Diz-me que blog não lês dir-te-ei quem és


Foi sem honra nem glória, seguindo os ventos que sopram, que este - quero dizer este aqui mesmo - absolutamente notável blog cumpriu há dias o seu décimo ano de existência, tão caprichosa quanto abnegadamente fútil. Incapaz de mudar a vida aos seus leitores, incapaz inclusive de ter leitores, soube criar uma austeridade avant la lettre: disfrutemos da parra na ausência da uva.

Almoços Grátis. série 3 [18]

O meu diarista português preferido escreveu que «na melhor das hipóteses, a vida é uma soma de ausências. Na pior, uma soma de omissões». Hoje terminei esta minha última temporada no restaurante da L. Fiquei com imensas coisas para lhe dizer, digo fiquei porque ainda estão aqui comigo, naquela zona da garganta que tem uma ligação directa com o saco lacrimal. Comi uma caldeirada que corria por fora do menu, aparentemente resultara de uma ida pontual e especialmente frutuosa à lota de Peniche. Por mais que me esforce não consigo destrinçar o raio dos peixes e também não estava com disposição para conversas taxidérmicas com nenhum empregado e muito menos com a L. Não sei ainda o que ela pensou destas minhas idas ao restaurante, ela às vezes diz-me qualquer coisa, ou manda-me uns recados, mas desta vez ainda não se descoseu (ausência, omissão?). Hoje apareceu na sala umas quantas vezes, acenou-me como quem foge para uma barricada, mas nunca chegou a insinuar que queria falar comigo (ausência, omissão?]. Já devo estar a forrar-lhe o baú das recordações, fazendo companhia a algum bicho da madeira que por lá tenha ficado a petiscar nas cartas de amor de alguém mais bem sucedido que eu. Comi uma sobremesa clássica de restaurante de combate, um bolo de bolacha, fresquíssimo mas previsível, e fiquei sem saber se ela terá remorsos das suas ausências ou se, pelo contrário, terá vaidade das suas omissões. Comigo. Em todo o caso o meu prémio de consolação só poderá ser um cantinho frio e seco na despensa da saudade. 

[fim da 3ª série. Citação do 'Diário da India' de Marcello Duarte Mathias]

Almoços Grátis. série 3 [17]

Estava um dia de sol abundante que entrava pelas janelas do restaurante ajudando a desenhar figuras geométricas de sombra por entre as mesas. Nada de artisticamente empolgante mas o suficiente para me distrair do essencial que era: comer. Devia estar há uns quantos minutos a distribuir olhares vazios pela sala quando me vêm exigir uma escolha de menu. Apontei para a cartolina plastificada e colorida sem olhar e pouco tempo depois apareceu-me a rapariga dos molhos com uma cabeça de pescada estendida numa travessa e um sorriso também travesso a atravessar-lhe a cara, da rapariga, não tanto da pescada. Teria mesmo apontado para aquela escolha ou seria ela a aproveitar-se? E traria aquilo alguma mensagem implícita? Ficámos a olhar um para o outro durante alguns segundos, cada um tentando sacar algum sinal que lhe servisse, mas julgo que quem nos visse asseguraria estar a observar um casting para múmias. Faço muito bem de múmia, benza-me Deus, eventualmente farei até um cadáver digno, mal empregado para crematório. Mas, na altura, presenciando o espectáculo dado pela corvina, não pensava nisto, fabulava apenas analogias possíveis para aquele prato e só me aparecia o bom do S João Baptista à imaginação. Seria essa a mensagem? Todos teremos uma Salomé à nossa espreita? O currículo duma mulher far-se-á com as cabeças que cortou ou com as cabeças que desprezou? Pedi um kiwi e larguei o pasto ainda a contar as grainhas esquecidas no céu-da-boca.

Almoços Grátis. série 3 [16]

Hoje apeteceu-me começar pelos doces. Pedi um gelado para começar, para me encher logo à partida. Lançaram-me uns olhares estranhos mas não passou disso, sentia-se conformismo no ar. Era um dia calmo no restaurante, mais de meia casa mas de gente sossegada, sem exigências especiais e também sem grandes intimidades com os empregados, tirando numa das mesas em que estava um tal de S. que tinha sido sócio do pai de L. no arranque do restaurante e por quem ela tinha – sempre teve - um certo fascínio. Cheguei a falar com ele uma ou duas vezes, era um tipo cheio de interesse e via-se que olhava para a L., para desgosto dela, com um carinho paternal. Hoje vivia entre Angola e cá, seguindo um roteiro muito preenchido e não se percebia bem se a vida lhe corria de feição ou apenas geria a fortuna como quem gere a gaveta das peúgas. Depois do gelado pedi uma espécie de empada de lebre, um prato com ares alentejanos e que, obviamente, não encaixou bem depois dum gelado. É irritante quando queremos subverter uma ordem qualquer e a coisa não nos corre bem. A L. depois de cumprimentar S. chegou perto da minha mesa e perguntou se se podia sentar. Estava com um ar triste e cansada mas ainda foi buscar recursos para me dar um sorriso pelo qual eu ainda nada tinha feito por merecer. Desde que a conheço que é a única pessoa que eu sinto ter de merecer. Isto é uma fragilidade de merda, sem qualquer explicação e que me condiciona como se fosse uma dor lombar que me faz andar de lado a pedir licença às costas para endireitar o pescoço. Peguei-lhe na mão, algo que não fazia há anos e subiu-me pelo corpo (também desceu) a desagradável sensação de que a tinha perdido. Comemos um gaspacho juntos e eu saí ainda com os lábios vermelhos a ruminar à volta duma tal de sorte macaca.