Julia Sardinha

Nascera numa desova perto de Peniche, cedo fora bem recebida no cardume e a sua primeira excursão de treino foi tão bem sucedida, que logo passou a responsável pela carreira de Leixões, sempre na bisga e sem encontrões. A sua melhor amiga na altura era a Ritinha, uma petinga de se lhe tirar o chapéu mas que, sem sorte nem arte, acabou entalada nas guelras dum espadarte enjoado de carapau. Desde a mais tenra idade Julinha se destacou pela forma como se esquivava aos predadores da costa, entrincheirados nas águas turvas, e dizia-se que a sua barbatana dorsal iria deixar muito arenque de boca aberta e espinha dobrada; seria safada. O seu sonho era espraiar-se numa enlatada gourmet, banhada de azeite virgem, tratada pelas mãos dum conserveiro experiente e cortês que zelasse dos seus belos omegas3 destinados a proteger corações com ânsias de vasculação. Namorou com Nemo, inspirou contos para crianças de escritores com excesso de imaginação, entrou em dois fados castiços, disfarçou-se de moby dick numa festa de carnaval das cavalas de Viana do Castelo, entrou numa receita com marmelo, passou uma noite ao luar dentro dum búzio oco, e foi madrinha de casamento de um choco, que se imortalizaria em tinta dum quadro de Soulages. Só morre o que mexe, mas conseguiu fugir à tomatada e ao escabeche, aos restaurantes chamados Belmares, à brasa, e aos santos populares. Fingiu-se fina, fingiu-se grossa, mas acabaria estaladiça e untuosa. Fritinha. Servida num prato de entradas juntamente com Luisinha, Miriam e Marisa, concorrendo com um pires de linguiça; boas entradas.

bailoutame mucho

1. política

Já há uns tempos o nosso Sócrates (sócrates deverá ascender à categoria de 'político de estimação', uma espécie de tamagoshi nacional) disse - estará o vasto auditório recordado, certamente - que ainda estaria para nascer quem reduzisse melhor o déficit do que ele. Há poucos dias Cavaco informou-nos que ainda teríamos (não sei se todos ou se só alguém em especial) de nascer duas vezes para ser tão honestos como ele. Enquanto aguardamos pela proposta de renascentista de passos coelho, confirmamos agora que Portugal-nação pode vir a encontrar a sua vocação como barriga de aluguer para políticos sérios e poupados desde que - um pormenor importante - devidamente fecundada no local próprio (sodomizarem-nos não resulta, já deviam saber). O recuo na primeira leva de 'cheques bebé' ficou assim explicado, só terá direito a essa verba a pessoa que nascer duas vezes, ou , no mínimo, que possa garantir formalmente estar ainda para nascer outra vez. Todo o português que nasça apenas uma vez está destinado à desonestidade e ao esbanjamento. Aconselha-se, por isso, a classe profissional das parteiras a darem o nó no cordão com muito jeitinho porque a partir de agora vai ser necessário desatar e atar outra vez. Avisa-se também a classe obstetrícia e ginecológica em geral que todo e qualquer rebentamento de águas deve ser cuidadosamente acompanhado pois a reserva estratégica de liquido amniótico tem de ser acautelada, a fim de secarmos em definitivo a fonte de perdulários e aldrabões que tem sido a nossa estirpe.

2. bola

Cumpre-me informar que, naquilo que é realmente importante, este ano trouxe mais do mesmo: nem uma grosa incandescente pelo cu acima poria os cabrões dos lagartos a jogar decentemente à bola. Gostaria de saber o que pode fazer um pai para manter os seus filhos fiéis a um clube que os faz passar vergonhas com os colegas, e que inclusivamente os pode levar a desconfiar da capacidade paterna para lhes proporcionar uma vida com mínimos de confiança, serenidade e algumas farripas de felicidade, quando não mesmo desconfiar da sanidade mental do progenitor. Sim, educar como, nestas condições de achincalhamento moral!? Como ajudar a destrinçar o certo do errado, o bem do mal, o amargo do doce, a barriga do rochemback da coxa da claudia vieira, quando aparentemente lhes abrimos o caminho para se enfiarem irracionalmente no maravilhoso mundo do frangalho e da derrota. Só um pai Sportinguista pode realmente perceber o alcance de uma crise.

