Teologia da desilusão


Deus é quem menos cumpre as nossas expectativas. Tal como quem amamos acaba por ser quem mais nos falha, Deus está frequentemente a jeito para que lhe apontemos o dedo - mais ou menos piedoso - da desilusão. Em geral exigimos-lhe que seja mestre no campeonato das grandes contradições: esteja perto sem nos chatear, seja previsível mas surpreendendo-nos, esteja longe mas fazendo companhia, nos dê o possível na medida do impossível e nos dê o impossível na medida do possível, em suma, também já estará habituado a que ter de ser só nosso mesmo sendo de todos. Quem já se sentiu abandonado por quem ama (e quem nunca sentiu isso não sabe o que perde) entenderá facilmente que não há maior desilusão que uma ausência incompreensível. A religião permite apenas uma ligação imperfeita, o Deus que nos foi concedido não passa da clássica sombra projectada no fundo da Caverna, e a sua graça pouco mais efeito dá que uma terminação de lotaria. Sendo que a espiritualidade é uma técnica de gestão da desilusão, tal como uma palavra não passa de um beijo que não foi possível, (nenhuma declaração por mais solene que se apresente substitui um carinho por mais fugaz que seja), Deus só é compatível com uma profunda tristeza de nunca sabermos por que age Ele assim, por que faz Ele assado ou cozido. As chamadas virtudes teologais são de certa maneira panaceias de quem sabe que não terá talentos para viver mano-a-mano com um Deus que está sempre Além mas que é sentido como estando sempre Aquém. Como alguém que está sempre com medo que o seu coração falhe por não aguentar um amor que não é correspondido, a maior força de um crente é saber desiludir-se com uma resistência de maratonista, que sonha ter depois de cada curva um posto de abastecimento , ou um aceno com sorriso. É mesmo aconselhável que Deus seja pai e seja Perfeito, pois para nos aproximarmos de Deus temos de saber viver desiludidos com Ele.

Teologia da Abstracção


Por regra, no excêntrico universo da análise moral, consideramo-nos pecadores em abstracto mas boas pessoas em concreto. Com facilidade assumimos uma contrição quase estética sobre uma tendência genérica para a imperfeição (não confundir com a maldade) mas confrontados com um contacto objectivo com ela somos facilmente levados a descartá-la, ou a camuflá-la sob capas do psicoloden, quando não a veementemente negá-la. A experiência da culpa definida e circunscrita é muito mais penosa que a falha assumida como uma tendência imanente de malandragem, ora literária, ou mesmo cómica. Por outro lado todos temos pecados de currículo, pecados que nos ficam bem, como adereços de moda ou relações de conveniência. Ou seja, a imoralidade-como-composição é uma das boas invenções do espírito humano no intuito de se proteger desse peso esmagador que é a existência duma lei moral omnipresente. Assim, a batalha essencial da alma malabarista é conseguir transferir do concreto para o abstracto a sua ligação à imperfeição, à culpa, ao pecado. A experiência amorosa costuma ser boa e didáctica companheira neste processo pois nela geralmente encontramos bons exemplos de grandes amores abstractos que se transformam sem grande esforço em indiferenças, quando não mesmo negligências , objectivas e concretas quando o suposto-amado está ali disponível para ser pau para toda a colher. O fenómeno da diluição da experiência por força da capacidade de criação do eu-de-referência permitirá ao homem apresentar-se perante o Criador com uma limpeza que seria imprevisível face aquilo que hoje se chama de vidas complicadas. No entanto, o contacto com o eu-de-experiência também não será totalmente descabido uma vez por outra, até como molho agridoce duma existência que tudo tem para ser enfadonha, mas a grande aventura humana é mesmo elevarmo-nos a seres de ficção, avatizáveis, imunes a essa contaminação de catecismo a que se chama a culpa concreta. Filhos da grande Mãe Inocência e apenas amamentados por uma Eva de Percalço, estamos talhados para ser santos, o pecador é um tipo que se distraiu com os detalhes.

Liga da Solidariedade

Resultados da 1ª jornada

Sport Lisboa e Bem-fazer - 1  / Companhia Portuguesa da Caridade  - 0

Depois de uma primeira parte muito equilibrada, o S.L.B. soube aproveitar muito bem uma falha da C.P.C. numa distribuição de fanecas fritas com arroz de tomate demasiado apurado e depois segurou a vantagem até ao fim, tendo até desperdiçado uma ocasião soberana de aumentar a vantagem com uma entrega de leite magro no banco alimentar de Elvas mas que acabou por ser substituída à ultima hora por duas toneladas de lingueirão de conserva que não foram aceites por pacheco pereira devido à sua origem religiosa das reservas da quermesse de páscoa da paróquia de benavente.


Desportivo das Sopas - 2 / Cobertores Sport Club - 2


Foi um jogo bastante bem disputado com incerteza constante no resultado. Se o C.S.C. com a sua primeira distribuição de edredons com enchimento de poliester conseguiu adiantar-se no marcador, rapidamente o D.dS. não enjeitou a possibilidade de empatar com uma deliciosa sopa juliana distribuída em tigelas com a imagem de kate middleton em top less no fundo. No arranque da segunda parte, quando parecia até que o DdS. se iria impor sem dificuldades com o seu famoso Creme de Cáritas, o C.S.C surpreende com uma fantástica remessa de cobertores num padrão igual à gravata de lobo xavier. No entanto, já ao cair do pano, uma rodada de caldo verde nas avenidas novas repõe justiça no resultado, já não dando tempo para nenhuma reacção de pacheco pereira que esbracejava junto ao Saldanha apontando para um crucifixo no pescoço do massagista da D.dS . Ainda saltaram do banco umas trouxas com mantas em imitação da burberis mas pouco mais fizeram que justificar o duche, ou melhor, a centrifugação a baixa temperatura.


Racing do Cesto Cheio - 5 / Lokomotiv de Enlatados - 0


Uma verdadeira demonstração de classe por parte do R.dC.C. Desde cedo se percebeu que não iriam facilitar e depois duma primeira cabazada de pêssegos em calda seguida de um fornecimento de shortcake, deixaram o L.dE. praticamente sem reacção palpável. Ainda esboçaram uma situação de perigo quando Pacheco Pereira apareceu com uma palete de sardinha com a inscrição 'este óleo vegetal não serve para utilização em unguentos sacramentais' mas foi sol de pouca dura face ao rolo compressor do R.dC.C. que não desperdiçou nenhuma oportunidade. Mais perdulários se mostrariam na parte final do encontro, quando perdoaram a meia dúzia, num falhanço incrível à boca dum lar de reformados do parlamento em que antónio costa acenava desesperadamente trajando à sans culottes.

Dívida Metódica


Subsídios para uma reestruturação
Primeiro pega-se numa dívida e analisa-se o credor; antes de nos pormos a verificar para que teríamos precisado nós do dinheiro, haverá que escalpelizar porque teria precisado o credor de nos emprestar.
Em segundo lugar haverá que dividir a dívida em várias parcelas: nunca o dinheiro serve para apenas uma coisa, a dívida é como a dor de rins: 1/3 é má postura, 1/3 é deficiente movimento de fluidos e 1/3 é a presença de cálculos agressivos. Por isso, quando nos pedem que paguemos algo, comecemos primeiro por alterar apenas a postura. É péssimo fazer reembolsos de cócoras.
Terceiramente (é o adverbio de modo de estar em terceiro) devemos considerar que antes de chegarmos ao milhão temos de passar pela dezena, depois pela centena, de seguida para o milhar e por aí adiante, e apenas se der tempo analisaremos os seguintes, pois ninguém percebe decentemente o valor de um milhão se não tiver derretido antes uma boa centena de milhar. Ou seja, antes de pagar uma centena que seja devemos pagar primeiro uma ou duas dezenas para ver a reacção. Credor que não saiba valorizar o pouco não é digno de receber o muito.
Por quarto e último, como fez o nosso descartes, a dívida deve ser revista. Uma dívida com o tempo vai-se alterando e quando chega à sua maturidade pode perfeitamente já não estar em perfeitas condições e o credor terá obrigação de nos dar uma nova. Ou seja, a renovação da dívida é uma obrigação do credor, tal como é o senhorio que tem de garantir que a casa está em boas condições de uso para o inquilino.

