Máquina de fazer Rogérios e Evelinos (V)

Há tempos tinha perdido umas preciosas horas a debulhar uma maçaroca inconsequente chamada 'Corpos Vis' de Evelyn Waugh, mas esse acto-falho de leitura podia estar já perfeita e decentemente resolvido no meu contentor de asneiras (onde teria vasta e óptima companhia), não fora dar de caras com esta hemodiálise crítica no Expresso:

« a narrativa de "Corpos Vis" é fragmentária não porque Waugh viu a realidade como fragmentária mas porque detectou na fragmentação deliberada o melhor transporte formal para as suas intenções miméticas» escrita pela vedeta blógsmica aparentemente pseudonomizada como Rogério Casanova.

[fulminado por uma vertigem incontrolável de morbidez antropológica agarro no despojo de posts em livro do mesmo autor - não se preocupem, eu estou habituado a ser por momentos extraordinariamente volúvel - e constato (na contracapa) que podemos estar perante uma «escrita rara em portugal, culta, atrevida, solta, comovida e cheia de ironia»

Se bem que o triângulo atrevido-solto-comovido esteja destinado a transformar trapézios de pálida banalidade em vistosas pirâmides de rara e culta ironia, como entretanto não happenizou nada de entusiasmante na minha vida nos transactos 30 minutos, forcei a minha débil memória a redebruçar-se sobre a última vez que contactei com uma realidade que trouxesse subjacente esse supracitado tripé de devastadora originalidade, e ela ( a memória) encontrou Noémia, uma moça que nos passados anos 80 distribuía prazeres avulsos na zona do Conde Redondo ao preço de um 'Pastoral Portuguesa' por cada, digamos, acto de fellatiedade atrevida-solta-comovida - ao câmbio da data, não que eu tenha pago pois era praticamente eunuco e treinava para muitos anos depois me tornar um romântico tardio.]

Voltando à drenagem crítica de Casanova, Rogério, reparo imediatamente que poderíamos deleitosamente aplicar a mesma receita à fórmula de jogo dos lagartos nos últimos 20 anos, o que daria algo do género: a forma de jogar do sporting é fragmentária como o caralho, não porque os treinadores tenham visto o jogo como fragmentário como o caralho, mas porque detectaram na fragmentação deliberada como o caralho, o melhor transporte formal para as suas intenções miméticas do caralho. (eu tentei sem o caralho, mas resulta pior, acreditem, e desculpem se estiver ao vosso alcance). Ora a principal conclusão que retiro é esta: a partir de hoje todos as minhas intenções miméticas vão ser transportadas formalmente através dum fragmentarismo deliberado.

Refiro desde já, e antes que me venha a esquecer, que a minha última intenção mimética foi quando sorri como o robert redford - já tinha tentado o jude law - para a minha vizinha de cima (que não sei se já vos tinha dito ela é igual à Sharapova) e efectivamente ela me respondeu de forma fragmentária com um enigmático 'boa-tarde', e eu digo enigmático pois como sabemos boa tarde assim dito de forma deliberadamente fragmentária pode significar muita coisa, desde apenas um simples e pachola boa tarde até a um devastadoramente atrevido, solto & comovido boa tarde.

Queria, no entanto, chamar a vossa especial atenção - que a têm generosa, eu sei - para o facto de que: o fragmentarismo deliberado é usado em espectro largo na arte e ciência há bastante tempo, desde o bacalhau à brás até ao tracejado a separar as folhas de papel higiénico ou as faixas de rodagem, e também aqui não apareceu porque o bacalhau fosse uma realidade fragmentária, mas sim porque um cozinheiro sem escrúpulos se lembrou desse processo para o transportar formal e materialmente pela nossa goela abaixo mimetizando mais delicadamente enzimas e bactérias pelos vários apeadeiros.

Sendo verdade que o Evelyn tentou 'etnografar humoristicamente o exotismo das tribos' britânicas no entre-guerras, não é menos verdade que outros autores abordaram um não menos interessante exotismo, mas no entre-pernas e, seja de forma fragmentária seja por atacado, foram logrando transportes formais bastante mais interessantes, provocando vagas de minetismo, perdão mimetismo, que não mereceram tão boa crítica, nem conseguiram ser apelidados de comédia de costumes pelos rogérios em waugha.

Peço especial compreensão para o caso de poder ter andado a fragmentar em demasia, mas o transporte formal do meu mimetismo associado à clareza tensional dos meus detalhes está a revoltar-me duma forma toda ela devastadoramente bela. Bem Hajas, leitor ausente, pela invisível, mas dedicada, companhia.

máquina de fazer gainsbourgues (IV)

'Beck fê-la sentir-se mais confiante com a sua voz também. «éramos só nós dois em estúdio, com um engenheiro de som, e isso facilitou a intimidade e a entrega» diz-nos Belanciano, - o victor e não o arroz, - no Ipsilon, num especial gainsbourguer charlotte, menu big-beck, com molho picante e orgasmos faciais.

