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Ó da Guarda


Face às várias espirais e cornucópias do momento (recessiva, depressiva e sodomitiva) o Reino dos Céus teve de reavaliar a sua ancestral estratégia para os Anjos da Guarda. Foi assim devidamente empossada pelos Arcanjos Miguel e Gabriel uma Comissão para a Análise do Papel do Anjo da Guarda Durante o Resgaste e elaborado o respectivo livro branco.
Deste documento irei destacar alguns excertos das conclusões que, dalguma forma, poderão dar uma iluminação a todos nós, designadamente no nosso posicionamento face ao oculto, o desconhecido, e a todos os modelos econométricos em geral, com ou sem projecção arenoso-ocular.

 « (...) Esta Comissão teve o cuidado de escrutinar os conteúdos programáticos vigentes desde as aparições em Fátima, por forma a calibrar o modelo de Anjo da Guarda de Portugal face aos novos dados, quer sejam eles o grau de desprezo pelo transcendente,  quer o nível oscilante de penetração do cagaço cósmico nas consciências mais materialistas, quer mesmo o facto de já não existirem azinheiras suficientes para a quantidade de contribuintes que sonham com a pastorícia mística ou outras (...)

(...) A existência dum único modelo de simulação de Anjos da Guarda para Portugal revela-se ineficiente pois  parece haver uma movimento axífugo nas ânsias mais elementares da alma portuguesa que apresenta uma notória pendularidade entre: vontade de espetar um ferro em brasa pelo cú de todo e qualquer governante e assimilado, ou pura e simplesmente desprezá-los e viver cada um sua vidinha como se nem sequer o medina carreira existisse. (...)

(...) O cluster dos Anjos da Guarda tem vindo a perder peso junto do Grande Senado do Criador em detrimento dos sectores dos Santos Protectores, das Senhoras das Ladeiras, do Imaculado Chip do Tablet, e até inclusive, nos últimos tempos, para a própria Fundação dos Beatos Graxistas (...)

(...) Um Anjo da Guarda em ambiente de austeridade & saque orçamental pode assumir diversas formas de posicionamento: a) neutralidade orçamental: o Anjo não influencia o comportamento fiscal do seu protegido e apenas o ajuda a suportar o fardo da colecta; b) racionalidade orçamental: o Anjo dá indicações ao respectivo penitente para qual catacumba fiscal se deve pirar face a cada imposto específico; c) ilusionismo orçamental: o Anjo com o seu diáfano manto cobre o pecador e garante-lhe uma invisibilidade fiscal de cartola (...)

(...) O Anjo da Guarda de Portugal deve providenciar a adesão ao pecado único. Assim, um português só deve considerar que está em pecado por única falta fiscal, podendo dar-se o cúmulo penitencial logo após a primeira multa de estacionamento não paga (...)

(...) Para que um país como Portugal se possa defender devidamente de: secas, reality shows, coligações politicas em fase de broche assistido, politólogos, rotundas múltiplas e todo um rodízio de Altas Autoridades , o Anjo da Guarda deverá fazer a geminação com um buda em faiança para o que der e vier (...)

(...) Os Anjos da Guarda de todos e quaiquer países deverão ter um representante nos modelos econométricos que estejam a ser utilizados nos respectivos ministérios das finanças e bancos centrais; estes seus avatares estatísticos, para além de terem de apresentar um relatório discriminado por cada movimento brusco que seja detectado nas derivadas das equações, deverão imediatamente provocar um curto circuito nos postos de transformação do ministério (...)

(...) Sempre que estejam a ponto de ser introduzidas medidas parvas, quer por imposição de troikas, de casais de holdings em swing fiscal, ou mesmo de grupos de sueca, quer mesmo por simples imbecilidade endógena, o Anjo da Guarda deve providenciar um fenómeno de natureza tsunâmica que, para além de colocar vários ministros isolados em cima dum telhado de Alfama, de caminho enfie o crespo numa fresta da muralha fernandina ou definitivamente a entrevistar baratas na dispensa do capitólio. (...)»

e para quando uma lista de anjos do ano?

