Na busca do Santana Graal

Ou do: só agora é que cheguei à mesa do banquete, e então tenho de comer tudo ao mesmo tempo, e rápido, para poder acompanhar os outros comensais.



Será que o mundo também se dedica a passear à nossa frente espojado numa bandeja?



Talvez não seja numa bandeja tão mítica como a que passeou com o Graal à frente de Parsifal, que se mostrou manietado e “atraiçoado” pela sua cortês falta de curiosidade ( ?), ou como a que trazia a cabeça de João Baptista a pedido de Salomé, manipulada por sua mãe Herodias, e que explorava uma irresponsável e cega promessa feita por Herodes, mas se calhar o mundo até pode vir mesmo é apresentado num “cacilheiro dos desmanchos”, como um espectáculo feito à medida dos novos coristas da realidade, que vivem do expediente de mostrar as cuequinhas e são pagos por uma espécie de erecção-fee, ou dos que vivem da provocação, tentando vender um foie gras de progresso onde não está mais que um paté de ideologia manhosa, ou daqueles que também receberam o poder numa bandeja, e se saracoteiam ( com dedo em riste, ou sem dedo em riste) a brincar ao monopólio da lei, da verborreia e da moral.

O “cacilheiro dos desmanchos” é um dos pratos servidos pela bandeja dos dias, e mostra que todos os novos aspirantes a iluminados ainda têm de comer muitos gafanhotos para ter hipóteses de baptizar outro Messias, e que muito rabo terá ainda de ser abanado e ventre torcido para que alguém cumpra mais alguma promessa que valha a pena, e que ainda nos teremos de despir de muitos preconceitos de ingénua cavalaria para poder fazer as perguntas certas - e nem precisam de ser indiscretas - quando nos passarem à frente com a verdade nua, integraal e, se calhar, arrogante, ironica e inesperadamente subjectiva.

Precisamos mas é dum Parsifal, e se tiver de ser Lopes (está a falar-se pouco deste tipo!) ... olha, eu estou por tudo. Não estou nada, porra!



Mas também pode ser que ainda adormeçamos todos como no Banquete de Platão, sem conseguir acompanhar a pedalada de Sócrates que tinha feito todos reconhecer que quando um poeta é trágico por arte também será poeta de comédias. E então, se calhar, é mesmo verdade que tudo seja arte, ou então, melhor, tudo é Eros, ou julgam que eu não topei logo que o Platão andava feito com a Diotima, que andou a lançar charme filosófico para cima do Sócrates na casa do Agatão ( não, não é um novo avançado do FCPorto)



Nota “afinal”: E se fosse mesmo a própria Herodias a estar apaixonada por João Batista? Fica pois então já aqui uma (não original) pergunta: “Poderá ansiar uma mulher a cabeça de quem não ama?” (contribuindo com uma espécie de eros “amargo-lírico” , mas que não pretende concorrer com a “ascese” da minha benzedora oficial, claro!)



Ou não seremos todos afinal meras vítimas da “politique – fatale” que dança freneticamente a mando de amores proibidos. Eu cá vou tratar de arranjar uma bandeja em condições, pelo sim pelo não.
A dry soul, but shacked, please



Isto é para aquela menina que não sabia que as almas se devem apresentar sequinhas, e que se escandaliza com conversas absurdas.

Ou do prazer que dá escrever pensando em alguém que não nos vai ler certamente, até porque pode dispor das parvoíces a metro e à discrição, sem ter se maçar muito vindo aqui a este tasco, que não passa duma “sepultura mal caiada” de palavras pouco apocalípticas e a caminhar para apócrifas.



Das almas secas. A alma é aquela coisa que vive ali encavalitada entre o metabolismo e a metafísica, que irriga sofregamente com tudo que é líquido manhoso, não olha a cheiros, nem a diluentes, e apresenta-se ao serviço em praticamente todos os corpinhos que um dia serão apenas espíritos a esvoaçar pelo sagrado éter, mais paraíso menos paraíso. A drenagem é o trabalhinho permanente destas almas em etapa purgante, e uma alma sequinha é pois o estádio mais perfeito a que uma alma pode aspirar. Uma alma que nem uma condensaçãozinha esteja a fazer, que nem destile um pinguinho de humidade, é porque atingiu o ponto de esponja espremida que é o sonho de qualquer destes refúgios cavernosos.

A passagem do líquido dos dias pelo nosso coral metafísico não é de facto um processo fácil. A alma tem muita tendência para reter impurezas, que aparecem não raras vezes disfarçadas de melaço mas que, vai-se a ver, em muitas ocasiões não passam de borra que nunca chegou a ser café.

É por isso que uma boa análise de alma tem de utilizar sempre o teste higrométrico. Desconfiemos sempre duma alma muito humedecida, desconfiemos sempre duma alma que se apresente muito hidratada, como se fosse um creme com pernas, (gostou da imagem, gostou menina), desconfiemos sempre duma alma que se apresente sempre solícita babando ideias com sentido, são tudo sinais que indicam as almas ainda estarem a filtrar, e essas almas podem perfeitamente estar apenas a usar-nos para melhor bombear o que já esmifraram a outros.

Uma alma enxuta, é uma alma que soube desperdiçar o enganoso bem-estar da frescura que encobre os dias mal lavados, é uma alma que já encolheu o que tinha a encolher, é uma alma que já resolveu as tentações de ser cotovia em vez de pomba, como as que apresentava a “animosa e resoluta” Cosetta do Victor Hugo, e que já tem aquele aspecto coçado da ganga que fica tão bem.