Porta 9B


Encontraram-se num restaurante que ocupava o espaço ao lado da galeria. Era um restaurante popular, com uma clientela fixa e onde nem Arménio nem Áurea, curiosamente, alguma vez tivessem entrado. Não seria o local mais aconselhado para uma conversa de reatamento, ou balanço, ou até de reconciliação, mas foi o que ela escolheu, e mais uma vez ele, inexplicavelmente, se mostrou incapaz de a contrariar. O prato do dia era cozido, um grupo de padres e seminaristas ria-se numa mesa próxima, como que querendo demonstrar que sob determinadas condições afinal a carne vale, por mais fraca que possa ser. Seria a carne algo que os unia ou os separava, pensou Arménio enquanto observava o excesso de formalismo de Áurea. Ainda ele  não se tinha refeito de uma certa estranheza em relação ao seu comportamento, quando ela o convidou a sair e a darem uma volta pela rua. Passaram por uma loja de sofás e entraram, ela queria renovar a decoração do seu escritório e pretendia comprar uns sofás para o seu gabinete - para alguns clientes especiais se sentirem mais à vontade, estás a ver? Ele estava a ver tudo. Lembrou-se do dia em que a vira pela primeira vez, lembrou-se do primeiro dia em que ela lhe embrulhara o primeiro não, lembrou-se do primeiro beijo que lhe deu a medo, lembrou-se dos repetidos calculismos dela, lembrou-se das aguarelas que ela lhe devolveu, lembrou-se das certezas que tinham trocado, lembrou-se daqueles momentos longínquos em que todas as dúvidas pareciam estar dissipadas. Ela subiu para o escritório e ele continuou a descer a rua, passando para o lado dos números pares. Poderia ser que ela ainda lhe viesse acenar à janela. Não veio.
Ela telefonou-lhe passado uma semana, disse-lhe que naquele dia quisera perceber se estava preparada para o receber outra vez no escritório, de voltar a trabalhar com o portfólio dele, e tinha ficado contente por concluir que ainda sentia o mesmo por ele. Achara-o distante, mas queria saber se ele estaria disposto a pintar uma nova série de aguarelas a ilustrar uns poemas que ela escolheria. Pintar só para ela - como nos velhos tempos. Fazê-la rir - como nos velhos tempos. Ele nem sabe bem o que respondeu. No dia seguinte Arménio dirigiu-se ao restaurante do 9B. O prato do dia era cozido outra vez mas os padres tinham ido pregar para outra freguesia. Enquanto se encostava no balcão viu passar um sofá novinho em folha para o escritório de Áurea e pensou que tinha guardado uma aguarela que calharia bem na parede que recebesse aquele couro em tons de terra barrenta. E foi nesse preciso segundo que descobriu que não passava de um parvo. E que merece um parvo?

Porta 9A


Enquanto Arménio subia era assaltado pelos pensamentos mais vulcânicos que jamais tinha experimentado. Ainda estava a meio das escadas quando ouve a voz de Áurea, vinda dum patamar mais acima, pedindo-lhe para ir andando para a loja que ela já lá iria ter. Que saudades ele tinha daquela voz que já lhe revolvera todas as glândulas num passado não muito distante. Desceu de forma automática - sempre lhe tinha obedecido, como que movido por uma força inexplicável - sem sequer ter pensado no que significava a tal loja na qual ele nunca tinha reparado, nem sequer sabido da existência. Mas lá estava, era uma galeria de arte novinha em folha, aberta certamente havia poucos dias e onde se podiam ver, entre outros quadros, algumas das suas aguarelas.

Mal sabia Arménio que nunca mais subiria ao escritório de Áurea. Os seus clientes tradicionais tinham-lhe feito ver que ela não poderia prestar tanta atenção ao portfólio de Arménio e que isso a estaria a dispersar, desperdiçando eficiência e fiabilidade. Estava ele com o seu olhar vago e opaco quando ela entrou na loja. Os seus olhos expressavam uma tristeza ainda sem lágrima e uma revolta revestida de expectativa. Não perdeu tempo a perguntar: Porque andou a expor noutras galerias? Ele ficou espantado, não esperava a pergunta, ou melhor, a pergunta parecia-lhe despropositada, fora ela que o tinha abandonado por razões que eram apenas dela. E ele não tinha feito exposição alguma, tratavam-se de informações deturpadas a que Áurea tinha dado ouvidos. Criou-se um momento de violência silenciosa, como que tudo o que fosse dito só servisse para se agredirem, e os deuses promoveram a paz do consenso possivel. De todo o modo se houvesse algo a perdoar imediatamente ficou perdoado. Corroído pela memória, sufocado pelas frustrações reprimidas, Arménio naquele momento via a sua revolta ser totalmente diluída pela presença de Áurea. Naquele período de ausência algo se teria perdido e algo se teria ganho, mas naquele momento ele não tinha capacidade para grande saltos analíticos. Deveria ter sido claro para ele que Áurea o tinha marcado com o ferro do abandono e lhe quisera transmitir a real posição dele na vida dela: era apenas um cliente diferente, diversificava-lhe o risco, mas não estava no seu cuore business. Mas ele não percebeu, os seus sentimentos despidos de calculismo impediam-no de ver tão distintamente.

Todos os dias ia passando pela rua, como habitualmente, sempre à espera que ela o convidasse outra vez a entrar na loja, mas o mais que dela foi tendo notícias era pelos convites para inaugurações de exposições alheias. A suas aguarelas tinham passado à história , mesmo que ela se esforçasse por lhe fazer chegar aos ouvidos que não havia ilustrações como as dele. A sua ingenuidade foi-lhe alimentado uma ilusão crescente até que um dia ela o convidou para se encontrarem, em terreno neutro. Ele foi.

Porta 9


Arménio Jasmim subia aquela rua íngreme como o começara a fazer regularmente desde o início do ano. Por regra não assumida escolhia o lado da numeração par, mas naquele dia frio e seco preferiu o sol que se apresentava acolhedor do outro lado. As portas não lhe eram tão familiares, as caras dentro das lojas também não, uma ou outra talvez, do café ou da papelaria onde entrara três ou quatro vezes, se tanto. Ia observando com alguma atenção mas sem aquela curiosidade que produz verdadeiras descobertas. Foi assim com um ar meio displicente que deu de caras com uma tabuleta no número 9 que anunciava 'Drª Áurea Martins - Solicitadora'. Poderia ser mais um escritório entre muitos, mas um impulso sem explicação perceptível fê-lo entrar. Uma solicitadora poderia ser aquilo que ele precisava ou mesmo ansiava inconscientemente. Mas uma dúvida tinha-se-lhe instalado logo nos primeiros lances de escada: seria alguém que faria o que ele solicitasse, ou alguém que solicitasse por ele, ou que o representasse em actos oficiais, ou apenas uma pessoa formalmente solícita que se disponibilizava a ajudar os clientes em geral naquilo que eles precisassem. Iria descobrir. Mas convém dizer que de facto Arménio nada procurava em especial, parecia apenas movido por uma simples mas determinada intuição de que ali estava algo - alguém, mais propriamente - que lhe iria mudar o rumo da vida.

Quando entrou, Áurea estava num corredor amplo, em forma de meia-lua, uma espécie de recepção, e tinha um vestido preto que lhe dava um ar simultaneamente sensual e competente, aquilo que se poderia considerar uma combinação ideal, e que ele nem suspeitava, mas rapidamente mais que suspeitou, lhe iria dar a volta à cabeça, sendo a cabeça apenas um tudo por representação. Teve de arranjar um motivo para a visita e perguntou-lhe se estava disposta a representá-lo junto de uma galeria célebre onde ele queria expor um conjunto de aguarelas que  ilustravam de forma inovadora sem inovar, foi essa a expressão que usou, algumas cenas de 'Os Maias' de Eça de Queirós. Apesar de ser a primeira vez que lhe aparecia alguém com um pedido daqueles, claramente fora da sua actividade normal junto de entidades oficiais, não estava na sua marca genética nem comercial desdenhar qualquer cliente que fosse e aquele até lhe parecia um trabalho curioso e original, à noite sonhou-o até como raro e luminoso, mesmo que apresentado por um potencial cliente sem especiais atractivos de qualquer espécie ou jeito.

Iniciaram a colaboração e a porta 9 tornou-se um destino comum para Arménio. Com o tempo Áurea começou a gostar do seu cliente e não foi de estranhar que acabassem por criar uma relação de grande intimidade, não tanto física, mas física porque na pele e no olhar começa o corpo, numa enorme cumplicidade, termo que por aqueles tempos se tornava corrente ler nas revistas da especialidade sentimental. Áurea sempre conseguiu manter uma postura fria e distante - devia colocar um iceberg na sua tabuleta, dizia-lhe ele de vez em quando - com Arménio e este não a queria forçar a dar nenhum passo do qual não estivesse seguro da vontade dela, numa mistura de ingénuo, tímido e cerebral, se não lhe quisermos destruir já o carácter antes de acabar o terceiro parágrafo. Se algo a definia a ela era um superioridade assumida, um ascendente emocional próprio de quem gere a dúvida e a insegurança alheia. E assim, ou mesmo assim, de impasse em impasse, foram construindo uma ligação forte, inequívoca e singular, praticamente um erosmilhões para quem observasse de fora; mas ninguém observava de fora. Romântica, como qualquer ligação que desafie as regras da causalidade amorosa, Esforçada, como qualquer relação que não tem um suporte logístico a justificá-la, e Livre, como qualquer relação em que nenhuma parte tem compromissos com a outra que não a lealdade. Com o tempo o enredo estava marcado pela intensidade e pela extraordinária união de afectos, mais aguarela menos aguarela. Também com o tempo vieram as previsíveis primeiras frustrações dele, que não sentia provocar a mínima atracção em Áurea que não aquela que resultasse da curiosidade intelectual ou da mera companhia agradável. Nenhum homem gosta de concorrer na liga dos caniches, chegou a dizer-lhe naqueles momentos de balanço que aparecem sempre no meio duma onda mais atrevida que prenuncia uma tempestade.
Num inevitável-evitável dia deu-se um solavanco que os afastou. Ele continuou a subir a rua mas ela já não tinha tabuleta afixada no nº9, tinha-se mudado para outro escritório, nem muito longe dali, tinha escolhido uma clientela mais certa, achava que Arménio não lhe garantia estabilidade, era errático nas suas aguarelas e nos textos que ilustravam, ora um dia comédias, noutros dramas, tragédia e sátira demasiado juntas. Ele sentiu aquele abandono duma forma cruel, sim cruel não é excessivo, mas se abandonado estava, morto não estava, era um evidência, o que me lixa são as evidências, haveria ele de repetir muitas vezes para si próprio.
Quando ela lhe fez chegar um conjunto de aguarelas ele destruiu-as de imediato, uma saudade não correspondida é um sofrimento sem cruz. O tempo foi passando como um nada sem fundo. Um dia, Arménio descia a rua pelo lado dos números pares e viu luz num dos andares da porta 9. Áurea estava à janela e acenou-lhe, tímida, mas resoluta, aliás, mais resoluta que tímida, pois tinha a certeza que ele subiria. Ele subiu.