eu bem me parecia que devia ter ido para engenheiro de som; uma profissão, diz-nos agora a nossa charlotte, que em certas condições de temperatura e humidade: pode «facilitar a intimidade e a entrega». Esqueçam a capacidade afrodisíaca dos perfumes, esqueçam o paleio marialva, esqueçam as carícias anestesiantes, esqueçam as massagens, esqueçam os banhos de chocolate quente, esqueçam as cenas de ciúmes, esqueçam tudo o que vos lavou o cérebro: apenas a perspectiva dum som mágico e patrocinado pela ordem dos engenheiros facilitadores será suficiente para obtermos o elixir que nos soltará a existência deste devastado e penitencial degredo terrestre: intimidade & entrega . A partir de agora também só escreverei posts em ambientes que facilitem a intimidade e a entrega (incluindo de pizzas), mas que de preferência também propiciem pés quentes, pois sinto uma forte incapacidade em me entregar a quem quer que seja apresentando problemas de irrigação nas extremidades. Informo por isso que neste momento, e na impossibilidade moral de ter comigo uma engenheira de som que conheci na pizzaria em frente (deduzo isso porque exercitava sustenidos com wonderbras) estou a utilizar o computador já em ipad style, pois a covinha que de há uns mesitos para cá faz a minha zona diafragmal ali no quarteirão do dorso a tal mo permite, e cada um pratica a intimidade e a entrega com o que pode e tem mais à mão. Não sei se me sentem também mais confiante, eu diria que sim, mas só desde que enfiei mais um par de meias de lã e introduzi o meu hemisfério sul dentro dum déficit de parede denominado lareira. Apesar de ainda não ter ouvido as músicas, estou de acordo com o Beck, entre um engenheiro de som e a charlotte também teria praticado a intimidade e a entrega com esta última, deixando o primeiro a tratar dos arranjos e da problemática do trifásico. Aguardo assim um disco na sua essência ciclópico: devastador na beleza das misturas, de tensões inteligentemente resolvidas na clareza dos detalhes, e que me permita continuar a minha fase de revolta interior onde pontificam, aqui e acolá, momentos de grande intimidade e entrega.

Máquina de fazer salingueres (III)

Como sabemos, corre de badajoz para cá um concurso de construções na areia para o melhor busto com elogio fúnebre a salinger (a par de outro para acertar no rating da república em 2010 mas sem busto). Dada a circunstância do pessoal poder perfeitamente despachar o serviço de panegiretas dizendo que, ao defunto - que Deus tenha - lhe bastou escrever apenas um livro conhecido, mais a cena macaca do bananafish, tem sido um concurso monótono, tal como se fossemos ao casino e estivesse toda a gente a apostar no 23. No entanto, há sempre um adamastor que se destaca nos intervalos do musgo e desta vez encontrei um brinde no FJViegas, que reza assim:

«Salinger, ao contrário dos políticos, sabia que as revoluções não se fazem com revolucionários (geralmente profissionais) mas com revoltados. É esse o segredo dos autores que mudaram a vida de milhões de leitores»

Queria afirmar, com a solenidade que me permite a situação de estar a sentir uma apertada necessidade de passar a usar calças nº 46, que, a partir de hoje: sou oficialmente um revoltado - e não um revoltado qualquer, mas sim um revoltado profissional. Preparem-se, milhões aí desse lado: vou mudar a vossa vida até agora despovoada de verdadeiras emoções, e duma forma que nem a escova de dentes irá reconhecer a vossa gengiva. Devastar-vos-ei com a clareza tensa do meu discurso, numa epidurálica simbiose de beleza e intensidade que fará qualquer tocador de pífaro passar directamente para a tuba sem passar pelo trombone. Penso que inclusive já deveis estar a sentir, se fordes pessoas sensíveis, qualquer coisita pela espinha acima (ou abaixo, dependerá da hormona que esteja de plantão). Infelizmente o meu segredo foi descoberto - estava preparado para me revoltar apenas quando fizesse as próximas análises à próstata - e assim não posso adiar mais para soltar a revolta que transporto encarcerada no meu buliçoso e cada vez mais roliço ser. Geralmente eu quando revolto assim muito de repente - o homem morreu sem avisar e o fjviegas não soube guardar um segredo - dá-me sede e por isso tenho de fazer umas pausas para dar uma golfada, não estranhem e dêem um desconto pois costumo não ser tão presciente a escrever quando gargarejo - eu nunca engulo, registe-se. Ia então dizendo-vos que a minha revolta poderá abrir-vos horizontes que antes nem suspeitáveis, ainda há pouco, e nem estava completamente revoltado, a minha vizinha de baixo - que é parecida com uma moça que vaporiza revoltosos caracóis nuns anúncios de shampoo - me convidou para um chá verde com gengibre, julgo mesmo que foi assim que o mao começou a grande caminhada, nunca se esqueçam que o acto mais revolucionário é a amizade, sobretudo se vier acompanhada de bastante clareza nos detalhes. Sinto que já estou a mudar a vossa vida e ainda nem fiz uma opa à cimpor. Mas é preciso revoltar em grande para que tudo não revolte ao mesmo.

máquina de fazer beethovenes com gardineres (II)

«é antes através da clareza dos detalhes e da inteligente gestão das tensões do discurso que a grandeza do seu génio mais se revela» diz-nos Cristina Fernandes hoje no Público a propósito de gardiner e a sinfónica de londres à volta dum beethoven.