Uma alma que ainda esteja a servir de passeio aos fluidos do remorso, ou da cobiça, ou da soberba, pode fingir grande brilho, só que esse brilho mais não será que um efeito da luz a bater numa superfície molhada. Mas isto, também vendo bem, não é nada que não se resolva com um alegrete de champanhe com morangos. E como eu invejo uma alma seca, mesmo que esteja refém duma unha encravada.
Contos do amor gozoso

Ou do efeito perverso de não saber dançar



Giuseppe era o verdadeiro guru do humor da pátria. A referência das referências, o pai de todas as buchas de riso, aquele a quem a veneração quase assumia laivos duma nova religiosidade, onde crentes e sacerdotes se uniam, e fabricavam eles mesmo os seus próprios deuses de bricolage, à facon, no cadinho incensado da risada redentora. Todos o adoravam praticamente sem excepção, numa unanimidade confrangedora, desde a mente mais sofisticadamente transgénica até ao espírito mais ecologicamente rústico, desde o pelintra mais revoltado até ao magnate mais acomodado, desde o «bêbedo olímpico ao servente abstémio», como diria S. Beckett. Fazia, ele sim, o verdadeiro Pleno (não aquela merda de tisanas que se apregoam por aí). Era dono da montra mais cobiçada pela plateia do pronto-a-rir da urbe, onde os convidados misturavam nervosamente o medo de serem bandarilhados em público, com o irreprimível desejo juvenil de serem entronizados numa galeria de fama, carimbada pelo seu pegajoso selo branco. Discurso que não levasse uma tiradinha importada do seu humor aforístico não conseguiria empolgar nenhum auditório, padreco que não enfiasse uma chalaça das suas no sermão bem se podia flagelar em público que nem provocava o “valha-me Deus” numa carmelita descalça, e nenhuma brigada de trânsito resistia a uma desculpa bem artilhada por uma piada benzida por este Buda do humor.



Só que Giuseppe queria mais, as fronteiras do seu país sufocavam-no, a língua era a sua pátria mas também a sua prisão, sentia-se pouco mais que um guarda-fiscal da boa disposição nacional, e achava que tinha direito ao paraíso fiscal do humor global. Achava que algum dia teria o mundo a seus pés de tacha arreganhada, manipulando as almas ao ritmo do gargalhado, construindo milagres do sol e cobrindo a gentalha com o manto do seu riso amestrado.



Uma oportunidade iria certamente espreitar e ele não era esquisito; honra seja feita pelo narrador à personagem: ele não era esquisito, apresentava até uma humildade de conquistador, dispunha daquela certeza de que as oportunidades são para se agarrar e é um desperdício usá-las para adornar suspiros, porque senão mais vale transformá-las em chás de beneficência.



Era no Quebec que brilharia a chama da oportunidade. Num programa de “anedotas animadas” tinha aberto o lugar para uma personagem que falasse inglês e francês mas com sotaque genuíno. Ele não desdenhou a chance, e receberam-no com um misto de curiosidade etnográfica e de interesse por ser portador de mão-de-piada-de-obra barata. Giuseppe saiu-se bem, claro, e ia instalando aos poucos a sua imagem; não era uma flor de estufa, e dava-se lindamente em todos os ambientes, jogando na dose certa com o encanto do pavoneamento e com o encanto da submissão.



As oportunidades atraem-se, e aí estava outra a pedi-las: o modelo do programa para adormecer as criancinhas do Quebec estava a esgotar-se, e os estudos de audiência revelavam que o contador de anedotas com sotaque tinha muito boa imagem junto das criancinhas. Foi-lhe então colocada a hipótese de criar à volta da lavagem dos dentes das criancinhas um mundo de engraçada fantasia e de suave relaxamento e santo entorpecimento. Giuseppe viu aí a sua chave de ouro e, qual gazua, avançou desembestado para o sucesso. Iria transformar para sempre a mitologia da higiene dental, cada bochechadela das suas seria um hino à hilariedade. E de facto, bochechar nunca mais foi o mesmo no reino do Quebec. O ritmo da escovadela dentária de Giuseppe tornou-se num break dance generalizado, e o mundo parava de boca aberta enquanto ele rodopiava as suas piadinhas deambulando em cima do fio dental. Crianças e graúdos começavam a ficar rendidos ao seus gargarejos, e o único senão de tanto riso era que a excitação já começava a tornar-se inimiga do santo sono das crianças.



O sucesso começou a dar nas vistas, e a atracção exerceu-se logo nas grandes marcas da higiene dentária; foi por um triz que ele não sucumbiu à financeira tentação de se tornar na imagem global do Tantum verde, rentabilizando assim até exaustão o seu já mais que mais famoso gargarejo televisivo. Mas à última hora uma visão providencial mostrou-o como uma espécie de Albarran do Quebec, e devolveu-lhe a lucidez que sempre o tinha acompanhado desde a primeira hora. Declinou - devidamente agradecido - o tentador convite, e ficou-se pela cívica atitude de emprestar a sua curiosa imagem à campanha pública das “gengivas sãs”, com um sketch de massagem gengívica que ainda hoje levanta o lábio superior a qualquer carrancudo profissional que viva para lá dos grandes lagos.



Giuseppe via agora que tinha cumprido a sua primeira etapa, e talvez a mais difícil, mas começava a constatar que estava com a sua imagem um pouco, pode-se mesmo dizer, colada ao céu-da-boca. Precisava de dar o salto e de se abalançar definitivamente para ser o sonhado ícone do humor global. Ele só descansaria quando fosse mesmo o guardião do Olimpo da chalaça. E outra grande oportunidade estava milagrosamente à espreita: um dos grandes humoristas de topo de gama do mundo anglo-saxónico tinha um programa diário em que fazia de barbeiro, e onde ia despejando a sua piadética para cima do cliente, que pouco mais fazia que ir dando de bandeja as deixas para o mestre poder brilhar. A mais fina ironia política coexistia harmonicamente com a brejeirice mais rudimentar. Ora o actor que passava o tempo sentado envolvido num lençol e que entregava a sua popa ao sacrifício, estava assolado do mais que óbvio ataque de hemorróidas, e Giuseppe, não se fazendo rogado, atacou com o seu instinto matador oferecendo-se de forma quase irrecusável para o lugar. (talvez até seduzido de forma inapelável pelo prazer incomensurável que tinha quando lhe mexiam no cabelo, misturando-se aqui um pouco a inveja que assola intermitentemente este narrador em relação à sua personagem)