Como sabemos Deus Nosso Senhor tem montado e em funcionamento um esquema tipo wikileaks desde tempos imemoriais, totalmente pensado para que, quando se realizar o Juizo Final, o lavar da roupa suja se verifique de forma ordeira, fundamentada e sem percalços relacionados com uma deficiente interpretação dos factos, ou como se diz no cânone moral, dos pensamentos, palavras, actos e omissões.

O primeiro encarregado-chefe desse departamento foi o Anjo Wilfredo Kirquegardo Leandro Kustódio que se notabilizara desde muito cedo por ter conseguido manobrar e controlar uma rebelião de bactérias no ano seguinte ao big bang. No seu curriculo contavam igualmente a erradicação definitiva do anjo AlaricoTinto por ter andado a bufar coisas maradas a um monhé chamado Maomet, fazendo-se passar pelo seu primo anjo Gabriel, e uns anos mais tarde conseguiu reunir as provas conclusivas para enfiar na solitária o anjo Hilário da Purificação que se tinha disfarçado de indulgência plenária num sonho daquele monge nervoso de seu nome Lutero. Tudo teria corrido bem ao anjo wikileaks não fosse ter sido apanhado a traficar aparições com uma virgem mártir da Alsácia que fez queixa dele por promessas não cumpridas relativas a milagres com princesas austríacas frígidas.

O Altísssimo teve então de fazer uma reestruturação deste serviço e, ao abrigo duma legislação de flexisegurança, colocou o Anjo Joaquim Roçou na chefia, acumulando com o cargo de treinador da selecção de danças de salão. Joaquim Roçou era um anjo com bastante iniciativa e ao assumir posse deu logo nas vistas, quando se fez disfarçar de bom selvagem e acabou por provocar a Revolução Francesa.

Mas Roçou revelou-se um anjo ansioso e, uns tempos depois da viragem para o século vinte, considerando que o mundo estava calmo, e a efervescência revolucionária se confinara ao panfleto e às bebidas generosas, pediu transferência para um departamento que estava a dar o seus primeiros passos (uma cena interna do Paraíso relacionada com os crimes de asa branca envolvendo alguns anjos famosos) obrigando o Criador a mais uma alteração tendo escolhido para o cargo o Ancanjo Juliano Assanhado, um rapaz da nova fornada, recém saído dum programa de novas oportunidades para anjos que tinham sido apanhados na malha do doping (com a grande depressão bastantes anjos da guarda tiveram de ficar a acompanhar 3 ou mais pessoas em simultâneo, o que levou muitos a terem de se socorrer da nandrolona).

Juliano Assanhado em poucos anos conseguiu arranjar material para 2 guerras mundiais e uma revolução comunista de bónus, não se via tal animação desde os tempos áureos de Lucifer, aliás, na portaria de Éden Celeste durante esse período fizeram-se fortunas em horas extraordinárias (por uma questão de principio estava vedada a contratação de temporários ao purgatório) para receber toda a sorte de clientela. O manancial de informação sobre os índices de CHA (Capacidade Humana para a Asneira) que foi recolhida sob o consulado de Assanhado constitui ainda hoje um património de valor incalculável (inclusive a comissão instaladora do Juízo Final já montou uma barbarioteca para poder passar uns documentários na fase de rescaldo do armagedeon enquanto o pessoal estiver nas salinhas de espera, ou a trocar de roupa para treinar o número do fim do mundo em cuecas).

Esta actividade milenar de ir retendo os segredos mais recôndidos da alma humana, designadamente as zonas limítrofes do penico onde muita da mijinha vai parar, é parte essencial do mistério da criação e é bastante claro que se Deus não tivesse entendido que a merda era um elemento chave do sistema teria deixado o esófago ligado directamente ao cu.