tenho de confessar que só conheço esse tal de beethoven de ouvir falar e dum presente que recebi no último Natal. No entanto, se tivesse sabido há mais tempo dessa hipótese de juntar 'clareza de detalhes' com 'inteligente gestão de tensões', hoje seria um homem muito mais completo e com fortes possibilidades de transbordar felicidade. Até ao presente para mim 'detalhe' é sinónimo de confusão e 'tensão' sinónimo de fertilizante para a estupidez. Assim, esta receita de beethoven avec gardiner fazia-me o pleno na resolução do maior problema que assola a declinação do meu actual frágil existir: 'tensão nos detalhes'. Ou seja, a vida por grosso afigura-se-me até apresentável e calma, mas se descermos ao retalhado patamar dos detalhes pouco se aproveita: entramos no maravilhoso mundo da devastadora tensão. Como tenho resolvido a coisa? (sem a milagrosa mistura de gardiner com beethoven, claro): tecendo minuciosos rodriguinhos de merda no seu estado psicoólico. Ora fodendo o juízo de quem teve o infortúnio ou mau cálculo de tropeçar comigo no caminho (Deus também cochicha um pouco), ora descobrindo escombros haitianos onde estão apenas douradas areias dominicanas. Estou numa fase devastadoramente bela para quem me queira como inspiração para escrever uma saga de psicopatas com jeito para desenhar cornucópias. Não me compreendem, não, não me compreendem, mas se me compreendessem ainda seria pior.

a máquina de fazer valter hugos mães (I)

«Como perceberá o leitor, ao deparar neste livro com algumas das páginas mais devastadoramente belas da ficção portuguesa recente» jms, em bibliotecário de babel e expresso


O belo que aprecio mais é o devastadoramente belo. Existe o belo apenas arrasador, mas não se compara ao devastador, o devastador como que se nos interpela pelas entranhas e já vi um ou outro belo a devastar-nos até ao pâncreas, inclusive fazem ecografias a pâncreas devastados pelo belo, se bem que a médis não comparticipa em zonas acima da bexiga. A última vez que tinha ficado indeciso no que concerne a um belo, sem saber se era devastador ou apenas arrasador, foi quando li aquele livro de uma fera na selva do henry james por recomendação da inês pedrosa, que como sabemos é uma pessoa completamente refém do belo, esteja ele no formato devastador ou apenas circunscrito ao modelo arrasador. Se no caso do belo literário a pendularidade entre devastação ou arrasamento pode ser determinante para a caracterização da obra em análise (apesar de poder parecer de mau gosto nos dias que correm, os críticos poderiam estabelecer uma escala para o tipo de desgaste que o belo pode provocar no território simbólico do belo do leitor) noutros tipos de belos já a classificativa peri-telúrica poderá ser ela própria devastadora. Se analisarmos o peculiar fenómeno da beleza anatómica feminina, a título de exemplo, já vejo com piores expectativas a sua utilização, seja pelo alarme rodoviário que provocaria um devastadoramente belo par de mamas, seja pelo inusitado risco hipnótico dum devastadoramente belo par de pestanas. Mas, sem querer tornar este meu testemunho devastadoramente aborrecido, coisa que nem sempre consigo, o que me deixa, isso sim, deveras arrasado (não chega a devastar) é escrever sempre desvastador em vez de devastador - ó mãe, quão miserável me sinto por não descobrir na minha sublime interioridade o meu lado de valter hugo, perdido certamente nas mais recônditas, inóspitas e devastadas zonas da minha aborrecida, mas bela, helás, psique.

queria apenas chamar a atenção de vexas

que este espaço preveligeado, vou tentar outra vez, previligiado, esqueçam, dos media, para além de ser o único espaço que voltou a falar de sofia aparicio (fechando assim o dossier anos 90) é também praticamente o único que ainda não se pronunciou sobre a figura ímpar de pedro passos coelho (*). Julgo que a mundo se pode mesmo dividir entre aqueles que sentem urgência em se debruçar sobre o fenómeno passos coelho e os que conseguem viver sem essa vertigem, se bem que, informam os sites de referência, mickael jackson destronou floribela nas pesquisas online de 2009, denotando que o gosto nacional se deslocou das mamas grandes para os narizes afilados, mas não dando boas indicações para a tendência de 2010. Entretanto envelheço.

(*) queria apenas salientar que depois do fenómeno sócrates abriu-se na sociedade nacional a hipótese do 'agora tudo é possivel' que, como sabemos, já deu novos mundos ao mundo, o micro-ondas, a arca de noé, e inclusive o turbo intercooler.

adeus sofia aparício

Hoje o dicionário não ilustrado volta à casa de partida com uma breve alusão às mitologias caseiras de passagem de década (entradas 1330 a 1337):

Cristiano Ronaldo - todas as estrelas passam pelo seu momento cueca, e é assim que Ronaldo entra na década, revelando que a tanga aparecerá sempre quando o país precise dela. Não tendo as mamas da Floribela apresentado pergaminhos suficientes para elevar o gene nacional ao grande altar etnográfico, a peitaça e o rabo de Ronaldo revelam-se os activos de refúgio para o imaginário nacional.

Sócrates - mito absolutamente polissémico, desde pinóquio até turbo-engenheiro, passando por desenhador de marquises - sem esquecer a votação para um dos homens mais bem vestidos all over the world. Portugal soube construir a figura ímpar do impossível-possível, ou melhor, do batermos no fundo fazendo-nos pensar que era o tecto.

Gatos fedorentos - depois do Solnado enterrado e do Herman oxigenado, o espaço arlequínico foi ocupado agora pelos novos bobos do regime (Manuel Pinho desistiu a meio da faena). O fedor ganhou um lugar de honra ao lado dos outros 3 f's para distrair o povo.