E aí estava, Giuseppe entrou pianinho, sem querer fazer nem mossa nem sombra à estrela instalada e incensada, e deixou até correr sem grande intervenção alguns dos episódios iniciais aproveitando para revirar os olhos enquanto lhe tricotavam um delicioso formigueiro no couro cabeludo, gerindo concomitante e controladamente o risco do ar apanascado que isso lhe poderia acarretar, e foi de forma muito dissimulada e progressiva – mas inexorável - que foi lançando o seu plano de farpas risíveis, que eram profissionalmente servidas por uma noção e um rigor ímpar do tempo e do ritmo humorístico. Começava a ser ele a tomar conta do programa e da sua risibilidade. E quando se julgava já impossível, as audiências iniciaram outro ciclo galopante, sem que, pasme-se, a estrela do programa se apercebesse que a razão deste novo abano de sucesso se devia exclusivamente ao “cliente-actor” arranjado à pressa, sem escrutínio, nem coro de avés nem de amens. Este aparentemente inofensivo e meio atarantado “cliente” de sotaque engraçadinho, e oriundo do programa “Prá caminha com os dentinhos a brilhar”, que tinha vencido a batalha da cárie juvenil enquanto punha a criançada a dormir mais cedo, permitindo ainda aos pais o inesperado bónus dum fornicanço entremeado de riso, preparava-se então para um takeover, o menos hostil possível, ao humor global. O mundo estava mesmo prestes a render-se à sua infinita capacidade de fazer rir qualquer pessoa e de qualquer maneira, à sua capacidade infinita de subjectivar o que parecia absoluto e inabalável, e de tornar absoluto o que não valia um punhado de esterco. Tomou conta da barbearia, era agora dono e senhor da haute - coiffure do riso universal.



Mas estranhamente começou a apoderar-se dele uma vontade quase ulisseiaca de regressar. Começou a pensar que afinal tudo aquilo apenas lhe tinha servido para ele ver que o seu destino era mesmo mexer no destino dos outros. Ele queria agora mais. Ele via que o poder – o real, o tentacular, o sôfrego e esmagador poder - estava ali a milímetros dele, e ele podia agarrá-lo se aproveitasse as deixas da realidade com o mesmo instinto e a mesma frieza com que as dominava no discurso humorístico. Um dos partidos da sua terra natal apresentava-se de sede vacante, e tudo até lhe parecia inesperadamente bem mais fácil que lavar os dentinhos a meninos antes de adormecer. Os comentadores já só se entretinham a dizer mal uns dos outros, a realidade parecia entregue aos bichos e sem franciscanos de boa regra para cuidar deles, o povo era um brinquedo barato que nem precisava de muitas pilhas, e nem exigia constantemente piadas novas como era costume acontecer nas audiências sofisticadas dos programas humorísticos. Iria fazer dos analistas gato-sapato, iria fazê-los suspirar por uma ditadura previsível e abjecta, iria fazer dos bastidores o palco, iria gozar com os espectadores, iria dirigir a nação com a força do humor invisível, escovaria a concorrência como quem limpa o calcário duma dentadura de gaiatos, e até talvez lhe bastassem apenas algumas piadas dos tempos em que o sotaque era a sua única mais-valia. Fácil demais, vendo bem.



Mas o sono do narrador, e o pacto que ele tem para com o discurso lírico acabam por arrastá-lo finalmente para o relato – tardio, reconhece-se – do verdadeiro desafio de Giuseppe: colocar todos os seus talentos na conquista duma mulher, duma mulher que soubesse deixar-se amar e que não se afastasse pelo cheiro perigoso do humor que nada perdoa, nada consola, nada aconchega, nem nada salva nem ressalva. Aquele vírus da relatividade que o humor carrega sempre tinha criado uma ourela de insegurança à sua volta, parecia trazer consigo um precipício ambulante, as mulheres riam-se mas não conseguiam amá-lo, riam-se, mas apenas pousavam a cabeça no seu ombro para descansar das risadas convulsivas e nunca para lhe confiarem nem a esperança nem o desejo mais puro e efervescente. Era um fornecedor de momentos bem passados, um homem interessantemente descartável, talvez o melhor acompanhante, o que fornecia fama, alguma fogosa e diferente cama, mas de quem no final se deslizava como da lama. Giuseppe sabia disto tudo desde os primeiros tempos. Nos anos do Quebec não tinha tido tempo para aferir da evolução do estigma que carregava, vivia da sua suprema superficialidade, nem se podia dar ao luxo de ser homem de bem, ouvia como na canção que «sua risada me assusta», mas não valorizava isso e distraia-se a secar o olhar esgazeado das mulheres com o humor cirurgicamente inteligente, ou com a inteligência cirurgicamente humorada.



Só que agora estava de volta à sua terra mãe e até tinha desprezado o encanto da política. Agora que até podia sobreviver apenas brincando numa espécie de monopólio de édipos tardios, apresentava-se quase disposto a vender a sua piada ao diabo, para sentir em troca o carinho despojado, bem físico e sem cálculo, duma mulher. Dono e senhor do humor global, não passava dum mero indigente no reino do amorzinho recatado e quase de feira a que qualquer dos parvos que fazia rir tinha acesso sem grande esforço. Punha os corpos a tremer de riso só com um trocadilho de ocasião, punha-os a contraírem-se orgásmicamente num gozo até intelectual com a exposição das ambiguidades que tocavam nos insondáveis lugares da psique, mas não lograva sequer grudar uma mulher com o suor resinado promovido pelo cansaço da hilariedade em trote. «Sou apenas baba com pernas», pensava Giuseppe nos momentos em que inventava histórias contra si próprio, para alimentar uns ciúmes que nem sequer tinham razão para existir, os mesmos ciúmes que tanta inspiração lhe tinham fornecido, e tantos aplausos e direitos de autor lhe tinham garantido. Mas essa mulher não existiria de facto. Giuseppe seria para sempre refém da sua própria opção de viver matando tudo o que estava à volta, numa eterna imolação do cordeiro da felicidade a troco da salvação de uma gargalhada.
Contos do só deus sabe

