como o vodka de Novosibirsk.

Rolando Ginja e Carla Solange em momento de experimentação lúdica
Mas mais uma vez o impedimento legal de formalizar juridicamente uniões sólidas baseadas num processo de destilação comum entre um minotauro-ginja e uma roliça fêmea (nenhuma mulher se sustenta com uma mera bebedeira e uma amizade colorida pelo entardecer na lezíria) levaram Rolando a um processo de depressão e desligamento do mundo do qual saiu apenas a muito custo, e graças à intervenção das freiras de uma ordem especializada em problemas de índole mitológica e desvios de carácter relacionados com a interpretação literal da filosofia clássica.
Foi em pleno processo de recuperação que o nosso Rolando Ginja descobriu a sua verdadeira vocação de partilha sensorial. Afastado da procriação, afastado do amor romântico, afastado do experimentalismo lúdico, descobriu o seu caminho no amor-em-pluralismo. Iria dedicar-se a promover a causa dos amores-grupais entre minotauros, ex-jogadores de rugby franceses e modelos de Botero.

Rolando, François Cabernet, Julia Guiomar e Sandra Bajouli em pleno activismo do lobi ginja
Rolando reencontrou nessa sua causa uma nova razão para viver. Sem barreiras de classe, nem de penugem , nem de apêndices cranianos, nem de largura de cintura, homens, mulheres, seres mitológicos, e convalescentes do serviço nacional de saúde, todos poderiam construir uma vida em comum sem necessitar de adoptar nem gatos, nem cães, nem periquitos, nem quaisquer outros mamíferos transgénicos, tendo como lema: «Temos de ir levando isto por partes e com tempo para coçar os tomates»
Rolando transformou-se assim o mais activo elemento daquilo que ficou conhecido como o 'lobi-ginja', que acolhia portadores de pilas, testas e lombos de todas as maneiras, rigidezes e feitios, e que deu aos minotauros e às mulheres sem verba para a depilação laser uma nova luz de fantasia & esperança.

A República da Expressão

Depois de devidamente sedimentada a gloriosa liberdade de expressão, o Senado dos Teóricos decidiu que tinha chegado o momento de passar à fase seguinte da grande caminhada do progresso: a 'ditadura da expressão'.

Mandou assim reunir o Comité das Boas Práticas e pediu-lhe para definir as linhas bases da nova organização da sociedade. Libertada do obscurantismo da verdade, libertada da iniquidade errática dos factos, importava libertar agora a sociedade da monotonia da notícia e impor engalanadamente o império dos escândalos e da opinião.

Nesta fase mais avançada onde nos conduzira o período intermédio da liberdade de expressão iria então inaugurar-se uma nova república de jornaleiros e opinalistas, e seria finalmente recuperado com pompa o nosso estado natural: todos nascemos públicos. O valor mais importante da nova sociedade estabilizara no triângulo mágico: 'dever de todos se exprimirem', 'dever de todos se escandalizarem', 'dever de todos esquadrinharem'.

O Comité das Boas Práticas definiu que doravante todos veriam substituídos os seus cartões de cidadão por um novo 'cartão de conspiração', onde ficava expresso e definido qual o escândalo oficial a que cada cidadão ficava afecto e qual a posição que nele assumiria; reconheciam-se 5 tipos de cidadão: o bufo, o conspirador, o comentador, o apaziguador e o especialista. Qualquer pessoa que se quisesse eximir a uma destas estirpes de cidadania ficaria obrigado a depositar todos os meses uma colecta mínima designada como 'taxa de ermita'. De cinco em cinco anos dar-se-ia a rotação entre tipos para não permitir vícios e garantir alguma especialização.

Todos os cidadãos teriam uma obrigação que era transversal à gama: durante um mês específico ( podiam escolher o do nascimento ou o do registo da viatura) estavam obrigados a inventar um boato novo por dia e a viver em regime de livre ampliação relativamente a um qualquer dos escândalos oficiais, devidamente escolhidos e distribuidos pela junta de freguesia. Quem não cumprisse estes mínimos veria um abaixamento na categoria de escândalo a que estava afecto. Estaria fortemente punido o tráfico de escândalos entre pessoas, se bem que certos tipos de escândalos eram, oficiosamente, incentivados. A título de simples exemplo, a descoberta dum filho ilegítimo levaria a colecta de irs reduzir-se em 20%, e o assédio de uma catequista a um mancebo garantia isenção total de iva durante um ano.