Neo-Escatologismo


Negacionismos, faltas de memória colectivas, materialismos dialécticos, geno-taras, enfim, a um pouco disto tudo assistiam Deus nosso Senhor e a sua corte de anjos e santos vai para uma carrada de séculos e ultimamente com coloridos cada vez mais arco-íricos. O Altíssimo olhava em seu redor esperando algum comentário mais pertinente por parte das abençoadas hostes, mas apenas descortinava S. Francisco de Assis fazendo festinhas a um gatinho, Sto Inácio de Loyola a fazer palavras cruzadas, e Sta Cecília assobiando o strangers in the night. O arcanjo S. Miguel chegou a desabafar: não me digam que foi para isto que eu andei à porrada com o cabrão do Lucifer, arriscando-me ainda a arranjar uma tendinite nas asas.

Durante séculos o anjo Balduíno tinha visto a sua hipótese teórica da reincarnação posta de lado pelo Criador, - chegando a apresentar mesmo algum ar de enfado na sua Sagrada Face - para já não dizer que era alarvemente gozado pelos outros anjos que diziam «olha olha o beduíno armado em sultão». Mas Balduíno mantivera-se persistentemente num regime de just keep ringing durante uns bons milhares de anos e agora sentia com fresca confiança que tinha chegado uma nova e grande oportunidade de voltar a dar força ao adormecido 'lóbi-da-reincarnação', para o qual já tinha angariado como adepto o anjo Ramirez, uma potestade loira especializada em reconstituição de almas de náufragos da pesca do atum (como se sabe a humidade em excesso faz mal ao espírito), e inclusivamente sacara duas ou três palavras encorajadoras dum tal de Aquino que, afinal, também era incapaz de virar costas a alguma animação teológica e achava a sua Summa já demasiado em conserva.

Balduíno resumia as suas teses da seguinte forma: se as almas em vez de virem logo para aqui ou para a churrascaria do primo Satanás passassem uma ou duas temporadas noutra vida terrena podia ser que se aperfeiçoassem mais e deixassem de dar razão à célebre frase: «com a história aprende-se que os homens não aprendem com a história». Yahvé mostrou-se pela primeira vez sensível ao tema e quis ouvir mais, tendo, no entanto, avisado logo Balduíno e Ramirez que não queria floreados com reincarnações em bicharada, lavagens d'almas, ou outras pirotecnias penitenciais; «há princípios intocáveis!», foi a Sua deixa.

Mas o lobi-da-reincarnação desta vez tinha-se preparado bem. Ramirez sacou logo de início duma arma argumentativa fortíssima dizendo «estamos a despender recursos enormes com o sistema actual do Purgatório», e nem se acanhou perante os sobrolhos franzidos da zona mais conservadora, passando a palavra a Balduíno que rematou com uma sagacidade de felino «o bem é denso e cumulativo, o mal é volátil e esporádico». Deus se estivesse na Capela Sistina ter-se-ia espreguiçado, mas preferiu fazer um ar interessado, chamando-os mais para perto e perguntando-lhes: «Quer faríeis então com os recursos do Purgatório nessa vossa modalidade?».

Balduíno sentiu então aquele fernicoque de espinha próprio dos grandes momentos e mandou avançar Stª Matilde Rebuffel que se destacara em santidade por tratar os cavalos dos regimentos napoleónicos na sua campanha italiana à base duma pomada de guelra de faneca benzida nas margens do Reno, deixando-os prontos para brilhar em qualquer hipódromo com ou sem baronesas. Sta Matilde tinha desenvolvido um sistema de reincarnações em que cada alma ia experimentando situações de vida que lhe carregavam a garupa de experiência e elasticidade, ora do lado dos mais tendencialmente oprimidos, ora do lado dos tendencialmente mais opressores. Mas Matilde começa verdadeiramente a brilhar quando tira do bolso o papelinho onde tinha desenhado todo o esquema revolucionário de gestão de carreiras reincarnadas aplicado a almas em regime de purgatório-free. Os representantes do sindicato dos guardiães do reino de todas as purgas começavam a remexer-se na cova das nuvens.