ou do efeito de não se andar a par das notícias





Tinham um casamento armadilhado pelo amor. E só Deus sabe o quanto ela o amava. Era um genuíno casamento por conveniência; pois nada é mais conveniente que o amor, nada ajeita melhor as coisas, nada deixa melhor as coisas como elas são, nada é mais conservador que o amor. Quando ela o enganava – sim, Francesca enganava-o claro, com aqueles desenganos da carne – ele apenas dizia «só quero é que não sejas inconveniente, não te esqueças que nós amamo-nos». Ela nunca conseguia resistir quando alguém lhe chamava lascivamente e com sotaque andaluz: «Ó rubia!» Só que aquilo também não passava dum mero efeito marmoreado no conveniente estuque amoroso. Pietro sabia isso. Era tão conveniente apenas amarem-se; nem se ajeitavam mesmo a ter mais nada em comum, nem sequer precisavam de rezar ao mesmo Deus, aliás ela até dizia como a Elis Regina que «não sabia rezar, só queria mostrar o seu olhar», os deuses haveriam de compreender, e até abençoar se vissem necessidade. E ele lá andava todo consolado, deixava as inconveniências de lado e amavam-se ao som dum contrato. Amavam-se, essa é que é essa. A mais forte das conveniências; até tinham chegado a falar em ter filhos pendurados nesse amor. «Vê lá, oh rubia» dizia Pietro, provocador «se tens arcaboiço para empinares o teu umbigo e desafiares a lua cheia». Mas ela era muito calculista, sabia que o casamento podia ficar em risco, tinha medo que o cabelo lhe escurecesse, tinha medo de descalcificar e de perder o fulgor dentário que lhe acolitava o sorriso espampanante. O amor era mesmo o que lhes servia, e convinha, não lhes interessava o negócio da espécie, Darwin já tinha morrido há muito, e multiplicarem-se não encaixava naquela álgebra particular deles. Pietro deixava aquilo correr, o amor parecia o bastante para manter o negócio de porta aberta, não precisavam de mais nada. Às vezes até o sexo atrapalhava, e isso chegava a dar-lhes vontade de rir, «isto de facto o amor é do caraças» diziam os dois a rir-se. E depois claro, já não paravam com as piadas, «temos de continuar a investir na nossa relação» era das que gostavam mais, mas nessa altura é porque já estavam mesmo com umas copulazinhas a mais no bucho.
E assim lhes corriam os dias, armadilhados pelo tal amorzinho correspondido. Até que um dia ele interpelou-a inesperadamente: «Acho que se calhar precisamos de qualquer coisa mais importante que isto de nos amarmos»; Francesca, que estava a ver-se ao espelho, numa primeira reacção ainda sobre o efeito do gel, terá pensado «tu queres ver que o gajo agora quer que eu pinte o cabelo». Mas não, Pietro também não pensava em algo de tão profundo, ele apenas sentia que aquela união já mereceria mais que o simples amor, essa coisa sempre refém da reciprocidade, sempre dependente de desinfestações e extintores. Pietro pensava que já era tempo de terem uma relação como deve de ser, baseada em coisas sólidas, que não os deixassem a pensar um dia como dois desconsolados: «apenas nos amámos». «Andaste a ler livros sozinho, Pietro?», é que eles tinham combinado que nunca leriam senão os dois juntos. Mas não, não tinham sido leituras solitárias e proibidas, Pietro era muito respeitador dos seus compromissos, e nem no dentista lia revistas para ajudar a passar o tempo. Aquilo era mesmo a cabecinha dele a ajoelhar-se, não suportava mais tempo ser apenas um amador. Tinha ouvido falar em casamentos por interesse. Queria experimentar. Queria experimentar essa felicidade onde todas as manobras tinham de ser calculadas, e no fim a satisfação era algo que se podia apalpar. Essa merda do amor não tinha consistência. Mas Francesca começava a ficar incomodada, até porque já estava acomodada. O amor servia-lhe tão bem, para quê a felicidade. Para quê lutar pela verdade. O amor servia-lhe tão bem. Até dava para se desenganar, e nem precisava de fazer contas de cabeça. E só Deus sabe quanto ela o amava. Mas afinal era mesmo verdade, nenhum homem se aguentava só com o amor. Ela tinha lido isso num livro, à socapa; é que também nenhuma mulher se aguenta num compromisso.
Apenas para falar do tempo



Um representante português (será atleta?) nos Jogos Olímpicos justificou parte da má – péssima – prestação porque a aba da sua casaca estava sempre a bater no dorso do cavalo durante a prova de dressage. Certamente andou a treinar de cuecas, e agora o animal ressentiu-se de tão pouca ligeireza olímpica e da incomodativa batidela de aba de casaca. Eu também vos digo, se uma aba de casaca me andasse a bater nos costados enquanto eu escrevia esta coisa, certamente não sairia nada de jeito, só que agora também reparo que já estou de cócoras há mais de dez minutos, os pezinhos estão a ficar dormentes, e a cabecinha irá certamente desforrar-se devida e proporcionalmente.

Mas é verdade, às vezes tudo nos atrapalha, parecemos uns eternos reféns dos caprichos das baixas e das altas pressões, e até parece que não passamos de cavalinhos de cortesia em permanente dressage, uns armados em alazões à espera do embasbaque da audiência, e outros engaranhados à espera do seu ardor.

E olha, que se lixe o tempo, que se lixe a chuva, que se lixe a audiência, vou apenas dar provimento à sarna que me elegeu, e que me deu esta bênção de poder vir aqui apenas coçar, sem fazer ferida, sem ser inconveniente para ninguém, sem arrastar ninguém para a perdição, sem me poder queixar do tempo, nem das hemorróidas, nem das baby-sitters, apenas coçar, coçar, coçar.