Não se pense no entanto que tudo serviria para escândalo; nem tudo poderia ser considerado opinião, e muito menos comentário. A Alta Autoridade para o Escândalo faria toda a classificação e correspondente reencaminhamento da mais pequena insinuação ou opinião. Um dos indicadores principais da República era a 'taxa interna de escândalo' que media o nível de expressão dos cidadãos; apenas eram aceitáveis níveis mínimos de 2 escândalos nacionais por cada 1000 pessoas e 12 escândalos regionais por cada mil munícipes. Sempre que esses níveis de expressão eram perigosamente diminuídos, a Alta Autoridade para o Escândalo emitia uma instrução para o investimento público em escândalos, passando o próprio Estado a ter de abastecer os media de escândalos enquanto a iniciativa privada não sentisse um ambiente propício para escandalizar; uma espécie de keynescandalismo.

A globalização e a livre circulação de escândalos e opiniões seriam vistas com outro peso e medida, com outra precaução, e voltar-se-ia a um ambiente mais proteccionista: os escândalos internos beneficiaram de apoios vários, e a importação de escândalos do exterior teria de ser analisada criteriosamente pela Alta Autoridade, não fora as mamas duma baronesa prussiana retirar protagonismo à queca dum estivador no terminal de contentores .

O Senado dos Teóricos aceitou com agrado o modelo proposto e foi instaurada oficialmente a Ditadura da Expressão, com editorais simultâneos em todos os jornais diários celebrando um novo escândalo com uma lipoaspiração no deficit publico, devidamente comentada pelo cabaz oficial de cronistas, e com participações especiais de vários cidadãos-bufos que tinham contribuído com insinuações válidas. A liberdade de expressão fora devidamente revista, sublimada, e o novo regime colocá-la-ia agora no altar que lhe estava destinado: a Padroeira da Escandaleira.
Barbara Kruger

operação face visível

Como constatamos e consequentemente, nos melhores dias, sabemos, a igualdade não é uma condição da natureza. É uma construção ora social, ora politica, ora cultural, ora religiosa. Todos iguais perante a lei, a sociedade ou mesmo perante Deus é um edifício ou uma prática conceptual que nos é imposta. Cada pessoa antes de se sentir igual sente-se diferente.

História Abreviada da Psicologia Portátil (*)

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[1] Com o estatuto da consciência e do inconsciente já devidamente consolidados no campeonato da explicação da mente, importa sacar um terceiro parceiro para a guerrilha; chamar-lhe-ei : a 'franja'.

[2] Todos conseguimos perfeitamente identificar acções, pensamentos e até sentimentos que são rotuladamente da responsabilidade do que chamamos simplificadamente 'consciência'. Todos também conseguimos isolar uma ou outra acção, pensamento ou sentimento aos quais acometemos a responsabilidade a algo que está numa zona que chamamos, desde freud, de inconsciente, mesmo que não tenhamos uma ideia muita precisa de como e quando lá foi parar essa incumbência, ('recalcamento' costuma ser uma boa opção de catálogo) nem do que lhe garante comida e roupa lavada . Ora não haverá nenhum descendente de adão que, depois de superados os problemas básicos de sobrevivência e sem dores nas cruzes, não se ponha a pensar na razão de determinada atitude, ou de determinada coisa-que-lhe-passou-pela-cabeça e não desabafe mais ou menos explicitamente: mas donde é que me veio esta merda. Ou seja, não lhe reconhece a origem nem no seu amado, querido e imaculado 'eu-consciente', nem sequer no seu absolutamente misterioso e singular 'eu-inconsciente'; (ao contrário do que desejam os psicanalistas, qualquer gajo com um ou outro amigo minimamente decente e disponível acabará por conseguir conhecer praticamente todos os cantos desta sua zona afamadamente obscura).