(pormenor do papelinho de Sta Matilde contendo o esquema básico das reincarnações)

O verdadeiro segredo não estava afinal apenas no mecanismo pendular de reincarnações tipo homem rico-homem pobre, mas sim nos períodos intermédios entre elas, onde cada alma como que passava por um pousio de sabática recuperação, uma unidade celestial ali entre a nave espacial e a célula de neurónio de australopiteco, podendo rever alguns detalhes sobre as melhores técnicas de utilização de livre arbítrio sob condições hormonal e financeiramente adversas. Sendo certo que cada alma desconheceria sempre por completo os contornos da nova encarnação, este sistema permitiria, segundo o lobi-da-reincarnação, uma transição controlada entre os vários degredos terrestres, naquilo que os actuais representantes da espécie dependente de antibióticos designam pós-pós-pós-modernamente por sistema auto-sustentado.

Foi nesta altura que o Anjo Veloso (especializado em síncopes súbitas por intoxicação alimentar) e São Grunevaldo (conhecido por ir às amoras com São Bento), os dois chefes do sindicato do Purgatório, temendo pelo destino da sua corporação ancestral, se chegaram à frente e reclamaram «como podemos estar a dar antena a estes arrivistas lunáticos sem quaisquer provas dadas no exigentíssimo project management d'almas, quando é evidente que isto não é trabalho para maus desenhadores, e viver não é uma psicoterapia». Sta Matilde deu um passo em frente e disse que então ainda tinha algo de importante a dizer. Deus franziu a sua Sereníssima Face.

«O mundo vive enfatuado num progresso com presuntos de barro. A história consome a história, a treva consome a luz, o velho consome o novo. O homem queima oportunidades numa braseira de esquecimento. A invenção do futuro não está a compensar o desgaste do passado. É preciso uma nova via de preparação de almas, a penitência purga mas pode não salvar. Há que saber fazer uma pausa quando não é a meta que define a vitória».

Sururu montado nas fraldas da last frontier das galáctias. Balduíno pensava que tinha marcado pontos, mas o lobi-da-purga tinha muito peso. São Grunevaldo pega na palavra e não é de rodeios: «o homem tem todas as oportunidades inscritas na sua alma, a vida é um único contínuo, one body-one soul, foi assim que tudo foi concebido, foi assim que Job ficou com desgastantes azias, foi assim que David aviou com o Golias, não transformemos a providência num plano tecnológico de novas oportunidades...». «Chega!» - disse Deus, sentindo já demasiada poeira cósmica no ar, não havia uma guerra químico-teológica daquelas desde os tempos em decidira abrir as águas para o Moisés passar.

O reaparecimento do lobi-da-reincarnação significava um abanão nas bases da Criação, mas de facto as Sodomas agora reproduziam-se que nem pombos. O homem tornara-se um bicho entre o obstinado caprichoso e o desinteressado folgazão. A roda da história alimentava-se da inércia da estupidez. Mas o que fazer com homens que passariam a aprender com 'as vidas' em vez de aprenderem com 'a vida'. Balduíno & Ramirez teriam de continuar a esforçar-se, mais ainda não era desta que um tipo passava de marceneiro a banqueiro com intervalo para lanche místico-táctico. E Veloso & Grunevaldo também teriam de dar mais corda aos sapatinhos, o purgatório andava num certo marasmo e já não acicatava as consciências.

Foi então que Deus decidiu dar uma chicotada psicológica no balneário dos anjos ( se resulta nos lagartos resulta em qualquer lado). Chamou os dois líderes das facções em confronto no concurso de bricolage teológico e disse-lhes: «Meninas e meninos, ponham mas é essa cambada de calaceiros em que se tornaram os anjos da guarda a mexer os rabinhos, pois os indicadores aqui do Paraíso estão a ficar piores que os lá de baixo».

E foi assim que começaram a ficar conhecidas as 'beatificações Veloso & Ramirez', nas quais um gajo que só tinha feito merda a vidinha toda era safo à ultima hora só por ter ajudado um saramago qualquer a atravessar a passadeira com o semáforo encarnado.