Fazer de conta que me estão a mexer no cabelo, fazer de conta que sou político em estado de graça, fazer de conta que sou eminência parda, fazer de conta que ninguém precisa de mim para nada, fazer de conta que ninguém passa sem mim. Vou pedir ao mundo que esteja quieto com a aba da casaca, que me deixe apenas pavonear o meu trote, que me deixe apenas deslumbrar com o meu volteio encantado, ser apenas refém da vaidade, sem ter de prestar contas à modéstia, nem à verdade. Escrever à toa. Baralhar-me com o que escrevo, esquecer-me do que escrevi atrás, sacudindo a aba da casaca, desprezar o fosso olímpico e ver em cada charco uma água refrescante, ou um elixir esfoliante ( aux agrumes, ou não).

Deus sabe o que me estão a doer as costas, o como os pés já me estão quase em epidural, o como já me estão a gozar ali ao lado, mas o quão me apetecia estar aqui a escrever sem tino sem destino, como que me estando a mexer no cabelo e eu caindo num doce adormecimento. Levitar é para os pobres de espírito, que precisam de ter o corpo suspenso.



Só que isto nunca mais será o mesmo sem o Ferro Rodrigues, e eu já me estou a ressentir disso. Não estou a arranjar tema para conversas espongiformes, já me esqueci das letras da Tonicha – excepto o “zumba na caneca”, claro – e a nostalgia mal resolvida está a dar cabo da minha alma adolescente. Só se lêem livros parvos, que apenas servem para alimentar conversas de riso galopante, mas uma coisa é certa: que ninguém se lembre de me vir bater com a aba da casaca dizendo que é do vento. Eu cá sou BoDerekiano.

Para limpar



Ora pois 1

Desemperremos



«A chama ergue-se na vertical , incapaz de manter-se rasteira , de deixar-se abaixar, tanto com é incapaz de estar parada; do mesmo modo o nosso espírito está sempre em movimento, e é mesmo tanto mais ágil e ardente quanto mais nobre for»

Séneca, Cartas a Lucílio, carta nº 39 – 4, ed. FCG



Ora pois 2

Sem perder de vista que



«o cofre é um mero acessório do conteúdo»

Séneca, Cartas a Lucílio, carta nº 87 – 18, ed. FCG



Ora pois 3

Mas: opiniondesmaker forever



«Todos os nossos juízos estão suspensos da opinião comum. Não são apenas a ambição, o luxo, a avareza que se regulam por ela: também sentimos as dores de acordo com a opinião. Cada um só é desgraçado na justa medida em que se considera tal»

Séneca, Cartas a Lucílio, carta nº 78 – 13/14, ed. FCG
Mas agora também reparo

Proibido a crianças-adultos em fase de construção de personalidade



Que raio, aborrecem-me tanto os moralismos da série “coisas bem acabadas”. Mas parece que só assim é que se forja um carácter forte: fomentando o dever de acabar aquilo que se começou, de nunca deixar nada por terminar, de fazer as coisas bem feitas. E ainda para ajudar à festa este moralismo de almanaque parece irritantemente fazer todo o sentido. Mas arrepiam-me ( coitadinho...) tanto as coisas que fazem sentido; são uma espécie de damas d’honor do não menos arrepiante “estava-se mesmo a ver”. Semaforizam-me a existência. Mas desgraçadamente não nos safamos dessas éticas do “acabar o que começámos”. Dessas moralidadezinhas de “menu do dia”, que acabam por ignorar displicentemente o ensinamento que se poderia retirar dos rodízios em constante reabastecimento. Mas que porra, realmente, isto de que para se ter uma personalidade forte é preciso sentir a responsabilidade de terminar, já me está a incomodar mais do que o vento cheio de areia a bater no focinho, e já nem falo da situação das virilhas porque essas estão também muito batidas mas pelas piadas da estação. (não estás é a arranjar outras piadinhas...)



Que pena não se poder viver apenas atamancando, e ser à mesma uma fonte de virtudes. Já não nos bastava a sina metafísica de não podermos ser acto e potência ao mesmo tempo, ou a sina biológica de não podermos deixar uma mijinha a meio, ou a sina lógica de não podermos meter o Rossio na rua da Betesga, ainda tínhamos de alimentar esta sina moral de ter de acabar as coisas para moldarmos uma personalidade modelo. Chega mas é de moralengas destas que, vai-se a ver, só servem para fazer fretes às cartilhas de fraca vazão.



Se o mundo já é de si uma morada incompleta, sim o mundo, esse estendal da ropinha dos deuses, esse abanico de mulheres enganadas, esse carrocel para homens-meninos aparvalhados, porque carga d’água é que para construirmos um espírito forte temos de lutar por ter as coisas bem terminadas e bem assentes. Porque é que não será mais acertado irmos também deixando constantemente tudo em suspenso, como deuses. Cheiinhos de incompletude, cheiinhos de “eu já cá volto”, cheiinhos de “ eu já acabo isto”, cheiinhos de “amanhem-se agora que eu quando puder já cá venho outra vez”. Assim sim! Viver em “pendurância”, como convém à nossa condição de seres incompletos e dados a baloiçar. Seres pendulares, diriam os mais eruditos, os mais foucaultizados e mal pagos.



Minha insonsa alma doravante será mas é temperada só pela salgada imperfeição, pelo avinagrado provisório, e pela ketchupada incompletude, acabaram-se as maioneses “amoraladas”, pré fabricadas, e sempre já prontinhas a usar. Deixar tudo por terminar, apenas gerir pendências, viver do bom expediente da eterna e adolescente esperança, é a única garantia que podemos ter de que nunca abandonaremos nada nem ninguém. Quem diz que põe uma pedra sobre um assunto, verá no corpinho que ela se irá desforrar e enfiar-se-á no seu sapatinho sem ele se dar conta.



A sabedoria não está em acabar, antes sim em saber viver, serenamente quanto baste e inquieto quanto se aguente, deixando sempre tudo incompleto, deliberada e controladamente incompleto. Sábios serão os que conseguem viver de porta sempre entreaberta, sem medo de apanharem as incómodas pontadas, por causa da corrente d'ar provocada pela baixa pressão relativa à ausência da famosa “consciência do dever cumprido”. E sábios serão os que não perdem um segundo a ler esta merda, e fogem a sete pés dos que lhes querem demonstrar o contrário do que já está demonstrado e à custa de joguinhos de palavras.