Retorno absoluto - cansada da falência do eterno retorno, a classe finansófica nacional inventou o 'retorno absoluto', mais uma vez lembrando a verdade bíblica: és pó e pó hás de tornar, e deixando a poupança nacional entregue aos lipoaspiradores.

Magalhães - depois de devidamente enlatada e globalizada a sardinha demos um salto, queimámos a etapa intermédia da revolução do sobreiro e do enchido e avançámos directamente para a fusão entre a microsoft e a playmobil, demonstrando que Portugal não precisa de barbies para conquistar o mundo.

'Aqui del gay ' - quase tudo está escrito: / já foi o primo esquisito, / será sempre o paneleiro, / só lhe falta um santo padroeiro.

Padre Tolentino - com o afastamento do padre Borga e do frei Melícias, a lacuna foi preenchida com a descoberta da nova estrela da fé-poema. Desde a padeira de Aljubarrota que ninguém nos fazia ver que por detrás duma doutrina de papo-seco está sempre uma fé de croissant.

Nossa Senhora de Fátima - após inúmeras tentativas para descobrir uma mulher que Portugal pudesse oferecer ao mundo como um novo cabo da boa esperança, falhadas então as hipóteses com merche romero, manuel goucha e soraia chaves, o nosso valor feminino mais seguro (isto vai ficar com um ar um pouco blasfemóide...) continua a ser a Senhora que apareceu na Cova de Iria. (Sai meio litro de água benta para limpar isto)

agora que o ponto G fugiu para parte incerta

É razoável aceitar - piedosamente compreender, até - que num país em que a tradição católica esteve mais enraizada e abrangendo todas as classes e feitios sociais, as reacções a valores que são mais vulgarmente associados à, soit disant, base de princípios da Igreja (instituição de índole opressora e peri-esclavagista, já se sabe), sejam mais violentas e inclusivamente grosseiras. É por isso que à pala de mudanças encalhadas nos ditos processos de modernização e actualização de mentalidades (a necessidade de vivermos actualizados é um complexo como outro qualquer) se vem assistindo nalgumas franjas (fica sempre bem dizer franjas) da sociedade portuguesa a um nível de alarvidade intelectual (para já não dizer higiética) que no wonderful world of the portuguese blogs se pode sintetizar no espectáculo de degradação ideológica apresentado por uma coisa chamada jugular. Assim, qualquer alminha bem ou mal intencionada que quiser em poucos minutos encontrar, sem muita despesa, uma montra que resuma a colecção dos maiores gargarejos do pensamento moderno, uma espécie de fio dental do pensamento, é fácil e barato: vai lá passar os olhos por aquela coisa em formato de blog. E ainda tem um bónus: se bem que ligeiramente atreitos à pirronice (uma das suas poucas virtudes metodológicas, registe-se) estão sempre em cima (e ao lado e atrás, sem restrições de orientação posicional, claro) do acontecimento, reagem à primeira e esvaziam toda a sapiência em surtos de calinada, numa verdadeira pirotecnia de ejugulação precoce. A receita é sempre a mesma: atirar a tudo o que pareça ter uma cruzinha a mexer, uma espécie de tirocínio de caça às bruxas, mas com as bruxas a caçar. Já vi galinheiros mais apresentáveis, mas aconselho a visita regular, desde que me prometam que depois não deixam fotografar as vossas carinhas, como à outra moça. O êxtase espreita-nos onde menos se espera.