Chuva em Novembro

Quando os conterrâneos da Maité Proença traduziram por 'ordem implicada' a Implicate Order que o físico David Bohm trouxera para a praça pública no início dos anos 80, Deus nosso Senhor, levemente abespinhado, decidiu finalmente pôr o planeta sob escuta; mandou uma dupla de anjos montar um tenda na parte de trás do Hubble para ninguém topar e vai de instalar antenas multidireccionais viradas para todas as aulas de física do universo, churrascarias de carne incluídas. Quando Deus nosso Senhor decidiu que a suportar esta merda subatómica toda iria estar uma mistura de tudo e de nada nunca pensou nas traduções brasileiras, e isso estava agora a mostrar-se uma certa imprudência face à capacidade da língua portuguesa tropicalizada em libertar toda a teoria quântica e em transformar o vazio desconhecido numa espécie de cúmplice da grande barrela universal em expansão, descobrindo assim a careca conspirativa do Criador.

É hoje absolutamente certo que Deus não tinha especial pachorra para cálculos e mandou dois anjos que tinham ganho um concurso de ideias, e que possuíam experiência em roleta, desenvolverem uma espécie de gelatina transparente e pegajosa onde toda a energia iria desovar em forma de partículas que baloiçam qual pedacinhos de fruta cristalizada. Umas acabam por se chatear e vão passar umas temporadas no bolo rei, enquanto outras se afeiçoam ao mundo do vácuo gelatinoso e passam o tempo na palheta umas com as outras dizendo mal dos iogurtes com pedaços e fazendo olhinhos para formulas matemáticas com aspecto de bordado de lingerie.

A primeira grande dúvida que se colocou ao Altíssimo foi se haveria de compor uma banda sonora para acompanhar os saltos de vácuo gelatinoso, mas depois de ter antecipado o som dos discos dos animal colective decidiu que a música só deveria aparecer uns milénios mais tarde, quando o chimpanzé já tivesse resolvido os problemas relacionados com o polegar oponível. Assim, o realmente primeiro problema físico da criação foi efectivamente quando Deus teve de fazer com que um electrão aos saltos de trampolim pela angélica e invisível gelatina não produzisse o mais piqueno ruído, sabendo-se de antemão a dificuldade pois por detrás dum grande electrão está sempre uma grande protona; a zumbir-lhe.

Um mundo de fundo gelatinoso e silencioso a fazer de cama elástica a umas merdas cristalizadas aos pulos, e sem prestar contas se não a um casal de anjos mafiosos, foi então como isto se processou na sua base, e assim se manteve desconhecido até gajos como o Nils Bohr terem desencantado o bailado quântico à pala dumas lentes embaciadas num microscópio, e imbuídos duma poeira cósmica chamada curiosidade científica, uma espécie de sarna mas que faz menos comichão. Por causa das tosses, neste momento muitos deles amassam pão de centeio num purgatório gerido pelo pingo doce.

Quando Deus começou a topar que estava quase a ser descoberta a tramóia chamou os dois anjos, de seus nomes Soromenho e Polidoro, e disse-lhes: quero isto abafado. «Lancem a confusão, façam crer por uns tempos que eu não existo e que a gelatina é apenas uma espécie de fruta cristalizada mais líquida, e se for preciso tratem de ter uns jornalistas por conta, preciso de sossego para voltar a repensar esta coisa, vou voltar a estar atento àquela cegada da economia, julgo terem avançado mais nas teorias do caos do que propriamente os físicos».

Soromenho e Polidoro, os dois anjos responsáveis pela gelatina quântica, que viviam em união mística sem registo civil, e até tinham conseguido autorização de Deus para adoptar uma ninhada inteira do cometa Halley, arregaçaram as asas e puseram-se ao caminho, tendo-lhes sido especialmente recomendado para não se esquecerem que Deus para além de ser o electricista-chefe também é amor, a forma suprema de energia, já se sabe. Depois de recolhidas as escutas obtidas na ré do Hubble, Soro & Poli diagnosticaram que no planeta terra se vivia um caso típico de 'esclerose da causalidade', ou seja, obcecados com uma 'história repleta de pelourinhos e guilhotinas' (ouvi esta frase ontem na televisão e gostei tanto que não resisti), os homens escondem-se numa mistura pendular de indiferença e de escândalo. De irascibilidade e quessefodismo. Deus teria de agir rápido.