[3] Chegou então a hora da 'franja'. Em primeiro lugar não é uma zona especialmente esquisita, nem sequer demasiado ciosa do seu papel, tem um compromisso funcionário com o universo-do-eu, poderá dizer-se que é uma espécie de carlos carvalhal da psique humana, uma zona que está disposta a tudo, inclusive a ficar com algo que as outras zonas de mais pergaminhos enjeitaram, seja por falta de espaço seja mesmo por objectivo desinteresse. No entanto, pode dizer-se que a 'franja' está particularmente habilitada a dar guarida a alguns mecanismos mentais peculiares, como sejam: conflitos morais, remorsos, ciúmes, invejas, vergonhas, inseguranças, e até eu's-projectados & afins; pode dizer-se que é uma especialista do homem-micro-social, daquilo que determina as nossas reacções nos momentos limites da relação humana bi-direccional sob tensão intermitente - nem o mário crespo se lembrava disto. Como podemos antever é uma zona muito permeável ao mood social, à formação religiosa, às cicatrizes das primeiras experiencias pós adolescência, aos sobressaltos na formação da auto-imagem, and so on, enfim àquilo que a vida tem de mais tangível para a psique e que não é nem imediatamente exigido ao balcão da consciência, nem imediatamente coberto e resgatado para ser apresentado à noitinha na gruta do inconsciente. É, sem dúvida, um reino psicológico onde a ambiguidade negoceia permanentemente com a razoabilidade. Onde a consciência não entra por medo e o inconsciente evita por táctica.

4. Vemos assim que a 'franja' é um albergue da psique que está eminentemente presente na nossa luta diária para conseguir gostar decentemente de alguém, e para conseguir que alguém goste decentemente de nós, para conseguir que a necessidade coincida o mais possível com a probabilidade. Todos os sentimentos-de-relação reclamam adereços que têm constantemente de ser aqui descobertos, combinados, costurados e embalados. O ser meramente consciente é incapaz de gostar de alguém, pois gostar exige um tempero de muita coisa que já teve forçosamente de marinar na 'franja'; ou chafurdar; no limite, afinal, a consciência é apenas uma mecânica mais ou menos sofisticada, uma contabilidade de curto prazo. Apenas a passagem pela 'franja' garante o acesso de qualquer sentimento (leia-se: forma mais elaborada de emoção) ao mundo da intangibilidade e, podemos mesmo afirmar, da glória.

5. Como cuidar então da 'franja', devemos mesmo perguntar-nos. Como saber se 'algo' está lá bem, ou se tem de passar uma temporada de limpeza no inconsciente, ou passar uma prova de fogo no jogo da consciência, ali ao frio e ao vento? Como avaliar o estado de maturidade dum ciúme, por exemplo? Estará no momento de confrontá-lo, ou será melhor abafá-lo. A 'franja' fornece-nos a verdadeira terceira via da psique: é o local onde - por exemplo - o ciúme pode ir vendo o que se passa lá fora, mas sem se comprometer, sem dar mau aspecto, e o 'eu-consciente', se precisar de contactá-lo, não precisará de fazer nenhum malabarismo, não dará o flanco . Na história da mente humana a 'franja' apareceu precisamente naquele dia em que a consciência precisou de se defender sem se esconder. É uma trincheira para sentimentos com sala-de-estar e kitchenete, mas também com abertura para artilharia fina. E decorada sempre à vontade da freguês, algo que nenhum dos outros apartamentos da psique se podem gabar.

6. A 'franja' anda sempre connosco de forma cúmplice. Enquanto isso, e ao invés, a consciência é, normalmente, obrigada a isso, e ao inconsciente arrastamo-lo porque temos medo de ficar sem passado, medo de ficar sem medos. Mas 'a franja' não nos acompanha como uma sombra (nem sequer como no modelo Junguiano), não é uma almofada de compensações, nem sequer é um - muito na moda - elemento integrador do 'si-mesmo'. A 'franja' é uma máquina de revelação. Um confessionário de poche.

7. O processo psíquico de intervenção da 'franja' desenvolve-se desta forma: pega num complexo já conhecido (não trabalha com material em bruto), de seguida dá-lhe, de início, umas palmadinhas nas costas, para logo depois lhe prestar uma pitada de susto (espécie de amassamento, absolutamente essencial), e de seguida colocá-lo entre a parede do ridículo e a espada do desconforto (nenhum sentimento se deve sentir folgado), finalmente propõe-lhe um desafio chantageante (a psique é um terreno lavrado pela chantagem) : ou vais à luta, ou vais para a solitária. É nessa fase que a consciência interfere tentando dar um ar da sua graça, é dela sempre a última palavra para dar brilho ao inquilino da 'franja': fornece-lhe o drama. O drama está para o conteúdo da 'franja' como a fala está para o conteúdo do inconsciente. Este, o inconsciente, bastas vezes nem sequer é convidado para a dança. Quem puxa então os cordelinhos de toda esta articulação? Confesso, não se sabe. Como podemos descortinar se estamos a perder o controlo à situação? Um método muito simples: nunca chegar ao ponto em que a consciência se canse em demasia e descarregue todo o material psíquico para cima da 'franja'. Por analogia diríamos, sem colcha não pode haver franja.