Eu quero acreditar que um carácter forte se forja em nunca desfrutar do prazer de terminar algo, mas em ter sempre o coração a bater palmas e a pedir enconres. Mas agora também reparo: para que é que serve um carácter forte? E para acabar bem as coisas bastará o medo das deixar incompletas.
Contos para algum dia



Lorenzo podia dizer-se que ainda era um rapaz. Sonhava em ser alpinista, iria ser alpinista tenho agora a certeza, agora que vou escrever esta história, claro; só que não o seria para sempre; esta noção de “para sempre” faz confusão quando ainda se é ainda rapaz, não é bem fazer confusão, é mais não interessar para nada, ou melhor, o “para sempre” é quase um dado adquirido quando se é rapaz, é uma espécie de borla dada à juventude, para compensar as exigências desleixadas da nostalgia.

Não sei se era o “ver o que os outros não viam” que o seduzia, nem sei se era o “estar mais próximo do que quer que fosse” que o seduzia, eu cá, que sou o narrador-patrão desta história, gosto mais de pensar que ele era seduzido por viver fascinado, por ir vivendo consumindo pouco oxigénio, num despojamento energético, vivendo numa ofegância provocada por um cansaço quase desejado, quase obsessivo - esse conceito tão reflexivo - o cansaço próprio duma alma que se julga trepadora, e duma mente que não gosta de pensar mas que não consegue fugir do pensamento.



Enquanto preparava a grande subida conheceu uma rapariga. Linda. Não, era apenas bonita, as raparigas são apenas bonitas, lindas são as mulheres. Chamava-se Theresa. O nome mais bonito que uma mulher pode ter é Teresa.

Theresa gostou logo de Lorenzo, não é para abreviar a história, foi mesmo assim, mas ele não percebeu, claro, só pensava na montanha, no cume, mas mesmo assim ainda deu para se encantarem um bocadinho, ainda deu para Lorenzo se esquecer da montanha por uns momentos. Viveram a frescura atrevida dum final de adolescência, chegaram a fazer um rolo de carne no aconchego dum sopé, cada um sonhando com aquilo que podia, e queria, porque ainda dava para escolherem os sonhos, e depois cada um acordou para o lado que estava virado, uma gira evidência, como que deixando a geometria dum despertar desenhar a fisionomia dum destino. Lorenzo já tinha conhecido outras raparigas, mas nenhuma-tal-tinha-sido-alguma-assim.



Só que Lorenzo estava era fixado, não queria ficção, contentou-se – aparentemente - com a fricção e tinha uma montanha para subir, tinha um cume para desfrutar, tinha uma ofegância para vascular, tinha um coração para rebentar para o qual não contava com a companhia do carinho de Theresa. Mas ele na altura não valorizava a falta desse carinho. Se calhar ele julgava que o vento agreste, e gelado, e inspirador, dum cume dispensava a carícia duma pele virgem de rapariga. Mas a pele é a primeira coisa a perder a virgindade, penso eu agora, mas eu não tenho nada a ver com esta história, claro, até posso é atrapalhar. E a tal virgindade que a pele perde, também está constantemente a recuperá-la, todos somos cobras, só que Lorenzo não tinha tempo, nem paciência, para pensar nisto. Ia subir.



Lorenzo esteve no cume ainda muito tempo. Enquanto lá esteve, apesar de ter vivido agarrado a ele sorvendo o gelo, acabou por não o valorizar em demasia, limitou-se a ter apenas alguma consciência dele. Não tinha sequer tempo, nem pulmão, para ter muita consciência. Chegou a olhar para baixo, poucas vezes note-se, procurando vislumbrar os cabelos negros de Thereza, mas não era para olhar para uma miúda que Lorenzo tinha subido ao cume duma montanha, não lhe convinha sequer olhar para baixo, isso distraía-o, e num cume uma distracção é fatal. É que no cimo duma montanha poderemos estar muito bem acompanhados, mas nunca ninguém nos dá a mão verdadeiramente, nunca ninguém nos dá a sua pele, que está seca. E Lorenzo foi descobrindo entre fôlegos mal paridos que jamais conseguiria saborear de verdade o aroma duma pele amiga enquanto estivesse no cume duma montanha.



Um dia, desceu. Queria correr, sentia necessidade de correr. Queria velocidade mas sem estar sempre preocupado com o sítio onde punha o pé. Se calhar Lorenzo convenceu-se que já tinha visto o que queria no cimo da montanha. Ou o que precisava. Eu devia saber isto, dado que sou eu que estou a contar a história, sou eu o dono desta merda de história, mas às vezes é assim, não sabemos o que fazer com aquilo que temos.



Theresa já lá não estava. O sopé aparentava alguma desolação, mas Lorenzo agora podia correr, correr para onde lhe apetecesse, num cume é que não se podia ser rebelde, os cumes matavam as rebeldias. Mas Thereza tinha ido com outro, raios. Um engenheiro. «Porra, um engenheiro electrotécnico! Para que é que lhe serve um engenheiro», pensava Lorenzo, «se era para montar os candeeiros na sala eu também haveria de o conseguir», a falta de oxigénio não lhe tinha feito perder o sarcasmo, nem a ironia, via-se. Lorenzo já não era um rapaz, descera dum cume mas, e assim às primeiras, parecia ter sido trocado por um busca-pólos! Teria a cume valido a pena? Teria sido o cume uma mera fantasia topográfica que alimentara ilusões de meninos armados em homens, pensava agora Lorenzo, ele que nem gostava de pensar. Ou o mal era afinal de Thereza, que tinha estupidamente preferido um homem especializado em ligações à terra, e não pôde esperar por outro que a podia ligar às nuvens. Coisas de mulheres, se calhar.



