Ó da Guarda
e para quando uma lista de anjos do ano?
Neo-Escatologismo
Negacionismos, faltas de memória colectivas, materialismos dialécticos, geno-taras, enfim, a um pouco disto tudo assistiam Deus nosso Senhor e a sua corte de anjos e santos vai para uma carrada de séculos e ultimamente com coloridos cada vez mais arco-íricos. O Altíssimo olhava em seu redor esperando algum comentário mais pertinente por parte das abençoadas hostes, mas apenas descortinava S. Francisco de Assis fazendo festinhas a um gatinho, Sto Inácio de Loyola a fazer palavras cruzadas, e Sta Cecília assobiando o strangers in the night. O arcanjo S. Miguel chegou a desabafar: não me digam que foi para isto que eu andei à porrada com o cabrão do Lucifer, arriscando-me ainda a arranjar uma tendinite nas asas.
Durante séculos o anjo Balduíno tinha visto a sua hipótese teórica da reincarnação posta de lado pelo Criador, - chegando a apresentar mesmo algum ar de enfado na sua Sagrada Face - para já não dizer que era alarvemente gozado pelos outros anjos que diziam «olha olha o beduíno armado em sultão». Mas Balduíno mantivera-se persistentemente num regime de just keep ringing durante uns bons milhares de anos e agora sentia com fresca confiança que tinha chegado uma nova e grande oportunidade de voltar a dar força ao adormecido 'lóbi-da-reincarnação', para o qual já tinha angariado como adepto o anjo Ramirez, uma potestade loira especializada em reconstituição de almas de náufragos da pesca do atum (como se sabe a humidade em excesso faz mal ao espírito), e inclusivamente sacara duas ou três palavras encorajadoras dum tal de Aquino que, afinal, também era incapaz de virar costas a alguma animação teológica e achava a sua Summa já demasiado em conserva.
Balduíno resumia as suas teses da seguinte forma: se as almas em vez de virem logo para aqui ou para a churrascaria do primo Satanás passassem uma ou duas temporadas noutra vida terrena podia ser que se aperfeiçoassem mais e deixassem de dar razão à célebre frase: «com a história aprende-se que os homens não aprendem com a história». Yahvé mostrou-se pela primeira vez sensível ao tema e quis ouvir mais, tendo, no entanto, avisado logo Balduíno e Ramirez que não queria floreados com reincarnações em bicharada, lavagens d'almas, ou outras pirotecnias penitenciais; «há princípios intocáveis!», foi a Sua deixa.
Mas o lobi-da-reincarnação desta vez tinha-se preparado bem. Ramirez sacou logo de início duma arma argumentativa fortíssima dizendo «estamos a despender recursos enormes com o sistema actual do Purgatório», e nem se acanhou perante os sobrolhos franzidos da zona mais conservadora, passando a palavra a Balduíno que rematou com uma sagacidade de felino «o bem é denso e cumulativo, o mal é volátil e esporádico». Deus se estivesse na Capela Sistina ter-se-ia espreguiçado, mas preferiu fazer um ar interessado, chamando-os mais para perto e perguntando-lhes: «Quer faríeis então com os recursos do Purgatório nessa vossa modalidade?».
Balduíno sentiu então aquele fernicoque de espinha próprio dos grandes momentos e mandou avançar Stª Matilde Rebuffel que se destacara em santidade por tratar os cavalos dos regimentos napoleónicos na sua campanha italiana à base duma pomada de guelra de faneca benzida nas margens do Reno, deixando-os prontos para brilhar em qualquer hipódromo com ou sem baronesas. Sta Matilde tinha desenvolvido um sistema de reincarnações em que cada alma ia experimentando situações de vida que lhe carregavam a garupa de experiência e elasticidade, ora do lado dos mais tendencialmente oprimidos, ora do lado dos tendencialmente mais opressores. Mas Matilde começa verdadeiramente a brilhar quando tira do bolso o papelinho onde tinha desenhado todo o esquema revolucionário de gestão de carreiras reincarnadas aplicado a almas em regime de purgatório-free. Os representantes do sindicato dos guardiães do reino de todas as purgas começavam a remexer-se na cova das nuvens.
«O mundo vive enfatuado num progresso com presuntos de barro. A história consome a história, a treva consome a luz, o velho consome o novo. O homem queima oportunidades numa braseira de esquecimento. A invenção do futuro não está a compensar o desgaste do passado. É preciso uma nova via de preparação de almas, a penitência purga mas pode não salvar. Há que saber fazer uma pausa quando não é a meta que define a vitória».