3. gajas

Uma das conclusões mais dolorosas que temos de tirar para este ano é que não deu ao plasma nenhuma nova sex symbol de que o país se possa orgulhar e inclusivamente ainda deixámos fugir a orsi feher para o atletico de madrid. Como sabemos o prazo de validade da sex symbol portuguesa cifra-se nos 18 meses (está entre o queijo flamengo e o miolo de camarão) e se não aparecer nada de novo poderemos ter de voltar a descongelar uma Diana Chaves ou parecido. O desfoque provocado pelos planos tecnológicos e pela pressão no rating da república permitiu inclusive que a nova namorada do ronaldo se viesse imiscuir num território que deveria ser um reduto exclusivo da maminha e do rabo nacional. Se há coisa que esse uiquiliques devia pôr a mão era nisto: português que seja apanhado a babar-se perante febra de importação não merece perdão.

Para desenjoarem das listinhas de livros

1. pmés do ano

Grupo GiSiFex, composto por:

Giralda & Gomez, lda - empresa do sector de materiais de construção, líder no ramo do soalho flutuante no distrito de Oliveira do Hospital, importador exclusivo da marca croata de rodapés Pisex, 5 vendedores a tempo inteiro, 2 a tempo parcial, 3 engenheiros de ambiente estagiários no departamento do pós-venda, frota com 3 renault kangoo e uma Transit em leasing. Gestão séria e familiar, apesar da secretária Belinha ter dormido duas vezes com o chefe da contabilidade. Dois apartamentos para venda em S. Gião recebidos como dação de pagamento dum construtor de Arganil. Promoção fracassada de diluentes suecos 'Herlander' no Natal. Telefone e electricidade cortados na Páscoa, subsídios de férias pagos em espécie com torneiras de duche e azulejos de imitação de viúva Lamego.

Silicabrase, sa - empresa do sector dos abrasivos, pequena instalação fabril em S. João da Madeira e escritórios em Águeda. Forte penetração no mercado espanhol e russo. Director comercial fluente em línguas e patente exclusiva para a península do processo de fabrico Holandês 'Radromeer' célebre pela campanha fracassada 'lixa mas não fode'. Venda apenas a clientes industriais ou grandes distribuidores com armazéns próprios. Dois lay-offs de 15 dias em 2008, 1 contra-ordenação da inspecção de trabalho em 2009 por excesso de horas extra de três trabalhadoras moldavas e duas coimas por descarga ilegal de 5 litros de aguarás chinesa em 2010. Processo Cível movido pela empresa de papel higiénico 'Sófete' que reclamou uso indevido da tarjeta 'lisinho & limpinho' nas embalagens de lixa nª 3 da campanha de bricolage dos supermercados Pimenta da Azambuja.

Fedintex, lda - empresa possuidora da rede do master franchise das perfurarias Lulu & Sandra com forte implantação em centros comerciais no concelho de Loures. Lojas com 200 a 500 m2, venda personalizada de decoração de beiços e refrigeração de axilas. Representação exclusiva para portugal da marca mexicana de batons 'Bijoulini', da marca uruguaia de escovas 'Desfrizola' e da marca de implantes mamários do suriname 'Nigella'. Primeiros problemas técnicos com um lote de verniz cor de macadamia que apresentava fissuras ao fim de 3 dias, respectiva devolução sem reembolso e duas livranças por pagar. Uma grande promoção de stick desodorizante no S. Martinho para escoamento de stocks e realização de liquidez acabou por ser um fracasso e foram vendidos ao desbarato para uma manifestação de depositantes do BPP do distrito de Silves.

2. corninhos do ano

Deolinda Bastos - Chefe de repositoras da cadeia de minimercados Pimenta da Azambuja. Namoro sério durante dois anos com Julio Raposeira, serralheiro efectivo nas oficinas de reparação auto da Hyundai da Alhandra. Primeira experiência sexual conjunta num fim de semana em Oliveira do Bairro e amor oficialmente declarado em jantar a dois (se descontarmos uma tia avó de Julio com diabetes e surda que nem um calhau) no restaurante Luz de Benfica-grelhados no carvão. Juras de fidelidade eterna num domingo gordo em Torres Vedras e primeira menstruação com atraso nos santos populares; falso alarme, aparentemente efeito secundário duns ovos escalfados comidos em casa da mãe de Deolinda, senhora de recursos, e dona duma pensão (de bem) em Sacavém. Luis Gonzaga encontrava-se na Azambuja perdido quando entrou no minimercado Pimenta para comprar um pacote de filipinos. Deolinda ofereceu-lhe umas shortcake embaladas a vácuo que rapidamente se transformaram em shortqueca atrás dumas paletes de diospiros por influência do paleio insinuante e sedutor de Gonzaga, vendedor de apartamentos num empreendimento de luxo em Souselas que utilizava materiais fornecidos por Giralda & Gomez (vide supra)