feelings behind the kisses

Filipe Gusmão era um beijador. Não daqueles beijadores exibicionistas que sacam um beijo como um autógrafo, não, Filipe começou apenas a beijar por amor. Eram beijos desprendidos de qualquer intuito ou capricho da curiosidade e apenas regidos pelas leis do desejo e da ternura, puros escravos do sentimento. No entanto, com o decorrer do tempo, Filipe começou a detectar que ao beijar conseguia descobrir o que se passava no coração da mulher beijada. Dir-se-ia que tinha um dom, uma inexplicável capacidade de absorver na sua mente o banquete informativo que as papilas lhe preparavam. Ficou naquele estado entre o entusiasmo nervoso e a perplexidade preocupada, tão típico das descobertas da psicosomatização, mas concluiu que afinal estava ali um filão para explorar.
Depois de ter perdido todas as namoradas ao lhes descobrir os sentimentos mais íntimos (muitos deles não abonatórios para a sua estimada imagem pessoal) decidiu que teria de alargar o observatório (linguatório ou labiatório, no caso) a um universo de miúdas (restringiu-se a miúdas depois de ter apanhado um estivador de Leixões que queria saber porque sofreria de rejeição crónica com crises de hemorroidal associado) com as quais não fosse necessário desenvolver nenhum relacionamento de índole emocional, denominando a especialidade de ginelabiologia (no seu cartão podia ler-se ' nem precisa de descruzar as pernas', numa alusão competitiva ao acto simbólico do seu concorrente ginecológico). Abriu consultório junto de um amigo que fazia hipnose para resolver problemas de aftas e começou a beijar profissionalmente como se fosse, digamos, um centro de diagnóstico psicoterapêutico.
Será importante dizer que o Prof. Gusmão (como gostava de ser tratado) tinha granjeado uma fama muito significativa quando descobrira que a sua última namorada (uma famosa artista beijadora de telenovela) estava afinal apaixonada por um astronauta que lhe tinha prometido um colar com pedrinhas azuis do mar da tranquilidade, e isso apenas porque ela esticava um bocadinho o pescoço nas noites de lua cheia fazendo simultaneamente movimentos caleidoscópicos com os olhinhos; ou seja, para Filipe Gusmão beijar era um acto técnico que envolvia muito mais do que apenas aquele pequeno mundo que circunvalava dentro do céu da boca - que para ele era um verdadeiro poço da morte onde se jogavam todas as forças da existência.
Rapidamente foi criando uma clientela ávida e fiel, sustentada numa capacidade de diagnóstico que se mostrava infalível e que conseguia descortinar desde inseguranças amorosas a úlceras de estômago passando por traições violentas. Filipe Gusmão conseguia, como nunca ninguém se tinha mostrado capaz, fazer uma leitura perfeita da forma de todos os elementos do beijo se articularem entre si, nunca deixando nenhum pormenor ao acaso, fosse ele o local de abordagem do primeiro contacto labial fosse ele a forma repentina ou arrastada de terminar o movimento técnico. Texturas, formas de arqueamento muscular, respiração de acompanhamento, tudo fornecia informação imprescindível, como num verdadeiro manual de mecânica .
Claro que Filipe era muito escrupuloso nos seus diagnósticos e não foram raras as vezes em que as suas clientes se incomodaram, nem raras foram as vezes que os homens que as acompanhavam torceram o nariz aos seus métodos que, convenhamos, heterodoxizavam com a prática comum, mas o prof. Gusmão estava completamente imbuído pela força do seu dom (que com o tempo se foi tornando mesmo num inesgotável manancial de saber), e era absolutamente imune às hesitações, ou mesmo irritações, da clientela. Beijava com convicção e cobrava forte.
Não será de estranhar que Filipe Gusmão nunca mais tenha conseguido manter um relacionamento emocional decente com ninguém, tendo mesmo chegado a tentar um namoro sem beijos, o que em pouco tempo foi, naturalmente, interpretado como uma perversão sexual negativa por parte da sua parceira; mas «será que aos ginecologistas também lhes está vedado o desfrute do belo do apalpão ?» perguntava desalentado Filipe ao seu colega e vizinho hipnotizador de aftas. Mas Filipe tinha um dom que o perseguia, era mais que uma mera competência técnica: o céu da boca era a sua bola de cristal, a língua o seu estetoscópio, o lábio o seu raio-X, e a sua mãozinha a agarrar o cabelo pela nuca da moças parecia um autêntico divã.
Contudo, certo dia, Filipe, rico e famoso, acabou por se afastar. Bochechou com tantum verde até à exaustão e até ao anestesiamento da boca e convidou uma miúda de lábios grossos para jantar. Deixou-se então levar pelos seus beijos saboreando uma total ausência de sensações parapsicológicas, parecia um beijador normal, capaz de manter uma cara estúpida mas feliz, capaz de viver a insegurança de não saber o que estava por detrás daquele beijo. Tinha descoberto o prazer da ignorância, o único condimento verdadeiramente obrigatório para qualquer emoção decente e duradoira.

anjinhos papudos

Peter Paul Rubens (1577-1640). Christ, St. John the Baptist & Two Angels. Wilton House, Wiltshire, Salisbury, England (Óleo s/ tela)

Université Cascais-Hormone

Blogueiro que não comente a exposição de orgasmos da Profª Drª Clara Pinto Correia devia perder a licença de bloga. Trata-se evidentemente do acto cultural mais importante de arranque de década e é de péssimo tom que se passe ao seu lado sem uma palavra, um gemido, um suave arfar, seja ele de apreço, de crítica, de consternação, de excitação, ou mesmo um reflexo onomatopeico dum simples «cariño m'encantas»; no entanto, apesar de protagonizar aquele que é um dos momentos mais altos da orgasmática nacional, - para utilizar o mesmo qualificativo da célebre expressão de Pulido Valente sobre o seu (dela) Adeus Princesa - não foi suficiente para que, ao googlarmos 'clara' esta, a pinto correia em apreço, não se veja ultrapassada pela 'ferreira alves' (que orgasmizará certamente muito pior) ou mesmo pela 'de sousa' (que já orgasmiza no seu estado normal).
A primeira vez que vi orgasmos fotografados foi, já há uns bons anos, duma chinoca (acho que era japonesa, mas fica muito mais giro dizer chinoca) no MMK de Frankfurt, mas vinham acompanhados de planos, digamos, de carnalidade mais explícita, o que criava um ambiente curioso nos, despreconceituados, claro!, espectadores. Uma cona (também se diz vagina) é algo que dá imensa piada, já se sabe, e toda a espécie de sorrisos se podiam observar na assistência (tirando os franceses que, já se sabe também, apresentavam um ar compenetrado - apropriada palavra para a situação, diga-se); Deus proporcionou (-me) que não houvesse espelhos e assim não posso elaborar sobre o meu próprio semblante. Mas estava longe da pátria mãe, era fácil andar a observar vulvas (também se pode dizer assim) do oriente sem que ninguém conhecido me apanhasse de olhar embevecido, inclusivamente terno - também conhecido como a ternura da púbis.
Mas orgasmos de clara em cascais (e não em castelo) será algo que exigirá outros preparos de camuflagem (barba postiça obrigatória e gravata com barquinhos), dado que também terei forçosamente de tentar gravar todos os comentários que conseguir (numa espécie de semi-voyeurismo de ouvido) apanhar, venham eles de mulheres a indagarem discretamente «será que eu também faço esta cara, querido?», ou homens a refilarem olimpicamente « se fizesses esta cara eu amolecia em três tempos», ou mesmo um ou outro mais atrevido do género «e agora estariam enfiar-lhe o dedinho onde?», sempre todos acompanhados dos obrigatórios e intermitentes «credo!»'s.
Estou esperançado numa boa (e envolventemente didáctica) exposição, irei atentar principalmente na capacidade de revirar olhos de Clara, (não sei se também terá planos com o retorcimento dos dedos dos pés), e nas erupções de gengiva (a gengiva é muito sensível ao êxtase) e, sendo possível, comprarei um postal. Para deixar aos netos, óbvio.
Nestes dias de emancipações o orgasmo português emancipou-se também, hasteou a bandeira da sua claravela (belo trocadilho en passant, hem), saiu definitivamente da idade da pedra e entrou (alegremente) na idade do haxe.
Da próxima vez que comprar caras de bacalhau vou ser mais exigente.