Mas agora o que ele não aceitava era que ter estado num cume daqueles lhe tivesse retirado definitivamente a hipótese de poder correr ao lado de Theresa, e de ficar ofegante, mas com a ofegância de correr com ela ao colo, e de rodopiar, um homem que nunca rodopiou com uma mulher ao colo é uma merda, isso é sabido por todos, até por Lorenzo que tinha passado uma carrada de tempo no cimo duma montanha.

Só que de repente, sim foi assim de repente, quase sem ele se dar conta, Lorenzo perdeu a vontade de correr. Ficou apenas andando pela pradaria, também não era arrastando-se, era andando mesmo, como um qualquer peão, também não era como um pedinte, era um peão mesmo, e nunca contou a ninguém o que tinha vivido no cimo da montanha; estava pois sem cume, mas sem interesse pela sua memória, e sem Theresa, mas aqui inesperadamente com medo da sua memória. A pior coisa que um homem pode ter na memória é uma mulher, deve rapidamente mudar para uma boa jogada de futebol, ou uma boa anedota, ou um negócio que tenha corrido bem, e era isso o que Lorenzo ia fazendo. Aprendera isso nos dias da alta montanha, quando não podia ocupar a cabeça com coisas estéreis, mas vendo bem uma mulher nem é uma coisa estéril, bem antes pelo contrário na grande maioria dos casos, mas isto é uma consideração de narrador que não acrescenta nada à história; caprichos de narrador é o que é.

Ainda havia uma sensação que apoquentava Lorenzo, era um bocadinho uma sensação do tipo “descompensação cinéfila”, mas não deixava de ser uma sensação, tratava-se de ele julgar que nem sequer afinal tinha sofrido uma porra dum verdadeiro desgosto de amor. Era uma daquelas sensações de que um tipo até se envergonha. E a Lorenzo, que nunca se tinha envergonhado, porque no cume duma montanha vá lá um tipo ter tempo para se envergonhar, isso atrapalhava-o realmente, condicionava-o até, vendo bem, e para estes condicionamentos ele nem estava preparado.



Mas Lorenzo lá foi sacudindo estes novos condicionamentos, e os nervos, que acabou por descobrir e reconhecer a muito custo que também os tinha, e foi seguindo as regras da pradaria. Tinha aprendido no cume a adaptar-se , a disfarçar-se para enganar as avalanches. Afinal não se tinha perdido tudo. Penso agora, se calhar eu ainda devia era casar o Lorenzo nesta história, mas não, nestas histórias os casamentos não casam com o resto do enredo, até o podem mesmo enrodilhar, e não fica bem ver um ex-alpinista de rodillas. Lorenzo e Thereza nunca mais se encontrariam, nem numa loja de ferragens na secção das iluminárias, não estavam afinal feitos um para o outro; os engenheiros electrotécnicos servem também para isto: para separar as águas, para fazerem as electrolises dos amores, para dar às mulheres a possibilidade de se vingarem dos homens que um dia desdenharam o oxigénio da pradaria.

Só que Teresa era tão bonita, com uns cabelos bem negros, com um olhar tão bem rasgado, «cabrão do engenheiro», pensava Lorenzo, mas só pensava de vez em quando.

Algum dia também é existência. Era essa a esperança de Lorenzo.


Como se fabricam os líderes partidários é a questão que deixa no ar o Terras do Nunca, a propósito do granel a que se assiste na linha de montagem do Largo do Rato. Ora ele veio de férias, parecia cheio de garra, mas foi outra vez de férias, só que já se sabe: uma pergunta do Terras merece sempre resposta, e o dicionário não ilustrado acho que nunca tinha tido esse privilégio.

Algumas das características principais das fábricas de lideres partidários na entradas 847 a 857



Matéria-prima – Em princípio qualquer coisa serve, mas o essencial é que seja conhecido o lote, porque se houver problema há que saber identificar a quem pedir responsabilidades



Cobranças – É crucial ter a certeza de que o putativo líder é bom de contas, ou seja, ele tem de estar consciente de que tem de pagar a quem deve eleição, e isso é bem mais importante do que fazer o que deve com ela.



Logística – Será determinante aferir se o produto é de fácil manuseamento porque senão esturra-se o dinheiro todo em empilhadores. As modernas tendências são o uso de embalagens ligeiras para qualquer pessoa poder pegar nelas sem dar cabo das costas, e que depois não atrapalhem muito quando tiverem de ficar na prateleira



Resíduos – O fundamental, vendo bem, é que depois de bem espremido, o novo líder possa ser depositado num aterro distante e bem drenado.



Consumo de energia – Apostar na renovação é a opção da moda, mas acaba por ser muito melhor trabalhar em puro circuito fechado, pois nada se perde e até dá para ir purificando ao mesmo tempo.



Comercialização – Face ao incómodo que poderia provocar a venda do líder no esquema de porta-a-porta, a melhor opção é que seja mesmo um bom produto de catálogo.



Meios de financiamento – A verdadeira alavanca está, como se sabe, em nunca trabalhar excessivamente com capitais próprios, ou seja, se for para queimar um líder o melhor é experimentar primeiro com os capitais do alheio.



Controlo de qualidade – Estando garantido o processo, poupa-se bastante porque não é preciso estar constantemente a testar o produto. Só que o líder, convenhamos, acaba por ser um produto especial, porque até é ele muitas vezes que define as variáveis do processo. Modernices, que nos lembram que a revolução industrial já foi há muito tempo, apesar de nalguns casos ainda cheirar a queimado.



Recursos tecnológicos – O aparelho partidário tem também esta peculiaridade, com uma boa manutenção evita-se muito investimento desnecessário, desde que não se esteja sempre a querer mudar de tipo de produto, claro.