8. O principal conteúdo da 'franja' são as várias formas de seguranças e inseguranças. Venham elas do condicionamento social, ou do condicionamento moral, ou do condicionamento cultural, ou do condicionamento genético, ou venham elas mesmo do condicionamento astrológico. Por isso pode dizer-se que a 'franja' é uma recondicionadora, um patamar com espelho e biombo, adaptado tanto a uma consciência que frequentemente se cansa de ser consciência, como a um inconsciente que nunca sabe se está bem aperaltado para sair. Outra das funções mais importantes da 'franja' é permitir que a psique se apetreche deste conhecimento revolucionário: a segurança é composta por um puzzle pequenas inseguranças. Apesar de parecer um enunciado quase a meio caminho entre o prosaico e o gosto duvidoso, é determinante para entender a correlação vectorial que conduz aos mecanismos da segurança: um bom sistema de inseguranças é aquele que permite que as suas forças se anulem entre si; por exemplo, quem está inseguro sobre a amizade de alguém, não deve procurar estar também inseguro sobre o prazer que lhe proporciona, mas deve estar inseguro sobre a qualidade da sua pele, pois, como se sabe, uma boa técnica de coçar é algo tremendamente irresistível. E não fosse eu já estar farto disto, haveriam de ver.

9. Franja que se preze é aquela que um dia abre os olhinhos à consciência e lhe diz: estás fodida comigo se deixas o gajo escrever mais de 3 linhas por junto. Parece que tem vaselina nas putas das falangetas.



(*) corrupção livre do título do livro (que nunca li) de Enrique Vila-matas, 'história abreviada da literatura portátil'

Chuva em Novembro

Quando os conterrâneos da Maité Proença traduziram por 'ordem implicada' a Implicate Order que o físico David Bohm trouxera para a praça pública no início dos anos 80, Deus nosso Senhor, levemente abespinhado, decidiu finalmente pôr o planeta sob escuta; mandou uma dupla de anjos montar um tenda na parte de trás do Hubble para ninguém topar e vai de instalar antenas multidireccionais viradas para todas as aulas de física do universo, churrascarias de carne incluídas. Quando Deus nosso Senhor decidiu que a suportar esta merda subatómica toda iria estar uma mistura de tudo e de nada nunca pensou nas traduções brasileiras, e isso estava agora a mostrar-se uma certa imprudência face à capacidade da língua portuguesa tropicalizada em libertar toda a teoria quântica e em transformar o vazio desconhecido numa espécie de cúmplice da grande barrela universal em expansão, descobrindo assim a careca conspirativa do Criador.

É hoje absolutamente certo que Deus não tinha especial pachorra para cálculos e mandou dois anjos que tinham ganho um concurso de ideias, e que possuíam experiência em roleta, desenvolverem uma espécie de gelatina transparente e pegajosa onde toda a energia iria desovar em forma de partículas que baloiçam qual pedacinhos de fruta cristalizada. Umas acabam por se chatear e vão passar umas temporadas no bolo rei, enquanto outras se afeiçoam ao mundo do vácuo gelatinoso e passam o tempo na palheta umas com as outras dizendo mal dos iogurtes com pedaços e fazendo olhinhos para formulas matemáticas com aspecto de bordado de lingerie.

A primeira grande dúvida que se colocou ao Altíssimo foi se haveria de compor uma banda sonora para acompanhar os saltos de vácuo gelatinoso, mas depois de ter antecipado o som dos discos dos animal colective decidiu que a música só deveria aparecer uns milénios mais tarde, quando o chimpanzé já tivesse resolvido os problemas relacionados com o polegar oponível. Assim, o realmente primeiro problema físico da criação foi efectivamente quando Deus teve de fazer com que um electrão aos saltos de trampolim pela angélica e invisível gelatina não produzisse o mais piqueno ruído, sabendo-se de antemão a dificuldade pois por detrás dum grande electrão está sempre uma grande protona; a zumbir-lhe.