«nunca voltarei, toda a Rússia que preciso está dentro de mim» (*)

Mesmo para qualquer pessoa crente e que pareça lidar com o absoluto como quem come batata frita existe uma enorme necessidade (e importância) de hierarquizar os ditos 'valores fundamentais da fé'. Desde o contacto mais básico com a doutrina (sem uma doutrina a fé não passa dum pneu à deriva no oceano: serve para flutuar mas não sabemos para onde nos leva) que se deduz facilmente que entre as palhinhas ou a vaquinha do presépio e a coroação de espinhos ou uma descida do espírito santo em línguas de fogo, não pesa tudo o mesmo na balança da fé. Ou seja, o cristão, o católico, desde que se conhece como tal que teve de se habituar a balançar, a sopesar os seus valores: ele é o 'atire a primeira pedra', ele é o 'filho pródigo', ele é o 'dar a outra face', ele é o 'dar a césar o que é de césar', são infindáveis as situações que demonstram a necessidade que tem o crente em Deus de estar constantemente a dar jeitinhos no fiel da balança para manter a coisa equilibrada sem dar muita bandeira ao fiscal. Felizmente, e sintomaticamente, nenhum dos evangelistas apresentou a doutrina revelada numa espécie de ranking moral que nos obrigasse ideologicamente a uma ordenação de deveres ou valores (tirando o primordial - mas não absolutamente evidente - 'amar a Deus acima de todas coisas'), e ficou inaugurada assim a prática revolucionária do 'endosso moral', ou seja, uma variante apostólica do clássico: chacun se desenmerde. Por isso, apesar das comichões que possa causar, será sempre uma inescapável verdade de fé o facto de Deus estar dentro de nós e falar connosco. Daí o ritual quase de conotações espiritistas que emprenha toda a alma cristã: falar com Deus. Será que todo o Deus que precisamos estará dentro de nós? Todo o crente tem um apelo para construir o seu panteísmo a la carte.

(*) frase de V. Nabokov, em entrevista

ornadasmo

- nada.
- nada, como?
- rigorosamente nada!
- mas nada, em que sentido, nada, o quê?
- nada no sentido em que nada é absolutamente nada
- ok, mas não entendo onde queres chegar, nada porquê?
- nada porque nada, ora porra, o que é que queres que eu te diga mais sobre nada!?
- porque nada assim sem mais nada não significa nada, e nada precisa sempre de mais alguma coisa
- mas o meu nada é um nada que se basta a si próprio porque é um nada nada nada, como não entendes isto?
- se queres mesmo que eu entenda o teu nada, que até é um triplo nada, o que já é melhor que nada, preciso que me digas um tudo nada mais.
- tu também te intrigas com tudo, o meu nada é um simples nada, não é nada que te possa apoquentar e muito menos prejudicar, é um nada de nada.
- o nada preocupa muito mais do que apenas alguma coisa, o nada só aparece quando alguma coisa aconteceu, nada aparece por acaso, muito menos o próprio nada
- mas o meu nada é um nada na sua essência, não é um nada que venha depois de alguma coisa, nem precise de nada para existir, sustenta-se a si próprio, não há nada que se lhe compare, nem ampare
- agora intrigaste-me definitivamente com esse teu nada; parece que é um nada muito especial, não conheço nada assim, deves estar a confundir esse nada com alguma outra coisa, mesmo que possa ser uma coisa de nada
- é um simples nada, repito-te; nada de mais, nada de menos, não compliques, não queiras ver coisas onde não há nada, bolas! é um nada sem importância nenhuma!
- mas um nada sem importância é sempre alguma coisa! É típico desses nadas esconderem sempre qualquer coisa
- mas como é que um nada pode esconder o que seja? Só alguma coisa é que podia esconder um nada!
- é impressionante como consegues estar a falar comigo sem dizer praticamente nada!
- mas, de facto, o que se passa é: nada; andas a preocupar-te por: nada.
- és embirrante mesmo quando não tens nada.
- mas qual é o teu problema afinal?
- olha, não tenho nada.
- nada, como?

agência de gayting

novo esquema de notações para casamentos:

casamento tipo BBB - homem / mulher , forçados pela convenção económico-social, cerimónia na igreja de sta isabel, sermão de 15 min do padre tolentino, copo d'água na quinta da cartuxa, bébés baptizados pelo padre seabra na igreja de azeitão ou colares.