Sistemas de informação – Essenciais como se sabe, pois a melhor maneira de gerir a ignorância é albardá-la de dados. Os líderes em fabricação têm sempre de ficar bem a encabeçar uma listagem de fichas técnicas



Estratégia de produto – Apesar de existir a tendência de apresentar inovações constantes e de ter uma gama alargada de soluções para líderes nos catálogos da marca, convém não fugir muito do básico porque senão baralha a clientela.
O dicionário não ilustrado já deu bastante do seu corpinho a tratar dos vícios do poder, por isso hoje em estilo de veraneio vai tratar dos vícios, ou dos tiques pronto, de quem não detém o poder. Entradas 837 a 846.



Dizer mal – É a maneira de ter sempre os pés quentinhos sem necessitar de caminhar muito para exercitar a circulação.



Encapotar a cobiça – Como quem usa a borracha mas para disfarçar os males de piç... ( não me contive)



Condicional ( abuso do) – Técnica sofisticada, mas que vai-se a ver, mais não é mais que a música que acompanha o fado do “ai se eu mandasse”, como qualquer comichão que gostaria de ser alergia.



Desvalorizar – O que se faz ao uso, para satisfazer a idolatria malévola duma posse ausente, tal como reage uma mola da roupa que sabe nunca poder vir a ser gancho para o cabelo.



Agoirar – Acto de grande magnanimidade que só é ultrapassado pelo de desejar boa sorte, tal como o sonho duma calosidade é ser vizinha duma unha encravada



Cochichar – Substitui bem as pastilhinhas para azia, mas inesperadamente não evita as da rouquidão, porque muitas vezes se acaba por ficar de boca aberta.



Rir de lado – Disfarça a ruga provocada pelo despeito, e ajuda a camuflar uns bananas desenxabidos que no fundo apenas recalcam o desejo de serem uns morangos com açúcar.



Viver nas entrelinhas – Ginástica que está ao alcance de quem não tem músculo, nem balanço suficiente, para fazer piruetas na corda bamba, ou seja vício de piercings que um dia sonharam ser berloques.



Ser pirrónico – Quando o efeito se confunde com o processo. É a possibilidade de todos sermos uma espécie de Wittgensteines de cordel, e acaba por ser o destino dos que não passam de meras pontas espigadas que um dia sonharam ser caracóis.



Sentir-se uma ilha de seriedade – Espécie de vaidade do vulcão que, foi-se a ver, só largava pus em vez de lava, e a ilha assim parida não passou duma borbulha que se calhar um dia sonhou ser furúnculo.

Noites transitórias





Um dos episódios da vida de Jesus que sempre gostei foi o da “Fuga para o Egipto”, pelo que representa e (é pá agora de repente começou a dar na MTV um teledisco do George Michael num ambiente debochado e bacanalizante, não sei será a melhor inspiração para escrever isto, mas adiante) para além disso porque lhe estão associadas belíssimas obras de pintura espalhadas por todo o mundo. E o que me trouxe mesmo até aqui a este tema foi ter reparado subitamente numa dessas pinturas que infelizmente nunca tive ocasião de apreciar ao vivo: trata-se dum “Descanso na fuga para o Egipto” do Orazio Gentileshi, e que está no museu de Birmingham. Apesar de O.Gentileshi sempre me ter parecido que pouco se “desfez” do seu mestre Caravaggio ( ao contrário da sua filha Artemisa, por exemplo), até esteve benzinho neste quadro. São José dorme esparramado de cabeça tombada, enquanto N. Sra dá de mamar ao menino Jesus. Nada demais. O burro observa, e o realismo do quadro faz o resto “enfiando-nos” por ali adentro. Eu penso muito no coitado do S. José. Aquilo deve ter mesmo sido “barra pesada” para o tipo. Primeiros, um anjo diz-lhe que a moça com quem ele se vai casar vai ter um filho mas que não é dele, e como se não bastasse o miúdo é logo o messias de que todos andavam a falar há séculos, vai daí, segundos, ainda mal refeito do aparato todo feito pelos reis magos, aparece-lhe outro Anjo, ele teve ter “ganho um pó” a anjos que só visto, e diz-lhe ( em latim, os anjos falam sempre em latim, para dar mais sainete) : “Surge et accipe puerum et matrem ejus et fuge in Aegyptum”, o que quer dizer em linguagem do povo: «Sebo nas canelas, pega no puto e na tua miúda e põe-te ao fresco, que isto aqui pode azedar para os teus lados, por causa do sacana do Herodes». S. José pensou que o Anjo estava a gozar com ele por causa do «põe-te ao fresco», porque aquilo no Egipto já naquela altura era uma canícula dos diabos, mas resignado lá pegou na trouxa, conseguiu convencer o burro e abalou, e nem sequer teve tempo de pôr as vacinas do miúdo em dia.
O cristianismo é também uma lição para o estudo da mobilidade dos recursos e para a globalização, mas não é isto que me traz aqui agora. Este episódio da fuga para o Egipto está igualmente recheado de pormenores pitorescos importados dos evangelhos apócrifos e muitos deles são recuperados pela iconografia, mas agora também não me está apetecer falar nem das árvores que se agacham, nem dos campos de trigo que crescem ao ritmo do cabelo embebido em kerastase, fico-me então só pela constatação desta realidade: a disponibilidade duma alma que confia, transporta uma força que não é perceptível a olho nu.

A Contra-reforma vai "forçar" alguma mudança na representação pictórica da Fuga para o Egipto, perdendo-se talvez a força de certa rusticidade da cena, e ganhando-se alguma sensibilidade quase idílica nalguns casos, por exemplo nas bonitas “fugas noturnas” de Adam Elsheimer. Mas aqui mais uma vez o S. José sai prejudicado, pois com alguma perda de protagonismo do burro, lá vai ter de ser ele a alancar com o puto às costas, substituindo, como dizem os eruditos, o “in utero” da Virgem pelo “in humero” do desgraçado do carpinteiro, que felizmente o era, pois estava talhado para ter de andar a construir mobília nova de tempos a tempos, dado que o IKEIA só acabou por ser descoberto alguns anos mais tarde. E reparo agora então que: quase sempre a força trazida pela confiança traz consigo algum sacrifício, e às vezes até alguma transitória “noite”. Mas compensa. Sempre.