Sururu montado nas fraldas da last frontier das galáctias. Balduíno pensava que tinha marcado pontos, mas o lobi-da-purga tinha muito peso. São Grunevaldo pega na palavra e não é de rodeios: «o homem tem todas as oportunidades inscritas na sua alma, a vida é um único contínuo, one body-one soul, foi assim que tudo foi concebido, foi assim que Job ficou com desgastantes azias, foi assim que David aviou com o Golias, não transformemos a providência num plano tecnológico de novas oportunidades...». «Chega!» - disse Deus, sentindo já demasiada poeira cósmica no ar, não havia uma guerra químico-teológica daquelas desde os tempos em decidira abrir as águas para o Moisés passar.
O reaparecimento do lobi-da-reincarnação significava um abanão nas bases da Criação, mas de facto as Sodomas agora reproduziam-se que nem pombos. O homem tornara-se um bicho entre o obstinado caprichoso e o desinteressado folgazão. A roda da história alimentava-se da inércia da estupidez. Mas o que fazer com homens que passariam a aprender com 'as vidas' em vez de aprenderem com 'a vida'. Balduíno & Ramirez teriam de continuar a esforçar-se, mais ainda não era desta que um tipo passava de marceneiro a banqueiro com intervalo para lanche místico-táctico. E Veloso & Grunevaldo também teriam de dar mais corda aos sapatinhos, o purgatório andava num certo marasmo e já não acicatava as consciências.
Foi então que Deus decidiu dar uma chicotada psicológica no balneário dos anjos ( se resulta nos lagartos resulta em qualquer lado). Chamou os dois líderes das facções em confronto no concurso de bricolage teológico e disse-lhes: «Meninas e meninos, ponham mas é essa cambada de calaceiros em que se tornaram os anjos da guarda a mexer os rabinhos, pois os indicadores aqui do Paraíso estão a ficar piores que os lá de baixo».
Chuva em Novembro
É hoje absolutamente certo que Deus não tinha especial pachorra para cálculos e mandou dois anjos que tinham ganho um concurso de ideias, e que possuíam experiência em roleta, desenvolverem uma espécie de gelatina transparente e pegajosa onde toda a energia iria desovar em forma de partículas que baloiçam qual pedacinhos de fruta cristalizada. Umas acabam por se chatear e vão passar umas temporadas no bolo rei, enquanto outras se afeiçoam ao mundo do vácuo gelatinoso e passam o tempo na palheta umas com as outras dizendo mal dos iogurtes com pedaços e fazendo olhinhos para formulas matemáticas com aspecto de bordado de lingerie.
A primeira grande dúvida que se colocou ao Altíssimo foi se haveria de compor uma banda sonora para acompanhar os saltos de vácuo gelatinoso, mas depois de ter antecipado o som dos discos dos animal colective decidiu que a música só deveria aparecer uns milénios mais tarde, quando o chimpanzé já tivesse resolvido os problemas relacionados com o polegar oponível. Assim, o realmente primeiro problema físico da criação foi efectivamente quando Deus teve de fazer com que um electrão aos saltos de trampolim pela angélica e invisível gelatina não produzisse o mais piqueno ruído, sabendo-se de antemão a dificuldade pois por detrás dum grande electrão está sempre uma grande protona; a zumbir-lhe.
Um mundo de fundo gelatinoso e silencioso a fazer de cama elástica a umas merdas cristalizadas aos pulos, e sem prestar contas se não a um casal de anjos mafiosos, foi então como isto se processou na sua base, e assim se manteve desconhecido até gajos como o Nils Bohr terem desencantado o bailado quântico à pala dumas lentes embaciadas num microscópio, e imbuídos duma poeira cósmica chamada curiosidade científica, uma espécie de sarna mas que faz menos comichão. Por causa das tosses, neste momento muitos deles amassam pão de centeio num purgatório gerido pelo pingo doce.
Quando Deus começou a topar que estava quase a ser descoberta a tramóia chamou os dois anjos, de seus nomes Soromenho e Polidoro, e disse-lhes: quero isto abafado. «Lancem a confusão, façam crer por uns tempos que eu não existo e que a gelatina é apenas uma espécie de fruta cristalizada mais líquida, e se for preciso tratem de ter uns jornalistas por conta, preciso de sossego para voltar a repensar esta coisa, vou voltar a estar atento àquela cegada da economia, julgo terem avançado mais nas teorias do caos do que propriamente os físicos».
