‘A vida não é argumento’ [4/9]

Quando tive a ideia de falsificar um texto de Freud sobre a importância das dores nas costas na formação da personalidade obsessiva, tomei, por precaução, a decisão de colocá-la numa fase em que o autor ainda embrionava nas suas teses sobre o inconsciente e a pulsão, e onde o recalcamento era ainda confundido com a azia. No entusiasmo da escrita corri alguns riscos, era difícil simular com credibilidade o nível de ansiedade intelectual que Freud deveria manifestar, mas tinha-me treinado meses antes com um pequeno negócio que efectuara com duas cartas de Lou Salomé a uma costureira de Wiesbaden. Foi-me fácil encontrar papel e máquinas de escrever da época junto de alguns vendedores de velharias em Viena e assim em dois meses tinha a obra pronta. Sabia que tinha uma relíquia nas mãos, algo que o próprio Freud gostaria de ter escrito, algo que ele próprio me compraria se estivesse vivo. Quase que nem me senti um falsificador o que me deu uma certa frustração. A minha vítima cliente foi um comerciante alemão de livros e documentos raros, especializado em literatura científica, e que ficou conhecido por ter rejeitado um livro de orações de Darwin confundindo-o com um livro de canções dos The Who. Bastante condicionado pela necessidade de recolocar o seu prestígio no pedestal que julgava merecer, o meu produto proporcionar-lhe-ia essa redenção e com fogo de artifício. Desta vez o meu tio avô fez de ex-fornecedor de cocaína ao mestre austríaco, e tudo foi relatado numa voz semi-sussurrada para que a minha família nem sequer pudesse suspeitar da minha afronta, motivada pelo custo das obras de restauro duma propriedade centenária na Alsácia. A Alsácia é – pela sua bilinguidade - das melhores regiões para disfarces desta índole. Nesta altura da minha carreira já recebia os pagamentos numa conta dum banco suíço e dava-me ao luxo duma certa monogamia. Um falsificador credenciado precisa dalguma estabilidade emocional para se distinguir dum batoteiro. Profissão também bastante digna e exigente, registe-se. Mas mais monótona e exigente para as costas.

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