Um mundo de fundo gelatinoso e silencioso a fazer de cama elástica a umas merdas cristalizadas aos pulos, e sem prestar contas se não a um casal de anjos mafiosos, foi então como isto se processou na sua base, e assim se manteve desconhecido até gajos como o Nils Bohr terem desencantado o bailado quântico à pala dumas lentes embaciadas num microscópio, e imbuídos duma poeira cósmica chamada curiosidade científica, uma espécie de sarna mas que faz menos comichão. Por causa das tosses, neste momento muitos deles amassam pão de centeio num purgatório gerido pelo pingo doce.

Quando Deus começou a topar que estava quase a ser descoberta a tramóia chamou os dois anjos, de seus nomes Soromenho e Polidoro, e disse-lhes: quero isto abafado. «Lancem a confusão, façam crer por uns tempos que eu não existo e que a gelatina é apenas uma espécie de fruta cristalizada mais líquida, e se for preciso tratem de ter uns jornalistas por conta, preciso de sossego para voltar a repensar esta coisa, vou voltar a estar atento àquela cegada da economia, julgo terem avançado mais nas teorias do caos do que propriamente os físicos».

Soromenho e Polidoro, os dois anjos responsáveis pela gelatina quântica, que viviam em união mística sem registo civil, e até tinham conseguido autorização de Deus para adoptar uma ninhada inteira do cometa Halley, arregaçaram as asas e puseram-se ao caminho, tendo-lhes sido especialmente recomendado para não se esquecerem que Deus para além de ser o electricista-chefe também é amor, a forma suprema de energia, já se sabe. Depois de recolhidas as escutas obtidas na ré do Hubble, Soro & Poli diagnosticaram que no planeta terra se vivia um caso típico de 'esclerose da causalidade', ou seja, obcecados com uma 'história repleta de pelourinhos e guilhotinas' (ouvi esta frase ontem na televisão e gostei tanto que não resisti), os homens escondem-se numa mistura pendular de indiferença e de escândalo. De irascibilidade e quessefodismo. Deus teria de agir rápido.

Encontraram Deus embrenhado em fórmulas de matemática duvidosa, mantinha-se a sua mania de tudo fazer para que d'alguma forma pudesse ser percebido, testado, gostava de milagres mas acabavam por lhe dar uma alguma azia - coisa que mesmo que quisesse explicar ninguém acreditava. Estava ligeiramente arrependido por não ter posto música no salto de trampolim dos electrões na gelatina invisível, pois a música tinha-se revelado um óptimo ambientador, e inclusive poderia ter tranquilizado as mentes mais desconfiadas ou espevitado os mais crédulos, mas fazê-lo agora daria um certo aspecto ilusionista à coisa e havia pergaminhos metafísicos a defender. Se bem que Deus, como o retiveram os grandes homens de Estado, nunca receara o ridículo.

Mostrar mais, tapar mais, mistério, revelação, era afinal esse o dilema que Soromenho & Polidoro tinham colocado em cima da mesa de Deus. Uma dúvida apenas para deuses ou coristas, registe-se.

Fora descoberta a possibilidade duma 'ordem implicada' na grande tramóia da Criação. Não era implícita era implicada. Uma gelatina cúmplice com o Criador, onde estava gravada a verdadeira atracção universal, por onde tinham de passar periodicamente os constituintes básicos do ser para ora se refrescarem, ora receberem indicações de viagem, ora se abastecerem de energia. Era uma estação de serviço com loja de conveniência. No núcleo do átomo vivia-se, pois, um mais que corriqueiro ambiente de amanuência sob o aspecto duma sofisticada réplica de cosmologia em formato liliputiano. Estava encontrada a chave: continuar alimentar a grande aventura da ciência com novas qualidades de gelatina quântica, novos sabores, novos aromas, novas texturas. Soromenho e Polidoro tinham uma nova missão depois da distracção evolucionista de que os biólogos progenetas se tinham tentado aproveitar para construir os seus planos de reforma.

O mundo emprenhado pela consciência e apalpado pela inconsciência sabia agora que a desconfiança não chegava para o conhecimento, que o conhecimento não chegava para o bem estar , que o bem estar não chegava para a felicidade e que a felicidade era afinal uma mera construção do excesso de confiança. A pegajosidade quântica da gelatina garantiria sempre a eficácia do eterno retorno. Soromenho e Polidoro desmontaram então o aparato da ilharga do Hubble e compraram acções da Prisa. Ao sétimo dia Deus em vez de ter descansado deveria ter acendido a televisão antes de tirar as suas conclusões mais definitivas.