3. Ministro desconhecido do ano

Cecília Bordalo - responsável pelo ministério do Imaginário Nacional. Destacam-se duas entrevistas a Mario Crespo (uma a meias com um cozinheiro da Marinha Mercante), uma capa no Jornal Voz de Viseu aquando do aniversário da 1ª comunhão de Viriato e uma jantar de beneficência com Soraia Chaves a favor das vitimas dos Descobrimentos. Responsável pela campanha de lançamento da marca 'PH' ('Pobres mas Honestos') revelou-se influente no executivo quando fez obrigar os seus colegas ministros a usarem ténis Sanjo durante as visitas de Estado. Durante a assinatura do Tratado de Lisboa foi responsável pelos salgadinhos e pela tradução para mirandês. A partir de Setembro acumulou com as funções do secretário de estado que entretanto teve de sair para ocupar o seu lugar de administrador dos jardins botânicos.

4. Cobrador de Impostos do ano

Rui Silas - funcionário da secção de IRS da 4ª repartição de finanças da Gafanha da Nazaré. Responsável pelo record de 200 penhoras de mobílias de sala de jantar, 153 edredons de penas e 89 botas de cano alto. Candidato ao prémio 'Colecta d'Oiro' pelos serviços prestados na detecção de falhas em facturas de farmácias de benuron e adalgur.
O seu trabalho de proposta do modelo de alargamento do conceito de mais valias realizadas mereceu uma menção honrosa no concurso europeu do 'Saque & Siga' e pela terceira vez consecutiva foi eleito 'Teixeira do ano' pela sua ideia do 'arredonda fiscal' em que cada liquidação de IRS seria sempre arredondada para a dezena de euros superior sob pena do pagamento ter de ser feito com notas de 5 euros terminadas em 11.

5. Beneficente do Ano

Julio Vargas - sócio nº 234 da secção sul da associação 'Amigos do Bem Fazer', sócio nº 327 da secção de Odivelas da 'Charité2000' e chefe da secção de arroz carolino em pacote do banco alimentar da Arruda dos Vinhos. Responsável pelo protocolo com as lojas de pronto a vestir Repolho & Bilro, que dão um desconto de 25% em malhas a todos os benfeitores da associação 'Repele Tristezas' com sede no distrito de Portalegre. Grande impulsionador da campanha 'Alcatra por Amor' que conseguiu reunir 200 mil croquetes numa sessão de cozinha pública na ponte da chamusca. Em Julho ajudou a lançar o cartão 'mastercardo' que permite a acumulação de pontos nas distribuições de sopa quente, e que permite a cada 500 pontos uma entrada no balneário do benfica e uma sandes de paio autografada pelo Oscar Cardoso.

6. Paneleiro do Ano

Vicente Catita - descobriu a sua orientação sexual quando se apaixonou pelo tubo de escape dum Seat Leon no festival de tunning da Cova da Piedade. Primeiras calças justas compradas nos saldos da Minimo Dutti do cascais shopping, e primeiro beijo na boca a Xavier Pontiac, ilusionista e empregado do bar no centro cultural e recreativo de Trajouce. Revelada a sua opção sexual no forum da tsf sob o nome de Silvio Bexiga e primeira manifestação pública num festival de sócias de mickael jackson em Aveiras de Cima. Portador do célebre cartaz 'pelo direito à diferença e à igualdade e a tudo o que tenho direito' nas manifestações de apoio à lei do acasalamento jurídico de homosexuais. Primeira dúvida-de-orientação quando levou a mijar à rua a cadela Sininho da sua vizinha do 4ª esquerdo, dona Dulce Firmino. Casamento com Ivo Sampaio (ex Irene Sampaio) em Setembro, alianças compradas no leilão da casa de penhores 'Reluzia' em Elvas. Eleitos casal do ano pela revista 'Glamure', distribuída nas perfumarias Lulu & Sandra (vide supra) e patrocinada pela rede de oculistas 'Utóptica'.

e para quando uma lista de anjos do ano?

Como sabemos Deus Nosso Senhor tem montado e em funcionamento um esquema tipo wikileaks desde tempos imemoriais, totalmente pensado para que, quando se realizar o Juizo Final, o lavar da roupa suja se verifique de forma ordeira, fundamentada e sem percalços relacionados com uma deficiente interpretação dos factos, ou como se diz no cânone moral, dos pensamentos, palavras, actos e omissões.