Soromenho e Polidoro, os dois anjos responsáveis pela gelatina quântica, que viviam em união mística sem registo civil, e até tinham conseguido autorização de Deus para adoptar uma ninhada inteira do cometa Halley, arregaçaram as asas e puseram-se ao caminho, tendo-lhes sido especialmente recomendado para não se esquecerem que Deus para além de ser o electricista-chefe também é amor, a forma suprema de energia, já se sabe. Depois de recolhidas as escutas obtidas na ré do Hubble, Soro & Poli diagnosticaram que no planeta terra se vivia um caso típico de 'esclerose da causalidade', ou seja, obcecados com uma 'história repleta de pelourinhos e guilhotinas' (ouvi esta frase ontem na televisão e gostei tanto que não resisti), os homens escondem-se numa mistura pendular de indiferença e de escândalo. De irascibilidade e quessefodismo. Deus teria de agir rápido.
Encontraram Deus embrenhado em fórmulas de matemática duvidosa, mantinha-se a sua mania de tudo fazer para que d'alguma forma pudesse ser percebido, testado, gostava de milagres mas acabavam por lhe dar uma alguma azia - coisa que mesmo que quisesse explicar ninguém acreditava. Estava ligeiramente arrependido por não ter posto música no salto de trampolim dos electrões na gelatina invisível, pois a música tinha-se revelado um óptimo ambientador, e inclusive poderia ter tranquilizado as mentes mais desconfiadas ou espevitado os mais crédulos, mas fazê-lo agora daria um certo aspecto ilusionista à coisa e havia pergaminhos metafísicos a defender. Se bem que Deus, como o retiveram os grandes homens de Estado, nunca receara o ridículo.
Mostrar mais, tapar mais, mistério, revelação, era afinal esse o dilema que Soromenho & Polidoro tinham colocado em cima da mesa de Deus. Uma dúvida apenas para deuses ou coristas, registe-se.
Fora descoberta a possibilidade duma 'ordem implicada' na grande tramóia da Criação. Não era implícita era implicada. Uma gelatina cúmplice com o Criador, onde estava gravada a verdadeira atracção universal, por onde tinham de passar periodicamente os constituintes básicos do ser para ora se refrescarem, ora receberem indicações de viagem, ora se abastecerem de energia. Era uma estação de serviço com loja de conveniência. No núcleo do átomo vivia-se, pois, um mais que corriqueiro ambiente de amanuência sob o aspecto duma sofisticada réplica de cosmologia em formato liliputiano. Estava encontrada a chave: continuar alimentar a grande aventura da ciência com novas qualidades de gelatina quântica, novos sabores, novos aromas, novas texturas. Soromenho e Polidoro tinham uma nova missão depois da distracção evolucionista de que os biólogos progenetas se tinham tentado aproveitar para construir os seus planos de reforma.
O mundo emprenhado pela consciência e apalpado pela inconsciência sabia agora que a desconfiança não chegava para o conhecimento, que o conhecimento não chegava para o bem estar , que o bem estar não chegava para a felicidade e que a felicidade era afinal uma mera construção do excesso de confiança. A pegajosidade quântica da gelatina garantiria sempre a eficácia do eterno retorno. Soromenho e Polidoro desmontaram então o aparato da ilharga do Hubble e compraram acções da Prisa. Ao sétimo dia Deus em vez de ter descansado deveria ter acendido a televisão antes de tirar as suas conclusões mais definitivas.
Ficaram apenas por explicar os pormenores da escolha de Soromenho e Polidoro para toda esta dinâmica da criação do, soit disant, mundo físico. Deus vivia momentos de fastio, tinha havido a rebelião de Lucifer e assim, mas a coisa amainara. Lembrou-se então de lançar um concurso de ideias à sua corte de anjos para poder escolher o melhor substrato para a Criação. A ideia da base quântica de gelatina da dupla Soro & Poli sobressaiu sobre a de Gabriel (que ainda assim recebeu uma menção honrosa pela sua ideia da onda cósmica, e por isso foi premiado uns milénios depois com a Anunciação) e também sobre a do anjo Inácio que tinha sugerido uma complicada combinação de gases (mas que mesmo assim ainda teve o seu momento de glória no Big Bang, que acabou por ficar conhecido na gíria angélica como a cólica-do-inácio). Deus tinha ficado seduzido pela combinação entre movimento e invisibilidade que a solução de Soromenho e Polidoro consubstanciava e deu-lhes carta verde, tendo entrado pessoalmente no processo apenas quando os gases produzidos pela cólica-de-inácio já se mostrassem minimamente respiráveis. O Natal ficou então aprazado para Dezembro.