Encontraram Deus embrenhado em fórmulas de matemática duvidosa, mantinha-se a sua mania de tudo fazer para que d'alguma forma pudesse ser percebido, testado, gostava de milagres mas acabavam por lhe dar uma alguma azia - coisa que mesmo que quisesse explicar ninguém acreditava. Estava ligeiramente arrependido por não ter posto música no salto de trampolim dos electrões na gelatina invisível, pois a música tinha-se revelado um óptimo ambientador, e inclusive poderia ter tranquilizado as mentes mais desconfiadas ou espevitado os mais crédulos, mas fazê-lo agora daria um certo aspecto ilusionista à coisa e havia pergaminhos metafísicos a defender. Se bem que Deus, como o retiveram os grandes homens de Estado, nunca receara o ridículo.

Mostrar mais, tapar mais, mistério, revelação, era afinal esse o dilema que Soromenho & Polidoro tinham colocado em cima da mesa de Deus. Uma dúvida apenas para deuses ou coristas, registe-se.

Fora descoberta a possibilidade duma 'ordem implicada' na grande tramóia da Criação. Não era implícita era implicada. Uma gelatina cúmplice com o Criador, onde estava gravada a verdadeira atracção universal, por onde tinham de passar periodicamente os constituintes básicos do ser para ora se refrescarem, ora receberem indicações de viagem, ora se abastecerem de energia. Era uma estação de serviço com loja de conveniência. No núcleo do átomo vivia-se, pois, um mais que corriqueiro ambiente de amanuência sob o aspecto duma sofisticada réplica de cosmologia em formato liliputiano. Estava encontrada a chave: continuar alimentar a grande aventura da ciência com novas qualidades de gelatina quântica, novos sabores, novos aromas, novas texturas. Soromenho e Polidoro tinham uma nova missão depois da distracção evolucionista de que os biólogos progenetas se tinham tentado aproveitar para construir os seus planos de reforma.

O mundo emprenhado pela consciência e apalpado pela inconsciência sabia agora que a desconfiança não chegava para o conhecimento, que o conhecimento não chegava para o bem estar , que o bem estar não chegava para a felicidade e que a felicidade era afinal uma mera construção do excesso de confiança. A pegajosidade quântica da gelatina garantiria sempre a eficácia do eterno retorno. Soromenho e Polidoro desmontaram então o aparato da ilharga do Hubble e compraram acções da Prisa. Ao sétimo dia Deus em vez de ter descansado deveria ter acendido a televisão antes de tirar as suas conclusões mais definitivas.

Ficaram apenas por explicar os pormenores da escolha de Soromenho e Polidoro para toda esta dinâmica da criação do, soit disant, mundo físico. Deus vivia momentos de fastio, tinha havido a rebelião de Lucifer e assim, mas a coisa amainara. Lembrou-se então de lançar um concurso de ideias à sua corte de anjos para poder escolher o melhor substrato para a Criação. A ideia da base quântica de gelatina da dupla Soro & Poli sobressaiu sobre a de Gabriel (que ainda assim recebeu uma menção honrosa pela sua ideia da onda cósmica, e por isso foi premiado uns milénios depois com a Anunciação) e também sobre a do anjo Inácio que tinha sugerido uma complicada combinação de gases (mas que mesmo assim ainda teve o seu momento de glória no Big Bang, que acabou por ficar conhecido na gíria angélica como a cólica-do-inácio). Deus tinha ficado seduzido pela combinação entre movimento e invisibilidade que a solução de Soromenho e Polidoro consubstanciava e deu-lhes carta verde, tendo entrado pessoalmente no processo apenas quando os gases produzidos pela cólica-de-inácio já se mostrassem minimamente respiráveis. O Natal ficou então aprazado para Dezembro.