[continua]

úlcera no duodécimo


Desde que o homem decidiu que os astros lhe comandariam a vida que dividimos o tempo em anos e os anos em meses. Daí até duodecimarmos a existência foi um pulinho mais curto que aquele que leva a gosma da faringe ao céu da boca. Assim, confrontados com uma marcação de passo que era imposta pela posição da nossa lua face ao nosso sol, quisemos libertar-nos desse espartilho astrológico através daquelas delicatessens cronológicas chamadas décimo terceiro mês e subsídio de férias. Foram épocas em que o homem se pensou um mago do tempo, um esticador de horas, um novo deus do calendário. Foram décadas bonitas, em que espatifávamos uma bastilha em cada seis meses, mesmo sem ser preciso ver a praia debaixo das pedrinhas da calçada. Mas vamos agora voltar ao mísero ano-de-doze-meses, ficando novamente reféns da ditadura da traslação e teremos de pôr a imaginação outra vez a trabalhar para driblarmos o inexorável. Como se não bastasse termos perdido a companhia desses dois duodécimos suplementares, aos quais inclusivamente já tínhamos o próprio corpinho habituado, verificamos que os restantes ficam mais vulneráveis à fiscaloscopia e observamos então que nos enfiarão pelo duodécimo adentro, qual fanáticos da biopsia e do folículo, um tubinho frenético e curioso que não vai descansar enquanto o ano não ficar com onze meses.

ano karenine



(...) já tinha notado há muito que quando as pessoas se sentem incomodadas pela sua excessiva docilidade e submissão, muito depressa se tornam insuportáveis por uma excessiva exigência e susceptibilidade

Início do cap. XXXII

Teologia da Hibernação


Com um deus distante e uma fé invernosa escolheu o seu deserto interior para refúgio maldito. Mau conselheiro de si próprio mas desconfiado do conselho de alheio, entregou-se a memórias vagas e recalcamentos persistentes, desatou os nós que trazia no estômago e esperou pela pancada. Veio ao terceiro dia, como uma ressurreição pagã, disfarçada de dor de garganta, pois tudo que vale a pena precisa da dor para ter dignidade. Agarrado pelas entranhas superiores perdeu-se em divagações sobre a culpa e o destino, a sorte e a má sorte, o reconhecimento e a incompreensão. Estava no consolo que toda a ingratidão propicia quando um Espírito Santo sem orelha lhe sussurrou duas verdades de demonstração inacessível para o seu grau de sofisticação no momento. Forçado a crer como alternativa viável, aconchegou-se naquele prazer demoníaco que é todo o desprezo pelo que nos rodeia e soltou a língua em forma de avé-maria sem graça. Recolhido na oração dos simples, deixou o coração divagar pelos pecados que nunca tinha cometido, mas que lhe tinham sido prometidos pela imaginação em estado de flor, e ruminou uma contrição de circunstância abrilhantada por dois toques em solavanco por um peito ainda em posição de pós insuflação arrítmica. Caçado pelo cruel predador que é a solidão imposta, um felino que nem sequer mija por onde passa, deixou-lhe as feridas para lamber, qual retalhista de almas para chulos montados em estofos de pele. Com o arrependimento a aproximar-se em pezinhos de lã, deu duas voltas à goela embebida em conhaque e suspirou como só um grande falso incompreendido sabe fazer. Coladas as bem-aventuranças com cuspo, citado o filho pródigo como quem limpa o rabo a meninos, e enfiadas duas bojardas evangélicas ao ritmo de quem cose uma gengiva, ei-lo com o espelho da alma bem espetado nos cornos, verdadeiros talentos à espera de parábola. Nem pestanejou. Abriu os olhos com a rapidez e a precisão duma vítima furtiva e pôs-se na mira do anjo da guarda. O grande mar vermelho abriu-se outra vez para a sua passagem e quando chegou ao outro lado abraçou um novo verão de promissórias várias, montado numa cavalgadura de tentações de fazer chorar qualquer menino jesus devidamente recenseado. Cada Estio deve ter direito à sua caverna invernosa.

Ali Bábá e os quatro-mil-milhões


Quando Gaspar descobriu que na caverna do estado social estavam escondidos quatemimnhões foi a correr contar a Passos.

 - E como é que lá entramos?

 - 'Abre-te selassié', acho que é a senha, e se lá conseguirmos entrar vai ser canja pormos as mãos nos quatemimnhões!

- Achas que não vai estar lá mais ninguém?

- Vamos num dia em que haja manifestações!

Gaspar e Passos esfregavam já as mãos com a imagem de um pote cheio de quatemimnhões quando lhes apareceu Portas a dizer que também queria ter uma palavra a dizer sobre os quatemimnhões.

- Mas tu não sabes qual é a senha! - rematou logo Gaspar.  

-  Sei sissinhora, é: 'Abre-te Lagarde'!

- Não é, Toma! E essa só manda no departamento de bijutaria e marroquinaria e os quatemimnhões são despesas sociais.

- Então vou perguntar ao Bagão Felix e ele diz-me a senha

- Ora, ora, espertinho, a senha já não é a mesma, ehehe, pensas o quê!?

Portas irritado manda chamar Mota Soares.

- Mota, então não eras tu o dono do estado social, porra!? Mandei-te para lá e agora deixaste mudar a senha e perdemos o controlo à coisa!

- Chefe, desde que descobriram que estavam lá os quatemimnhões andam todos fechados em copas e a fazer panelinha com o selassié

- Sabes o número desse gajo?

- Não, ele liga-me sempre dum anónimo

- Cabrão...e agora fazemos o quê?

- Sei lá, olha, para já pomos o puto-almeida a esbracejar e depois logo se vê

Entretanto Gaspar e Passos foram para a porta do estado social e começaram a dizer baixinho:

- Abre-te selassié, abre-te selassié...

E então, num movimento lento e majestoso, as portas blindadas do estado social abrem-se de par em par e eis que um tesoiro exuberante, doirado e resplandecente de subsídios de desemprego e pensões de reforma lhes aparece a tilintar e luzir.

- Meu Deus, tanta riqueza?! Já viste ali aquela pensão de viúva? Linda de morrer!? e aquele subsídio de funeral!? Que jóia...

- Sim, Gaspar, sim, deslumbrante, e olha ali para aquela bolsa de estudo! Parece um pergaminho raro!

- Estava aqui um pote de quatemimnhões e nós nem sabíamos!

- Olha, começa a meter no saco aqueles abonos de familia que estão todos espalhados e ainda podem voar com a corrente de ar

- E cheiram tão bem...são uma autêntica especiaria social

- Não sejas depravado, Gaspar, não é para brincares com isso!

- Ao menos deixa-me ficar só esta noite com uma taxa moderadora, para brincar com ela, vá lá, depois amanhã eu trago

- Sim, mas não digas nada ao Macedo, que o gajo é invejoso, e ainda vai querer meter a unha nos nossos quatemimnhões!

- Nada disso, os quateminhões são nossos! Fomos nós que os descobrimos!

- Sim! Credo, já viste, nem pensar, com os nossos quatemimnhões ninguém brinca...Eu sou o número dois, não sou?...

- Claro, Gaspar, meu rei mago, tu és o meu número dois, pronto.

- E mais ninguém vai saber do nosso segredo, pois não, número um?

- Não, ninguém!

- Nem o Marques Mendes?

- Não...

- Humm...quatemimnhões só para nós e para os nossos modelos escanzelométricos, nham, nham.

the dark side of the wool #n+k+l


Um dia o pastor enquanto tosquiva uma ovelha descobriu uma moeda dobrada no meio da lã. Olhou à volta e no cimo de um monte viu o lobo a rir-se atrapalhado e com um dente partido. Depois virou-se para o lado da planície e viu o fiel cão com o seu mealheiro ao pescoço. Fez-lhe uma festa rápida e tirou-lho. Já se preparava para o abrir e contar as moedas quando constatou que tinha lá inscrito em tempos: nem tudo o que é fofo é lã.

Dead Can Dance II


Uma das principais conquistas do novo Purgatório-social é que Deus Nosso Senhor doravante apenas terá acesso ao visionamento das nossas vidas depois de criteriosamente editadas. Enquanto antes nos apresentávamos ao Criador e seus acólitos de forma bruta, desde a refundação do Purgatório que temos direito a pequenos ajustes efectuados por anjos especializados em limar as arestas do pecado. Muito boa gente hoje ainda amocha anos e anos à espera duma vaga no Céu porque pura e simplesmente ninguém teve o cuidado de cortar pedacinhos sem importância da sua passagem por este degredo de Eva, muitos deles até certamente apenas pequenas distracções ou mesmo meras manifestação de respeito perante tentações que se apresentavam generosas e determinadas. Todos sabemos perfeitamente que mudar um enquadramento ou desfocar um ou outro plano são suficientes para transformar momentos de natureza mais duvidosa da nossa vida em meras circunstancias de confraternização e formas alternativas de viver alguns dos mandamentos, certamente apreciadas pela corte de Anjos, sempre ciosa de confirmar as nossas performances proselitistas; ora não há conversão sem contacto, como é sobejamente reconhecido. A edição de vidas para efeitos de visionamento e apuramento de responsabilidades morais é assim uma das principais conquistas do pecador moderno e deverá ser salvaguardada, sem quaisquer compromissos com arrivismos de escrupulosos ou puritanos de ocasião.