casamento tipo BB - homem / mulher , forçados pelo comezinho interesse económico e familiar, cerimónia na igreja de alhandra, sermão de 30 min. pelo pároco de turno, copo d'água no restaurante 'os ruivos' em sta iria da azoia, baptizado opcional sem acréscimo de encargos na igreja da azambuja.

casamento tipo B - homem /mulher , forçados pela conveniência logística, cerimónia notarial e copo de água na quinta da Barreta, sermão anti-corrupção pelo ex-deputado cravinho, partos e flores oferecidos pelo cartão galp frota, i.v.g's subsidiados pelo fundo especial de catástrofes do oeste.

casamento tipo A - homem/homem , acorrentados pelo amor desinteressado, cerimónia de simbolismo clássico e copo de água na quinta do mocho, sermão pelo deputado sousa pinto, adopção de cachorros em ninhada patrocinados pelo cartão visa-união zoófila, comes e bebes no papaçorda.

casamento tipo A+ - mulher/mulher, fulminados pela delicada e sensível paixão arrebatadora, cerimónia com marcha nupcial pelo coro do bairro-alto e copo d'água na quinta do casal novo, sermão por uma sósia da camille paglia, procriações medicamente assistidas patrocinadas pelo pacote luxo do cartão pink-médis.

casamento tipo AA - homem/homem, embalados pelo amor sem barreiras, cerimónia e copo d'água no tavares, sermão sobre o simbolismo do esponsal desde os astecas aos zulus pelo antropólogo vale de almeida, adopção de crianças do sri-lanka patrocinados pela agência abreu e pelas cordoarias quintas & quintas.

casamento tipo AAA - homem/homem ou mulher/mulher, sublimados numa inebriante e sincera entrega mútua, cerimónia e copo d'água na quinta chão de lamas, sermão e coro pela srª profª drª engª ginoconstitucional isabel moreira, adopção de gatos scottish folds totalmente patrocinada pela margarina vaqueiro e pela casa de peles do cartaxo.

Dia de Reis +1

Ora a minha grande questão de índole doutrinal e parapsicológica é: qual será o momento mais certeiro para o exemplar macho da espécie humana começar a contemplar a sua decadência, esmorecimento vá, físico, vá. Ou seja, qual o momento em que isso é dalguma forma inevitável mas ao mesmo tempo, digamos, panglossicamente, saudável. Será algo com data metricamente fixada, como: os 40, os 50, (tentemos agora uma fuga para a frente), os 60; será algo que fique mais ao critério de cada um, como: a famosa meia-idade, a emancipação da prole, a indiferença da vizinha de baixo; estará mais dependente das ingratas circunstâncias, like: depois de ler os últimos livros do Roth (pelo-sim-pelo-não ofereci um a todos os meus amigos para lhes ir preparando a caminha), depois de ver um filho mais que imberbe a ultrapassar-nos numa corrida sem obstáculos, depois de mentir a primeira vez sobre o número das calças; será que está definitiva e liminarmente associado a sinais físicos, culturalmente subjectivos mas fisiologicamente inequívocos: a barriga, o cabelo, a flacidez, a (etc.); será que está associado ao aparecimento daquelas manifestações de senilidade mental mais clássicas: esquecermo-nos de onde estacionámos o carro (estaria oficialmente velho há mais de 30 anos) , esquecermo-nos dos nomes próprios e deformidades de todos os filhos da catarina de médicis (ontem), misturarmos o vasto sortido de passwords que nos acompanha (sempre). Será que é quando? Quando, companheiros (não unidos por qualquer vínculo civil ou militar com ou sem registo), quando? quando é que isso se pode e deve fazer sem dar cabo dos nervos? quando? Procuremos 'Estar bem com o nosso corpo' diz o cliché-boutade; mas ninguém está bem com o seu corpo! Nunca! O corpo é algo que sempre nos atrapalhou, principalmente a quem o usa como fonte de rendimento (ou seja, todos). Gordura, magreza, flacidez, tensão, dor, anestesiamento, aperto, folga. Uma neura. Penso que o verdadeiro momento de viragem para a decadência é quando, assim como quem não quer a coisa, se traz esse maravilhoso assunto para sítios praticamente públicos (aqui). Quando já nem recalcar é suficiente e passamos a ter de fingir pelo método da exposição, quando já tentamos o simulacro de fantasiar que um assunto não nos incomoda nadinha, tanto que até conseguimos falar dele nas calmas, em qualquer circunstância e com qualquer um, seja cara a cara, seja olhando para um ponto fixo numa esquina duma abóbada (que nem tem esquina). A fala é o maior recalcamento, ó Lacan's dum cabrão! Eu estou aqui porque estou careca, michellinico, descolorido (isso pode ser bom em dias de arco-irização do mundo), flácido (sempre mau), soprado, fodasse, eu acho que estou soprado por dentro. Talking cure, o caralho, até já me sinto mais balofo.

Lavores Masculinos

Para quem ainda não fez uma lista da década e esteja precisado de palavras e expressões chave para distribuir pelas suas obras d'eleição (dá para discos, filmes, atum em conserva, livros, jogos de consola, ou consolo, peças de teatro, pomadas e qualquer tipo de sortido de exposições temáticas) o dicionário não ilustrado inaugura o ano novo fazendo jus à sua máxima: muita parra e pouca uva. (entradas 1321 a 1329). Há que comer o bit que o diabo htmlou.