Ficaram apenas por explicar os pormenores da escolha de Soromenho e Polidoro para toda esta dinâmica da criação do, soit disant, mundo físico. Deus vivia momentos de fastio, tinha havido a rebelião de Lucifer e assim, mas a coisa amainara. Lembrou-se então de lançar um concurso de ideias à sua corte de anjos para poder escolher o melhor substrato para a Criação. A ideia da base quântica de gelatina da dupla Soro & Poli sobressaiu sobre a de Gabriel (que ainda assim recebeu uma menção honrosa pela sua ideia da onda cósmica, e por isso foi premiado uns milénios depois com a Anunciação) e também sobre a do anjo Inácio que tinha sugerido uma complicada combinação de gases (mas que mesmo assim ainda teve o seu momento de glória no Big Bang, que acabou por ficar conhecido na gíria angélica como a cólica-do-inácio). Deus tinha ficado seduzido pela combinação entre movimento e invisibilidade que a solução de Soromenho e Polidoro consubstanciava e deu-lhes carta verde, tendo entrado pessoalmente no processo apenas quando os gases produzidos pela cólica-de-inácio já se mostrassem minimamente respiráveis. O Natal ficou então aprazado para Dezembro.

Vai ser bom nascer em Mortágua

Cortesia de mptv
(leia-se 'gamado de')

1. o estado deve interferir em quem as pessoas gostam?

não

2. o estado deve interferir em quem as pessoas beijam?

não


3. o estado deve interferir em com quem as pessoas se relacionam sexualmente?

não ( dentro dos limites das leis que regulamentam a integridade fisica e psicológica)


4. o estado deve interferir em como as pessoas se relacionam sexualmente?

não

5. estado deve interferir em como as pessoas se organizam socialmente?

sim

6. o estado deve dar indicações legais positivas sobre certas formas de associação e organização básica entre pessoas?

sim

7. o estado deve dar indicações legais positivas sobre formas de associação que privilegiem a autosustentação da espécie?

sim

8. o estado deve inibir alguma forma de associação?

não (excepto as criminosas)

9. o estado ao não estabelecer medidas de apoio expresso a algum tipo especifico de associação entre pessoas, pode considerar-se que esteja a criar uma inibição a esse tipo específico de associação?

não

10. o estado pode exercer a sua razão de existir sem ter subjacentes juízos de índole ética ou mesmo moral?

não

11. o estado ao estar a dar indicações positivas sobre alguma forma de associação está a ter subjacente algum juízo ético, ou mesmo moral ?

sim

12. o estado deve fazer prevalecer o principio da sustentação da espécie acima do princípio da igualdade de direitos de associação ?

sim

13. o estado ao estar a dar indicações positivas sobre uma forma de associação entre pessoas que tenha subjacente uma forte possibilidade de concurso para a sustentação da espécie está a prestar vassalagem a alguma corrente ideológica ou religiosa específica e limitada?

não

14. o estado ao estar a dar indicações positivas sobre uma forma de associação entre pessoas que concorra para a sustentação da espécie está a adquirir responsabilidades específicas na concretização desse desiderato?

não e sim


15. a responsabilidade de sustentação da espécie é apenas de índole individual?

não

16. a responsabilidade de sustentação da espécie é apenas de índole social?

não

17. a existência e funcionamento dum estado pressupõe a existência dum modelo de sociedade?

sim

18. a existência dum modelo de sociedade é compatível com a liberdade que a maioria dos seres humanos considera (mesmo que por razões diversas) fazer parte essencial da sua constituição ontológica de base?

sim

19. há risco de que a existência - mesmo que não explicita nem formal - de um 'modelo de sociedade' possa conduzir a politicas de cariz utopizante ( e/ou entupizante) de 'sociedade modelo'?

sim

20. o estado ao igualizar as indicações legais positivas para todas as formas de associação e organização social básica entre pessoas estará também a colocar-se ao serviço duma perversa utopia instrumental de 'sociedade modelo'?

sim


21. deve, então, o estado dar privilégio jurídico à associação básica entre pessoas de sexos diferentes apenas por esta conter, ainda que seja apenas de forma bio-vagamente implícita, a eventual possibilidade de ajudar a concorrer para a sustentação da espécie?

sim.

22. deve, então, o estado conceder o acesso ao 'casamento civil' a pessoas do mesmo sexo?

não.

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«É uma coisa estranha, a escrita»

Tristes Trópicos