Dead Can Dance


Deus, como seria de esperar, olha para nós com curiosidade divina. A curiosidade divina consiste numa espécie de auto-redenção do criador que recebe o homem-feito-deus e lhe administra a eternidade chave-na-mão com uma paciência infinita. Mas o homem há muito que pôs Deus na borda do prato (há quem diga que é o local onde guardamos o que gostamos mais para depois degustar com cuidado) e Ele teve de reestruturar o Purgatório face à nova realidade religiosa. Podemos chamar a este novo local, para utilizar uma terminologia d'época: o Purgatório-social. A meio caminho entre a eternidade-ameaça e a eternidade-protecção este novo purgatório tem apenas para fornecer aos penitentes os serviços mínimos de penitência e adoração. A comissão instaladora definiu assim as suas funções: garantir apenas que perceberam a merda que fizeram e a merda que deixaram por fazer. Ou seja, deixamos de ter a possibilidade de vislumbrar antecipadamente a experiência de O ver face a face, mas por outro lado também não nos consumimos demasiado com a pecadilhada que distribuímos enquanto por aqui andámos. O novo Purgatório-social permitirá que nos habituemos mais gradualmente à nossa nova condição de mortos-pendentes do Juízo Final e que mantenhamos as virtudes teologais a um nível que nem envergonhe os santos nem desespere mais os que ficaram entalados noutros braseiros. Revistos os serviços mínimos deste Purgatório livre de expectativas que a fé de um penitente moderno já não consegue acompanhar, restam-nos agora uns quantos séculos de misericordiodependência e , quanto muito, um ou outro período de graças gordas.

A sexta avaliação


Carlos Fontes estava ansioso naquela terça-feira que arrancou com uma desconsoladora neblina. Iria estar com Luísa pela sexta vez e dos outros encontros não conseguira retirar um percurso, uma casualidade de emoções, reacções, suspiros ou sequer sorrisos, um love path. Cada encontro era um universo novo a descobrir, nem sequer percebia se se daria uma translação ou uma mera rotação, nos momentos que estiveram juntos o tempo parecera-lhe saído da cauda dum cometa desgovernado. Umas vezes faladora e expansiva, noutras circunspecta, em momentos lúcida e racional, noutros lúdica e enigmática. E como seria que ela o veria? Nunca conseguira perceber. Cada abraço era um exame, o simples olhar dela era uma cirurgia, cada carícia uma ecografia, cada beijo fugaz era saboreado como se duma ressonância magnética se tratasse. Desta vez encontraram-se num pastelaria de bairro junto a uma praça quase vazia duma zona antiga da cidade. Luísa apresentou-se calada e na expectativa. Parecia querer fazer do seu silêncio uma bancada de laboratório onde ele se teria de deitar para observação. Será que o verdadeiro teste a um homem é quando uma mulher se deixa ficar calada? Foi este o pensamento que o arrebatou imediatamente. Mas Carlos sentia-se um grande polidor do silêncio feminino e encarou aquela sexta avaliação como uma oportunidade de a conquistar irreversivelmente, de a cobrir com uma patine de sensualidade que a deixaria brilhante, como uma santa queirosiana de colo ebúrneo e trança de oiro. Quando ela esboçou a primeira intenção de falar ele chamou o indicador à frente de batalha e traçou-lhe os lábios, ainda ressequidos mas já carnudos e puníceos, como numa benção pagã, preparando um ritual de palavras ternas, doces. O silêncio de Luisa seria coberto por uma manta de sussurros, qual paramentária de pentecostes, rubra e festiva, eloquente, como só eloquente consegue ser um homem que ama sem razões. Deixou-a sem fala, presa num torpor de encantamentos inesperados e pronta para lhe fornecer o seu amor em tranches voluptuosas e ardentes, que ele trincaria reverberando uma constelação de estrelas. Serás o cobridor do meu silêncio, Amor, foi este o seu relatório, austero, mas digno duma rainha das palavras difíceis, dos sentimentos escondidos e das carências amarguradas.

perto - longe


À espera de Murphy


Não há muito tempo o blog 'dias felizes' (hoje com outro nome não menos beckettiano) numa série de 'aforismos naturais' (melhor que o natural só mesmo aquele com pedaços de frutas silvestres) escreveu: «Não se deve esperar muito de um feitio que balança entre o ensimesmado e o trocista». Dos vários garruços que pulularam de imediato à minha volta quando li aquilo, praticamente todos me assentaram que nem uma luva feita à medida, no entanto não comentei a descoberta com ninguém, não fosse deixar a descoberto a minha careca de gajo-do-qual-não-se-pode-esperar-grande coisa. Retive no meu ensimesmamento (que tem tanto de estéril quando de oportuno) a consciência de grande inútil e trocei (na medida do possível) comigo próprio naquela base de que antes estar quieto que estragar, pois antes um murphy na mão que dois godots a voar.

valha-nos nossa senhora da emasculada conceptualização


Senhores de uma pívia intelectual de bom porte os novos-sábios vieram tomar o lugar dos novos-ricos. Aparentemente tudo apontaria para que ficassemos mal servidos. Mas até não. A energia que antes fazia desabrochar fábriquetas de peúgas e tshirts, se bem que algumas de duvidoso porte vindas do grande maná da esperteza saloia, hoje dá à luz dondocas de salão de chá não dançante com o pomposo nome de comentadores. Gente incapaz de produzir um mínimo de riqueza que se possa apalpar com dedos de gente, (aquilo que agora a gíria chama de bens transaccionáveis) encaixou-se na fresta dos grandes bordéis do pensamento e fez nascer o novo cluster dos entertaineres de opinião, opinioristas praticamente de cédula garantida e com rodado preparado para qualquer tipo de piso. Mas o facto é que dalguma forma houve bom time to market nesta decisão dos mediamakers. Os canais generalistas têm novelas, reality shows e um ou outro concurso, e os canais de notícias fazem a festa com estes banality shows, permitindo até a alguns dos artistas-da-opinião saltarem de canal em canal para que ninguém se fique a rir. A chamada opinião livre está para a sociedade livre como o tremoço está para as terras cansadas. Ou seja, para o povo relaxar da ficção redundante ou da notícia anestesiante, os media fornecem um entretenimento que propicia algum fôlego benigno, algo que também dá muito boa serventia enquanto se passa a ropinha da máquina da lavar para a de secar, e que se pode ir desbastando sem comprometer nenhuma colheita essencial; não chega a dar sombrinha mas também não dá guarida a nenhum pássaro que acabe por nos cagar em cima. Ou seja, os opinioristas revelam-se não tanto os exemplares menores da caderneta da liberdade de expressão, mas antes os grandes guardiões do pensamento inerte, verdadeiras pílulas do nem-aquece-nem-arrefece, ventiladores de baixo custo e brisa morna garantida. Estes retalhistas do pensamento livram-nos da conceptualização cartelizada dos grossistas das academias e da erudição, e permitem-nos aceder à eterna graça que é esterilidade do raciocínio humano, consolidando-se como uma das bem-aventuranças dos tempos modernos em que o melhor que se pode fazer com uma notícia é tricot e, vá, um ou outro crochet decorativo para consciências em estado cívico.

blocogamia


De todos os grandes temas do momento, designadamente, o video-do-marcelo, as declarações-da-jonet, a visita-da-angela-doroteia, e o novo casal-do-bloco, apenas este último me parece de real importância. Não se trata, como aparentemente se poderia supor, de uma liderança bicéfala, (aliás, é até aos homens, isoladamente considerados, a quem geralmente é atribuída essa qualidade de pensar com duas cabeças) trata-se antes, e  numa primeira análise, de uma tentativa de re-hormonização do poder. Face à carga erótica que geralmente está acometida a qualquer liderança, o bloco de esquerda enveredou por dessexualizar o exercício do poder e fê-lo precisamente: sexualizando-o. Face à herança hermafrodita de Louçã não seria fácil encontrar uma solução que não esta de amancebar heterosexualmente dois espíritos de esquerda num único casulo trotskista. E é assim que se traz para o maravilhoso mundo da termodinâmica homem-mulher uma nova e empolgante categoria. Face a relações menos ortodoxas entre um homem e uma mulher, que geralmente dão origem às explicações tipo: a) ah, são apenas amigos; b) ah, são apenas sócios num negócio; d) ah, têm apenas os filhos no mesmo colégio; e) ah, foram apenas colegas desde o infantário; f) ah, apenas tiram fotografias juntos; g) ah, são apenas vizinhos, junta-se agora o h) ah, são apenas co-líderes. A co-liderança é, assim, uma relação meta-sexual em que tudo funciona em vasos comunicantes, sendo que a troca de fluidos é substituída por uma comunhão de ideais de esquerda partisanica, também conhecidos como trostkosterona. Esta hormona revolucionária, produzida pelas glândulas quando funcionam em bloco, é a responsável pela orientação do organismo para todas as causas desfavorecidas, permitindo-lhe a adesão à polémica incontinente e à abolição de todas as indulgências aos consagrados. Assim, o bloco-casal (que enche um chouriço diferente da sicasal) tem ao seu alcance proporcionar todo um tipo de sensações de libertação e empatia com o mundo em geral até hoje apenas verificáveis em ambientes de espiritismo ou amor livre, mas agora numa confluência de energias propiciadora de revolução, serenidade e compreensão mútua.