'Uma obra conceptual' - Verdadeira especiaria de qualquer lista, tornou-se uma arma de retórica obrigatória desde que o Brian Eno se lembrou de começar a verter o ruído do seu autoclismo para débitos em conta produzidos pelos copiraites. Como tem um travo demasiado intenso deve apenas ser utilizada uma vez em toda a lista, mas se por descuido pingar uma segunda vez nunca esquecer de regar também com várias aspersões de essências de 'tamanha sofisticação' ou 'abrangência tal'.

'Visionário' - É um termo de utilização canónica, que por si só consegue catalogar imaculadamente qualquer manifestação da expressividade humana que ambicione dois ou três séculos de remuneração acima do pulitzibor. No entanto, para nos salvaguardarmos das desagradáveis oscilações de câmbio nunca deveremos desprezar o efeito garantido do «perfeito», e jamais perder a oportunidade de utilizar um «subversivo», mesmo que seja nas costas da lista do vizinho.

'O mais perfeito resumo duma época' - Desde que Gibbon utilizou esta expressão para descrever o momento em que S. Pedro pisca o olho a uma cananeia em pleno Coliseu de Roma que ela (a expressão, e não a cananeia - que acabou a ladrilhar a catacumba de S. Calisto) entrou no fervilhar da grande eloquência laudatória. É essencial a utilização deste momentum laude em qualquer lista pois: a) revela uma noção do todo ; b) revela uma noção de parte. Em qualquer caso não é uma expressão que se aguente por si própria e não prescinde dum polvilhar de «brilhante's» e, se for caso, de um ou outro banho de «transcendente's».

'Nada ficou igual a partir daí' - Sendo que é imprescindível apresentar um domínio completo do fluir de modas, costumes, conceitos e gama de pantones, esta expressão tornou-se um clássico a partir do momento em que Catarina de Médicis introduziu a moda das cuecas de senhora em França. É de utilização segura e comprovada por séculos de encomiostologia criativa e, sem perder o pé nos superlativos relativos para puder pular convenientemente nos superlativos absolutos, deve permitir que se possa mexer bem em torno do cheirinho obrigatório do 'deixou uma marca indelével'.

'Universo singular' - Apesar de parecer uma caracterização demasiado pouco exigente, não deixa de enobrecer o carácter inclusivo que qualquer lista moderna deve apresentar. Desde o paneleirismo sombrio de Cheever ao encaracolamento neuronal de M. Amis que os universos singulares nos acossam a cútis como pulgas com cio e ninguém pode ficar indiferente. Apesar de poder ressequir com o abuso de figuras de estilo coloridas é aconselhável deixar a aloirar no final com um pouco de «fundamental», desde que se controle a teor de nabokovismo.

'Capaz de resistir a todas as provas do tempo' - Sendo que é uma expressão que pode combinar muito bem com os sabores da bastante gráfica : 'traçou o mapa definitivo', revela-se frequentemente como a verdadeira guarda fronteiriça entre o profissional da lista e o mero curioso. Só ao listador experimentado é permitida a sua desinibida utilização sem que lhe sejam detectados quaisquer tiques ou limitações, mas desde que ruben fonseca vendeu a sua 1254ª personagem feminina a foder alegremente mercenários de monopólio sem passar pela casa dos preliminares que se pode utilizar a expressão sem qualquer rebuço, seja a marisqueiras seja a monografias sobre os submarinos alemães da 1ª guerra.

'Dá-nos uma lição' - É a expressão que facilita ao listing-lover a introdução do elemento pedagógico na sua coreografia. Se a capacidade de aprender é uma mais valia reconhecida desde que Cleópatra sangrou das gengivas da primeira vez que chupou os ossinhos duma cabeça de coelho guisado, a capacidade de indicar onde os outros podem aprender é uma experiência mais recente, e apenas possível com o advento da inveja à condição de pecado. É, contudo, uma expressão ingrata pois pode deixar o listador a descoberto de algum deficit de assimilação mais grosseira, género «mas nem assim tu aprendeste». Nunca poderá sobreviver sem a acolitagem de purpurinas como 'sagacidade', ou, em situações de desespero, 'luminosa' ou mesmo - se o carnaval não estiver por perto - 'fulminante'.

'Nunca nada de parecido sequer foi tentado' - É crucial para qualquer lista o elemento categórico, a afirmação determinada da exclusividade que nos damos ao luxo de partilhar, seja por excesso de magnanimidade, seja por aquela bondade simples que habita em corações estilhaçados pela incompreensão ou retalhados pelo solilóquio. No caminho que se iniciou na ilusão metódica (platão), passando pela dúvida (descartes), para desaguar na confusão metódica (freud) vários foram e são os apeadeiros da singularidade que jamais devem ser esquecidos e merecem mesmo o adorno especial da dupla «inesquecível & irrepetível», tão necessária para as técnicas de decoração de listas como a diana chaves é para os anúncios da Multiópticas.

'Fixou-nos a essência' - Será imperdoável deixar em branco a capacidade de distinguir um criador que vá ao cerne. Quem nos descobre os cernes merece a nossa eterna gratidão, é inclusivamente mais decisivo do que quem fixa os cânones, pois os cernes estão para o pensamento e para a arte como os wonderbras estão para as mamas. Podemos encontrar a importância da fixação de cernes desde que Aquiles pendurou a espada na garupa do cavalo de troia para arrear uma mijita decente antes de entrar no palácio. E então se soubermos introduzir algo como um «transcendeu o género» poderemos elevar a nossa escolha ao Austerlitz das listas.