Deixo então aqui, aquele que será o novo hino do bloco, numa adaptação do êxito de Lara Li ('Telepatia')

Blocogamia, revolução e calma,
Feitiçaria na nossa alma
Passo a passo, sem ter medo
Abrímos, soltámos o nosso segredo

E a sorrir, devorámos o mundo
Num abraço tão profundo.

a (refundação da) mulher de confiança #2 - a bota chelsea


Neste processo de minúcia que é a reforma profunda da mulher portuguesa não devemos encolher-nos perante estigmas ou preconceitos de qualquer espécie. Assim, ao 'diz-nos com quem andas dir-te-ei quem és» há que juntar o, até mais óbvio e consensual, julgo,  'diz-me o que tens nos pés dir-te-ei como andas'. Se no primeiro capítulo deste breve ensaio comecei pela cabeça, será agora de elementar justiça dar cobertura à outra extremidade. O pé-de-mulher (conceito que se situa nos antípodas do também familiar pé-de-atleta ) constitui-se não só como um dos grandes mistérios do erotismo feminino mas principalmente na consagração da mulher como o real sustentáculo duma sociedade em permanente volatilidade e ciclomaníaca. Deixo desde já claro que não pretendo elaborar aqui nenhum libelo contra modas como o salto ou o cano alto, mas antes reforçar aquilo que constitui o núcleo de confiança que se pretende encontrar numa mulher: firmeza e flexibilidade. A bota chelsea consegue concentrar estes dois atributos numa economia de meios notável e, ainda para mais, deixando em aberto uma ampla gama de soluções de nível estético que mantêm a mulher no pináculo da atracção sem lhe atraiçoar o pudor, nem a respeitabilidade. Num notável equilibrismo de forma, proporção e funcionalidade, a bota chelsea envolve o pé feminino sem que este se perca num deslumbramento de subtileza ou numa ilusão de força, que deitariam tudo a perder nessa missão essencial de transmitir confiança ao homem que cada mulher leva pela mão, ou por qualquer outra ponta por onde se lhe pegue. Com a imaginação e a insegurança masculina nas doses e temperos certos, o homem sabe que tem na mulher-com-bota-chelsea, não uma vulgar bota de elástico, mas antes uma companheira serena, segura, sóbria e sinuosa quanto baste, pois, como está demonstrado, a curva feminina é tanto um lugar de derrapagem como de contorno táctico.

Neste momento histórico de redefinição do papel da mulher-junto-do-homem, quer ela se assuma mais mulher-previdência ou mais mulher-desfrute, a discreta e eficiente bota chelsea é essencial não só para que não se tenha de preocupar com as falhas na calçada portuguesa nem com os calos, mas para que igualmente possa traçar a perna sem que o homem desvie a atenção para o que é realmente providencial. 

frente - trás


Lafayette & Talleyrand


A revolução em Portugal acabou por não conseguir gerar uma mitologia decente e consistente. Se, por um lado, Soares ainda se aproximou do brilho da liturgia aristocratico-revolucionária, dando cores persistentes à primavera politica e construindo em seu torno uma película  lafayettiana de esplendor e espontaneidade, nada de jeito se produziu no outro extremo. Chegados à troikicidade do momento olhamos à nossa volta e não encontramos nenhum grande calculista, nenhum grande e perene manipulador de bastidores. Vários candidatos foram ficando pelo caminho (marcelos, almeidas santos, jaimes gamas, angelos correias, etc) sem deixarem nenhuma marca que não o episódio ou flirt irónico e conspirista. Chegados aqui vemos que a revolução em Portugal não produziu nenhum Grande Cínico, alguém que trouxesse no sangue a dissimulação em estado puro, um reflexivo obsessivo. E que falta nos faz a existência desse pólo agregador de todas as forças da especulação e do genuíno amor aos bastidores e aos cordelinhos. Fosse por incompetência, por excesso de vaidade mediática ou por mera mesquinhez genética, estamos órfãos desse talleyranico poder,  e o país rumina pelos cantos sem descobrir nem redenções nem conspirações que o salvem. Em nos ter falhado o poder mítico dum cavaleiro andante e duma eminência parda estamos confiados a pardos andarilhos de poder. Sempre com o picotado ao pescoço.

aguentómetro


nível 1 -  lembram-se daquele tempo maravilhoso em que se discutia se o couvert devia ser pago em separado?
nível 2 - lembram-se daquele tempo fantástico em que o grande problema do mundo era o racismo na África do sul?
nível 3 - lembram-se daquele tempo em que a salazarenta ponte 25 de abril ficou bloqueada porque os camionistas não queriam pagar o aumento das portagens?
nível 4 - lembram-se daquele tempo maravilhoso em que se era a favor ou contra a invasão do Iraque?
nível 5 - lembram-se daqueles tempos em que evitávamos comer carne de vaca por causa da espongifórmica?
nível 6 - lembram-se daquele tempo em que a principal questão nacional era um problema técnico sobre o novo aeroporto: ou em cima das estacas da Ota ou entre os sobreiros de Alcochete?
nível 7 - lembram-se daquele tempo maravilhoso em que o engenheiro guterres não sabia calcular percentagens do pib?
nível 8 - lembram-se daquele tempo em que o sporting tinha equipa de futebol?
nível 9 - lembram-se daqueles anos luminosos em que cavaco comia bolo rei?
nível 10 - lembram-se quando estávamos de tanga?

salafixologia


Ao contrário do que somos levados a pensar, o epíteto «salazarento» , que alegadamente terá ofendido Gaspar, victor e ministro,  não se deve tanto ao mobilizador ideológico-idiomático 'salazar', mas antes ao sufixo 'ento' que, com o aditivo do 'z' já possuído pelo referido salazar nos conduz directamente a 'cinzento', cor interessante para combinações mais clássicas no vestuário, mas que nos remete para um universo de retrogradismo e bafio. Vejo assim que está ao nosso alcance definir uma nova classificação semântica dos vários salazarixos. Observemos. Se utilizarmos o  'salazarosa' podemos lograr injuriar a preceito alguém que esteja próximo do lobi gay; se quisermos dizer que um politico está com um discurso mortiço e cambaleante poderemos chamar-lhe um 'salazarombi'; se por acaso alguém entrar por um discurso decadente de vaidade e bazófia poderemos utilizar o novel adjectivo 'salazarófia'; se pretendermos desconsiderar alguém e as suas ideias julgo que a utilização de 'salazareco' será de muito bom efeito. Por outro lado, ao nos depararmos com alguém que esteja a misturar tudo, naquela onda de que está tudo ligado e que tudo é igual a tudo, dará muito boa serventia a expressão achocolatada de 'salazarame', e se nos aparecer algum artolas com um estilo de romancista chato e arrastado não ficará mal de todo chamá-lo de 'salazarola', com emílio ou sem emílio. E então, por último, e para ir jantar, se quisermos arranjar uma designação acutilante para o que acabei de escrever, muito bem ficará chamar-lhe um post da salazareta.

a (refundação da) mulher de confiança #1 - a bandelette


Qualquer homem num determinado momento da sua vida precisa de ter uma mulher de confiança. Seja qual for a posição formal que ocupe na sua vida (cuidado que as mães nunca são de confiança) trata-se de alguém em que ele possa encontrar aquilo que não tem, nem nunca terá, por força duma fatalidade que se dá pelo nome de natureza. A mulher, sem deixar de ser também uma construção social e cultural, (como o homem, de resto, mas este menos) encerra em si um pouco daquilo que apenas a religião consegue fornecer com estilo, ou seja: o mistério. Apesar de Pessoa ter alertado para que «o único mistério é haver quem pense no mistério», é impossível fugir à inegável capacidade que a mulher tem em se constituir numa espécie de metafísica com pernas ( e mais qualquer coisa de bónus). A mulher, ciente dessa sua característica desde muito tenra idade, (mantendo-se, muitas delas, inclusive tenras por muito tempo) tem uma forte tendência para lhe ir acrescentando muitos outros atributos que acabam por diluir o papel peri-religioso que recebeu das entranhas da criação. É assim para o homem uma tarefa de primordial importância saber discernir de todas as mulheres que as circunstâncias lhe colocaram no caminho, qual ou quais as que podem ser realmente a sua ponte, a sua ligação ideal, a sua chave, a sua ignição. Como a mulher é extremamente permeável às iconografias de camuflagem, isso acaba por permitir ao homem construir uma espécie roteiro de decifra que funcione como descodificador de bolso. É desses sinais (mutáveis e vulneráveis à dissimulação feminina, claro) que aqui falarei, nestes momentos históricos em que se irá definir qual o tipo de mulher a que temos direito.

O primeiro que me parece consensual é o uso de bandelette. A gestão (da forma) do cabelo é uma das principais rotas de definição do humano ( o animal, por exemplo, pode arranjar as unhas ou garras mas não se auto-penteia) e a mulher forçosamente não consegue fugir a esse processo. Com maior ou menor consciência o seu penteado vai transmitir aquilo que ela é, e, mais precisamente, é para o homem. Ora a bandelette é um instrumento de eleição para a mulher emitir um sinal inequívoco de que: tem a consciência de que é um ser-da-selva mas que se sabe controlar. A mulher bandeletizada prova com esse adereço que saberá constitui-se num acondicionador para o lado desregrado do homem e que saberá estar ao lado dele quando for preciso atravessarem o rio, esteja ele cheio de predadores ou apenas com uma corrente mais forte. O homem poderá confiar nela pois nunca deixará que o vento lhe leve o cabelo a tapar a vista, a mulher com bandelette nunca perderá a perspectiva, nunca se deixará ficar presa em nenhum ângulo morto ou arame farpado. Por outro lado, a mulher-de-bandelette não vai perder tempo a cortar franjas, a endireitar linhas de penteado nem a empinar caracóis (tendo até mais disponibilidade para empinar outras curvas), será sempre uma mulher prática que não deixará o homem perder-se em divagações, em pensamentos inúteis ou de uma futilidade castradora. A mulher de bandelette não terá a tentação de soprar a cortina de franjas, será muito menos atreita a usar rabo de cavalo (o enfeite mais enganador para o homem), e nunca deixará avolumar em excesso o seu cabelo, ou seja, manterá a sua nobreza sempre conservada num banho de sobriedade. Sendo a mulher bastante atreita às limitações impostas pelas convenções sociais (muito mais que o homem) o uso da bandelette evidenciará que ela é das que, compenetrada nessa sua histórica fragilidade, saberá pôr o homem que confia nela acima de todas as luxúrias de condição ou liturgias de ilusória libertação.
Podemos, pois, afirmar com alguma segurança, e sem recorrer a discurso fácil ou de cassete, que uma mulher em estado-de-confiança provavelmente usará uma bandelette.

novo-velho


O Estado Marsupial


Depois de ter sido decretado o óbito do chamado Estado Social toda a comunidade politóloga e sociolofílica se reuniu para desenvolver um novo modelo de Estado que, para além de lhes continuar a dar trabalho, pudesse igualmente dar aviamento à quantidade de impostos que começariam a sobejar nas contas públicas. Tendo acordado em manter uma posição de apriorismo na definição de Estado, oposta, portanto, à recente tendência pragmatóina, (na qual o Estado é o que derem os impostos, uma espécie de Estado em regime de trabalho temporário) os especialistas começaram por construir o enquadramento conceptual para um Estado neoplatónico, um Algo que tem de estar ali, leviatanico e seguro, mesmo que não se veja nem sinta.

Arredada a vertente minimalista de Estado-central-da-securitas, em que cada cidadão estaria ligado a um posto de intervenção rápida que enviaria um piquete apenas em caso de arrombamento social, estabilizou-se num conceito de Estado-como-central-de-acolhimento. Afastados os extremos de Estado-sopa-dos-pobres e Estado-resort, as várias sensibilidades centraram-se em torno de modelos mais biológicos, procurando inspiração na natureza que deus nosso senhor nos propiciou na sua infinita magnanimidade e inclusive espírito prático, avant darwin.

A primeira sedução filosófica veio da corrente que desenvolveu o conceito de Estado-concha, naquilo que ficou conhecido como o neo-Bibalvismo. No entanto, rapidamente esta corrente desembocou nos previsíveis rousseauniamismos avulsos, chegando-se a ouvir afirmar que cada cidadão seria uma pérola em potência apenas à espera dum Estado-joalheiro que se enfeitasse com ele. Quando parecia poder instalar-se um impasse ideológico, um grupo de filósofos sugeriu que se deveria procurar uma fórmula de Estado naquilo que de mais íntimo a natureza humana albergava. Tentativamente simularam-se modelos de Estado-vulva, tomando em consideração que a sodomia já está demasiado usada e que haveria de voltar às origens, nas quais o Estado era o grande fecundador de consciências, uma espécie de viveiro de sonhos de cidadania, liberdades & magnas cartas. Alertados para o problema que se levantaria com o ressurgimento das nações-vulva, que automaticamente atrairiam uns problemas do caralho, souberam ainda assim não esmorecer e, vendo o entusiasmo crescente dos defensores dum Estado-balancete eternamente depende do espasmo fiscal, e em paralelo as mãos caídas dos herdeiros desfalcados do tal Estado-Social, alguns elementos dum think-tank denominado 'roer-o-osso' reuniram-se em segredo para formular uma Teoria de Estado que o voltasse a colocar no coração das pessoas.

Surgiu assim o modelo consensual de Estado-Marsupial. Este tipo de Estado é claramente uma mais-valia e uma solução de compromisso, no qual o cidadão pode encontrar o aconchego que precisa mas em que, simultaneamente, pode pôr de vez em quando a cabecinha de fora para tomar ar. O Estado-Marsupial tem uma característica fundamental: está sempre disponível; mesmo que não existam grandes recursos há sempre um mínimo de calor interior que permitirá aquecer o cidadão, dar-lhe guarida, e inclusivamente ajudá-lo a dar o salto para qualquer sítio. O próprio sub-grupo recentemente criado dos refundacionistas, que pretendiam criar um modelo de estado-das-sobras, considerou que este modelo marsupial não era incompatível desde que o cidadão não desse muitos traques fora da bolsa, pois nesta fase não se pode perder nada independentemente do que cheire. Espera-se agora que as instituições se adaptem progressivamente e inclusive não se dêem reacções despropositadas de lobis mais envolvidos em compromissos com o estado-coninhas, também conhecido como o estado liberal.

a economia da estupidez


Ser estúpido é algo que requer uma utilização criteriosa de amplos recursos. Em geral podem encontrar-se 2 grandes tipos de estupidez: a natural e a elaborada. O primeiro tipo está bastante bem difundido pela espécie e é uma das chaves mestras da nossa sobrevivência a par do polegar pênsil, do uso do fogo, do cartão de crédito e da roda. No entanto, mesmo esse nosso talento inato para colocar a realidade ao serviço das nossas entranhas mais íntimas exige treino e interacção com vários recursos, designadamente o desprezo pelo semelhante e , nos casos mais sofisticados, o desprezo por nós próprios. Deixando um pouco de lado este tipo de estupidez natural, debruçar-me-ei no segundo tipo que chamarei de estupidez-elaborada. Quando se diz, por exemplo: não há limites para a estupidez - é precisamente desta que estamos a falar.

A estupidez elaborada tem, desde logo, um ponto de contacto muito relevante com a natural, trata-se da pose. A pose estúpida é a combinação do talento natural-estúpido com um trabalho artesanal que inclui trejeitos, tiques e fosquices, sem menosprezar esgares diversos. É, no entanto,  objecto de estudo dos fisionomistas-pantomínicos e deixamos para outra ocasião. Situemo-nos agora na observação dos mecanismos mais recorrentes na elaboração da estupidez. Em primeiro lugar temos a fenómeno da 'sobranceria'. O uso da sobranceria deve ser concretizado de forma muito parcimoniosa, não se deve esbanjar sobranceria pois se ela transbordar poderá conduzir a que não sejamos levados a sério. Um verdadeiro estúpido condimenta sempre a sua sobranceria com momentos de comiseração patética. A comiseração patética distingue-se da comiseração lúdica porque implica a maior utilização de trejeitos de lábio e em menor grau os de nariz ou testa (os olhares terão direito a dissertação específica). É talvez um tema demasiado técnico para este documento e podemos passar ao segundo elemento constituinte da estupidez-elaborada, trata-se do convencimento-misterioso. Um estúpido-elaborado apresenta-se sempre senhor de um conhecimento oculto, também conhecido nalguns fóruns técnicos como o graal-de-merda. Este aleph do estúpido deve concentrar um efeito anestesiante nos auditórios que o rodeiam e apenas tem de se ter cuidado com o efeito-fronteira da irritação alérgica. Um estúpido no ponto rebuçado deve sempre causar irritação mas jamais deve permitir que esta vire alergia. A alergia é a grande inimiga do estúpido-elaborado e funciona quase como o mau hálito do padre num confessionário, que, designadamente, pode fomentar pensamentos perturbadores do género do foda-se perdoa-me lá esta merda e afasta o bafo de cima de mim. Por último, e para não nos alongarmos neste estudo que se quer sucinto, - e eu hoje sinto-me sucinto - devemos debruçar-nos sobre o tema do olhar do estúpido-elaborado. Em primeiro lugar há que afastar o risco de confusão com o olhar de peixe, pois nem todo o olhar de peixe está afecto a um estúpido (por vezes é um peixe mesmo) e nem todos os estúpidos têm olhar de peixe. Uma coisa é clara, e todos os trabalhos de campo que efectuei o demonstram, o estúpido deve estar dotado de algum esgazeamento de olhar, algo assim entre a névoa e o alheamento e que vai muito bem juntamente com umas olheiras discretas. Há, contudo, certos patrimónios genéticos que não permitem este tipo de olhar e têm de recorrer a outros mecanismos fisionómicos, como sejam o do carneiro-mal-mortismo que é de bastante mais fácil acesso a qualquer estúpido-em-elaboração. Os olhares com tendência mais inerte poderão ter de se socorrer do plano B que se encontra no esbugalhamento. Este olhar esbugalhado é algo arriscado, e já ouve muitos espécimes que foram encarados como meros curiosos, mas afinal acabaram por funcionar muito bem como estúpidos-cientistas sociais, uma nova sub-espécie em expansão. À laia de conclusão poderemos dizer que a estupidez elaborada dá-se muito bem em ambientes de credulidade assistida, ou seja, em situações históricas nas quais, à falta de catacumbas para nos escondermos duns cabrões em legião, nos refugiamos em pastiches econométricos, o verdadeiro paraíso simbólico do novo-estúpido, fazendo as vezes daquilo que o mercedes já significou para o novo-rico. Não queria no entanto deixar-vos sem uma breve alusão à nova preciosidade da estupidez moderna que é o uso da filosofia política como muleta de estupidez. Com o advento do estúpido-com-estudos veio a tentação de sedimentar a estupidez em algo de semelhante ao que,  no passado, o piolho já tinha representado para o estúpido medieval ou a cabeleira postiça para o estúpido ancien regime. Hoje o estúpido-culto ancora-se numa visão integrada do mundo, vivendo com uma espécie de clister hiper-estruturalista sempre enfiado, camuflado, digamos. Assim, é uma estupidez que resulta muitíssimo bem, sempre fornecida de eficientes retóricas de ocasião, e permitindo o desenvolvimento sustentado de uma das quinta-essências da estupidez-elaborada que é o desdém pelo semelhante, conferindo-lhe aquela auréola de iluminismo requentado de tão belo efeito, e que inclusive vai bem com qualquer tipo de botão-de-punho.

windianápolis #n


The wind blew all my wedding-day,
And my wedding-night was the night of the high wind;
And a stable door was banging, again and again,
That he must go and shut it, leaving me
Stupid in candlelight, hearing rain,
Seeing my face in the twisted candlestick,
Yet seeing nothing. When he came back
He said the horses were restless, and I was sad
That any man or beast that night should lack
The happiness I had.

Philip Larkin in Wedding Wind

windianápolis #4



O wild West Wind, thou breath of Autumn's being,
Thou, from whose unseen presence the leaves dead
Are driven, like ghosts from an enchanter fleeing,
Yellow, and black, and pale, and hectic red,
Pestilence-stricken multitudes: O thou,
Who chariotest to their dark wintry bed
The winged seeds, where they lie cold and low,
Each like a corpse within its grave, until
Thine azure sister of the Spring shall blow
Her clarion o'er the dreaming earth, and fill
(Driving sweet buds like flocks to feed in air)
With living hues and odours plain and hill:
Wild Spirit, which art moving everywhere;
Destroyer and preserver; hear, oh hear!
.
 
de Percy B. Shelley, in Ode to West Wind

Pussy Diet


De todos os grandes compensadores psico-fisiológicos da humanidade ( álcool, tabaco, velocidade e sexo) apenas o sexo não contribui devidamente para a cobrança fiscal. Por estar muitas vezes associado a actividades proibidas por lei, nalguns casos penalizado pela chamada moral vigente, e em muitas culturas ligado aquilo que geralmente se chama a esfera íntima de cada um, o sexo tem estado arredado da fiscalidade tradicional. Ora, sendo, destes quatro compensadores, aquele que está presente junto de nós há seguramente mais tempo e sendo aquele que, julgo, nos está mais amplamente consolidado, não parece normal que viva arredado dum papel activo de contribuição para a fazenda nacional. A dieta libidinosa a que o nosso orçamento do Estado se tem submetido deverá pois chegar ao fim. Até há alguns anos, a prática sexual , ao contrário dos outros compensadores, não compelia à utilização de nenhum produto, costume esse que com o tempo se foi alterando via o uso e consequente comercialização generalizada dos preservativos. Face à dificuldade da tributação do acto sexual em si, a possibilidade de tributar o produto associado ao acto parece ser o caminho mais razoável (da mesma forma que não se tributa o acto de beber e sim os produtos alcoólicos conexos, não se tributa o acto de fumar mas sim os cigarros ou afins e não se tributa o uso da velocidade mas sim a compra de viaturas e de refinados petrolíferos). Mesmo que a prática sexual possa estar associada a mais produtos para além dos referidos preservativos (toalhetes, motéis, algemas, lingerie ou até vendas para os olhos, entre outros) afigura-se-me pouco plausível que se alcancem resultados fiscais convincentes sem a utilização daqueles como matéria colectável. Assim sendo, dois caminhos se apresentam possíveis: ou a sua comercialização ser totalmente controlada pelo Estado (como acontece com os produtos alcoólicos ou até o tabaco nalguns países), ou a tributação ser exclusivamente efectuada no produto, independentemente dos seus canais de distribuição, com a obrigatória e solene selagem oficial. Na primeira modalidade poderiam utilizar-se as redes de lojas do cidadão, ou dos CTT, ou até a monopolização de novas máquinas dispensadoras a licenciar. Poder-se-ia inclusive conceder alvarás para lojas acreditadas (com a consequente receita adicional) o que até permitiria revitalizar sectores actualmente em esforço como a restauração ou as imobiliárias, constituindo-se assim um apetitoso cluster dos preservativadores, ou , passe o trocadilho neologístico, os novos condomínios. Se esta medida pode causar, à primeira vista, alguma estranheza, convenhamos que é meramente circunstancial, pois, repare-se bem, também não está no núcleo conceptual dos conceitos de beber álcool, fumar ou andar de carro a noção de que são actividades tributáveis, sendo que a colecta a elas associada é absolutamente artificial e só nos está entranhada por mera acostumação. Constataremos até que, neste caso, cada contribuinte sentirá que a sua participação no Orçamento do Estado é algo que lhe está bem junto ao corpo, numa verdadeira fiscalidade de proximidade, como uma segunda pele. Será obviamente natural que esta medida de tributação avulsa, e de alguma forma de emergência, leve a comportamentos de ajuste ou até evasão, quer sejam eles a utilização de alternativas sexuais, quer sejam níveis de abstinência mais elevados que os previstos pelos modelos, quer sejam o mero contrabando ou contrafacção. No entanto, uma coisa é clara, poderá não ser o fim da pica mas seguramente dará algum descanso à crica.

a economia do pensamento


Desaparecidas as ideologias em parte incerta e depois de uns anos à volta de super-estruturas de desenrasca tipo civilização, ocidente, tolerância, ética e outras avulsas da família das convicções, aterrámos na era dos conceitos. Como estamos ainda numa fase embrionária escondemo-nos frequentemente em figuras de estilo de maior ou menor efeito, metáforas de atavio, fazendo apelo a uma imaginação que vive descompensada por falta daquilo que antes lhe dava gás que eram os famosos valores.  Assim, nesta era emergente dos conceitos - à qual ainda nos adaptamos quais netherdales do pensamento abstracto - já tivemos de pôr de lado as grandes motivações e os grandes desafios e estacionámos na berma, junto ao maravilhoso mundo dos possíveis. Começamos, e bem, por baixo. Definimos os novos sofrimentos, as novas decadências e assim pensamos fugir aos cálculos piedosos da miséria e do desespero. De rabo a dar definimos como roubo a falta de jeito e como bomba o apertão, dando assim algum lastro para os conceitos terem espaço para montar a sua tenda. O Capital e a Bíblia, cumprindo o seu ciclo,  voltam a alimentar os mesmos comensais. Quando não se sabe, ensina-se, quando não se sabe ensinar, explica-se, quando não se sabe explicar conceptualiza-se. Vivemos o conceptualismo criativo. Nem está mal visto.

a economia da virtude


Há muito que o consumo tinha substituído a fé como principal motor da actividade e da ilusão humana. O consumo veio acompanhado de conceitos sedutores como a imaginação, a felicidade, o bem-estar, a liberdade, o progresso, e a fé foi ficando mais ligada a corrupção de almas, a liturgias bafientas, a estruturas de opressão emocional, a fanatismo , a irracionalidade e a regressão. Ora nestes tempos em que o processo de moeda ao ar que impregna toda a evolução humana entrou numa fase em que nos é apresentada a outra face temos para nos entreter o confronto semi-titânico entre a austeridade e a temperança. Assim, enquanto a austeridade nos revela os lados negros da privação, da insatisfação, da frustração, a temperança tem o seu tempo de antena para nos indicar o caminho da sobriedade, da paciência e da discrição. A opção para quem se sente fodido e mal pago é empertigar-se casto e ponderado. Se antes era preciso separar o consumo do desperdício, hoje é preciso separar a temperança da miséria.
Antes uma boa perspectiva na mão do que dois realismos mágicos a voar.

Windianápolis #3


No boughs have withered because of the wintry wind;
The boughs have withered because I have told them my dreams


William Butler Yeats, in  The Withering of the Boughs

Tsunicómio IV - Alvaladoscopia


Enfiaram um tubo pelo rabo do sporting adentro e foram encontrar uma espécie de pandilha doutro mou, dum memorandum of unconsciousness; mas nem tudo é o que parece. A parede estava bem lubrificada, todavia contraía-se por tudo e por nada. O ecrã mostrava movimentos espasmódicos por dá cá aquela palha, uns divertículos faziam de pombinho e outros de gralha, enquanto alguns procuravam um treinador que os salvasse outros procuravam um árbitro que não os tramasse, em ambos os casos evitando a cólica e aproveitando o flato para energia eólica. Tratava-se dum exame de urgência não houve tempo de esvaziar bem a tripa oleosa e ainda para lá havia restos de pentelhices misturadas com a mucosa. Foi avaliada a situação e o diagnóstico dito um em formato solene, que lá se instalara uma marosca perene. Seriam Lampiões? Sócrates? Um perdido par de colhões? Algum benefício fiscal desgarrado? Ou restos dum penalty mal assinalado? Uma virgula mal colocada num decreto? Uma maioria anulada por um veto? Retirou-se um bocado para análise. Com a bosta bem posta na lamela, ninguém dava por ela. Pediu-se paciência, circunspecção, coalescência e a uma puta armada em menina pediu-se cuidado com a verrina. As células acabaram por dar de si, e mesmo com um aspecto palúrdio houve quem dissesse que só servia um treinador que custasse um balúrdio. Foram a sortes, e como não havia treinadores incluídos no Plano Nacional de Leitura, optaram por contratar um tsu, um treinador saído do olho do cú.

Tsunicómio III


A lagartada afunda-se e nós andamos preocupados com a merda do país como virgens néscias. O afundamento leonino é algo que nos devia pôr todos a pensar: há na realidade algo que está por dentro e tudo mina. Não pode ser só incompetência, não pode ser apenas cancro, não pode ser apenas aldrabice, não pode ser apenas azar. Mas também seria abusivo dizer que o Sporting encarna o grande mistério da Impenetrabilidade do Ser, ou seja, meia dúzia de caralhos que não conseguem - há anos! - pôr a jogar outra meia dúzia de caralhos (não se escandalizem com tanto caralho e pensem como as boas gentes do norte que dizem que caralho é virgula) não é o suficiente para definir um problema metafísico. No entanto, algo estará quanticamente no interior daquele cabrão de sistema chamado sporting club de portugal e que compete com o misticismo judeu, a cabeleireira da judite de sousa e até aqueles modelos empíricos do gaspar devidamente benzidos por borges & macedos. Temos excesso de interioridade e excesso de litoral, somos demasiado densos, muita uva e pouca parra, concentramos demasiada energia e precisamos de escapismos seleccionados, mas desgraçadamente as balizas adversárias não têm estado no caminho dos nossos escapes, tal como não foi na praia do bom senso que desembarcaram as derivadas de gaspar. Pensemos estar a ensaiar mais um método de interrupção involuntária da sensatez, e que algo eternamente adiado pode afinal ser apenas um embrião embriagado.

Windianápolis #2


 This is how the wind shifts:
Like the thoughts of an old man,
Who still thinks eagerly
And despairingly.
The wind shifts like this:
Like a human without illusions,
Who still feels irrational things within her.
The winds shifts like this:
Like humans approaching proudly,
Like humans approaching angrily.
This is how the wind shifts:
Like a human, heavy an heavy,
Who does not care.

Wallace Stevens, «The Wind shifts» in Harmonium, 1923 (recolhido da "Antologia" ed. Relógio de Água, 2005)

Tsunicómio II


No dia da sua implantação o presidente da dita nem sequer pode sair à rua. Não é bonito e não há busto que disfarce o desconforto que isso devia significar para quem tenha um pingo de sensibilidade e bom senso na pinha. Não se trata de um efeito secundário da hibernação de soberania em que vivemos, é importante que se diga, trata-se duma má ponderação do momento que vive o País. Um presidente que não está próximo do país, mesmo que essa proximidade fosse litúrgica ou fetichista, perdeu a sua função. Já não é símbolo, já não é refúgio, já não é inspiração e muito menos referência, tornou-se um saco de boxe, um desabafador, uma espécie de relvas com estudos. Com a relação entre cidadão e Estado a ficar reduzida e estrangulada numa relação de sacador-contribuinte vêm abaixo todos os pilares duma sociedade que se arrastou nos séculos a tentar eliminar despotismos, prepotências e iniquidades. O presidente eleito duma República  devia dar o peito ao saque e ter consciência que não está ali por nascimento ou golpe de estado, que tem um compromisso de lealdade para com aqueles que aqui nasceram sob pena de, com a sua pose, se tornar num portas de boliqueime. As instituições são importantes quando significam uma organização de poderes e conhecimentos, quando anulam os efeitos duma turba raivosa ou duma facção sinistra, quando fazem a ligação entre cada indivíduo e todos os indivíduos. O Presidente da República Portuguesa não pode ser o Administrador duma Fundação de Senadores. Para ser a salvaguarda dos direitos das pessoas não basta a representatividade, é exigível a comunhão. Ora actualmente a comunhão que se vive nem mística é, resume-se a um solilóqio num qualquer pátio da galé. E cá fora o povo feito ralé.

Tsunicómio


Um dos paradoxos básicos da eficiência é que: o mercado será tanto mais eficiente quanto menor for o nível de eficiência apercebido pelos investidores. Foi como que apostando numa extrapolação teórica deste paradoxo que muitas medidas orçamentais foram sendo tomadas: os contribuintes iriam eficientemente na onda porque não percebiam o que estaria realmente por detrás da coisa. Alguma ignorância era assim uma variável importante do modelo. Mas aparentemente incorporamos um tal nível de ignorância que faz dar a volta aos ponteiros do modelo e demos cabo dele. Nem os paradoxos resistem.

Windianápolis


Who has seen the wind?
Neither I nor you:
But when the leaves hang trembling,
The wind is passing through.

Who has seen the wind?
Neither you nor I:
But when the trees bow down their heads,
The wind is passing by.

Christina Rossetti, in «Who Has Seen the Wind?», The Complete Poems (Penguin Classics, 1993, p. 143)

Ó da Guarda


Face às várias espirais e cornucópias do momento (recessiva, depressiva e sodomitiva) o Reino dos Céus teve de reavaliar a sua ancestral estratégia para os Anjos da Guarda. Foi assim devidamente empossada pelos Arcanjos Miguel e Gabriel uma Comissão para a Análise do Papel do Anjo da Guarda Durante o Resgaste e elaborado o respectivo livro branco.
Deste documento irei destacar alguns excertos das conclusões que, dalguma forma, poderão dar uma iluminação a todos nós, designadamente no nosso posicionamento face ao oculto, o desconhecido, e a todos os modelos econométricos em geral, com ou sem projecção arenoso-ocular.

 « (...) Esta Comissão teve o cuidado de escrutinar os conteúdos programáticos vigentes desde as aparições em Fátima, por forma a calibrar o modelo de Anjo da Guarda de Portugal face aos novos dados, quer sejam eles o grau de desprezo pelo transcendente,  quer o nível oscilante de penetração do cagaço cósmico nas consciências mais materialistas, quer mesmo o facto de já não existirem azinheiras suficientes para a quantidade de contribuintes que sonham com a pastorícia mística ou outras (...)

(...) A existência dum único modelo de simulação de Anjos da Guarda para Portugal revela-se ineficiente pois  parece haver uma movimento axífugo nas ânsias mais elementares da alma portuguesa que apresenta uma notória pendularidade entre: vontade de espetar um ferro em brasa pelo cú de todo e qualquer governante e assimilado, ou pura e simplesmente desprezá-los e viver cada um sua vidinha como se nem sequer o medina carreira existisse. (...)

(...) O cluster dos Anjos da Guarda tem vindo a perder peso junto do Grande Senado do Criador em detrimento dos sectores dos Santos Protectores, das Senhoras das Ladeiras, do Imaculado Chip do Tablet, e até inclusive, nos últimos tempos, para a própria Fundação dos Beatos Graxistas (...)

(...) Um Anjo da Guarda em ambiente de austeridade & saque orçamental pode assumir diversas formas de posicionamento: a) neutralidade orçamental: o Anjo não influencia o comportamento fiscal do seu protegido e apenas o ajuda a suportar o fardo da colecta; b) racionalidade orçamental: o Anjo dá indicações ao respectivo penitente para qual catacumba fiscal se deve pirar face a cada imposto específico; c) ilusionismo orçamental: o Anjo com o seu diáfano manto cobre o pecador e garante-lhe uma invisibilidade fiscal de cartola (...)

(...) O Anjo da Guarda de Portugal deve providenciar a adesão ao pecado único. Assim, um português só deve considerar que está em pecado por única falta fiscal, podendo dar-se o cúmulo penitencial logo após a primeira multa de estacionamento não paga (...)

(...) Para que um país como Portugal se possa defender devidamente de: secas, reality shows, coligações politicas em fase de broche assistido, politólogos, rotundas múltiplas e todo um rodízio de Altas Autoridades , o Anjo da Guarda deverá fazer a geminação com um buda em faiança para o que der e vier (...)

(...) Os Anjos da Guarda de todos e quaiquer países deverão ter um representante nos modelos econométricos que estejam a ser utilizados nos respectivos ministérios das finanças e bancos centrais; estes seus avatares estatísticos, para além de terem de apresentar um relatório discriminado por cada movimento brusco que seja detectado nas derivadas das equações, deverão imediatamente provocar um curto circuito nos postos de transformação do ministério (...)

(...) Sempre que estejam a ponto de ser introduzidas medidas parvas, quer por imposição de troikas, de casais de holdings em swing fiscal, ou mesmo de grupos de sueca, quer mesmo por simples imbecilidade endógena, o Anjo da Guarda deve providenciar um fenómeno de natureza tsunâmica que, para além de colocar vários ministros isolados em cima dum telhado de Alfama, de caminho enfie o crespo numa fresta da muralha fernandina ou definitivamente a entrevistar baratas na dispensa do capitólio. (...)»