O primeiro encarregado-chefe desse departamento foi o Anjo Wilfredo Kirquegardo Leandro Kustódio que se notabilizara desde muito cedo por ter conseguido manobrar e controlar uma rebelião de bactérias no ano seguinte ao big bang. No seu curriculo contavam igualmente a erradicação definitiva do anjo AlaricoTinto por ter andado a bufar coisas maradas a um monhé chamado Maomet, fazendo-se passar pelo seu primo anjo Gabriel, e uns anos mais tarde conseguiu reunir as provas conclusivas para enfiar na solitária o anjo Hilário da Purificação que se tinha disfarçado de indulgência plenária num sonho daquele monge nervoso de seu nome Lutero. Tudo teria corrido bem ao anjo wikileaks não fosse ter sido apanhado a traficar aparições com uma virgem mártir da Alsácia que fez queixa dele por promessas não cumpridas relativas a milagres com princesas austríacas frígidas.

O Altísssimo teve então de fazer uma reestruturação deste serviço e, ao abrigo duma legislação de flexisegurança, colocou o Anjo Joaquim Roçou na chefia, acumulando com o cargo de treinador da selecção de danças de salão. Joaquim Roçou era um anjo com bastante iniciativa e ao assumir posse deu logo nas vistas, quando se fez disfarçar de bom selvagem e acabou por provocar a Revolução Francesa.

Mas Roçou revelou-se um anjo ansioso e, uns tempos depois da viragem para o século vinte, considerando que o mundo estava calmo, e a efervescência revolucionária se confinara ao panfleto e às bebidas generosas, pediu transferência para um departamento que estava a dar o seus primeiros passos (uma cena interna do Paraíso relacionada com os crimes de asa branca envolvendo alguns anjos famosos) obrigando o Criador a mais uma alteração tendo escolhido para o cargo o Ancanjo Juliano Assanhado, um rapaz da nova fornada, recém saído dum programa de novas oportunidades para anjos que tinham sido apanhados na malha do doping (com a grande depressão bastantes anjos da guarda tiveram de ficar a acompanhar 3 ou mais pessoas em simultâneo, o que levou muitos a terem de se socorrer da nandrolona).

Juliano Assanhado em poucos anos conseguiu arranjar material para 2 guerras mundiais e uma revolução comunista de bónus, não se via tal animação desde os tempos áureos de Lucifer, aliás, na portaria de Éden Celeste durante esse período fizeram-se fortunas em horas extraordinárias (por uma questão de principio estava vedada a contratação de temporários ao purgatório) para receber toda a sorte de clientela. O manancial de informação sobre os índices de CHA (Capacidade Humana para a Asneira) que foi recolhida sob o consulado de Assanhado constitui ainda hoje um património de valor incalculável (inclusive a comissão instaladora do Juízo Final já montou uma barbarioteca para poder passar uns documentários na fase de rescaldo do armagedeon enquanto o pessoal estiver nas salinhas de espera, ou a trocar de roupa para treinar o número do fim do mundo em cuecas).

Esta actividade milenar de ir retendo os segredos mais recôndidos da alma humana, designadamente as zonas limítrofes do penico onde muita da mijinha vai parar, é parte essencial do mistério da criação e é bastante claro que se Deus não tivesse entendido que a merda era um elemento chave do sistema teria deixado o esófago ligado directamente ao cu.

Camões perdeu o emprego

Como sabemos, Gonçalo M Tavares desde o dia da 1ª comunhão escreve um livro por fim-de-semana. Com a profusão de fins-de-semana prolongados e pontes não seria de estranhar que nalgum destes acabasse mesmo por escrever uma versão pessoal dos Lusíadas; o que veio a acontecer e dar à estampa recentemente sob o título de 'viagem à índia' tendo recebido mais encómios que os muffins da nigella lawson.

Face ao inesperado, o Irritipsilon, suplemento literário do Purgatório, - que se dedica a acompanhar a evolução das obras dos seus residentes - resolveu entrevistar Camões no sentido de obter algumas reacções sobre este inesperado acontecimento literário ocorrido na crosta terrestre.

Luis Vaz encontrava-se na sauna a ouvir um disco dos tindersticks e a preparar uma versão pessoal de 'o crime e castigo' para frades beneditinos com um herói chamado Ismael Karenine e entitulado 'as velhas da taprobana'.

Irritipsilon - Sr Camões, diga-nos, quais são as suas primeiras impressões da viagem à índia do gonçalo m tavares, e da colagem que é feita aos seus lusíadas?

Sr Camões - oh, infantes, primeiro atravessai mares a nado / fazei só c'uma mão a letra de um fado / tapai um dos olhos com uma casca de figo / e depois, sim, vinde falar comigo

Irritipsilon - Sinto-o um pouco acossado, até há pouco era intocável, e agora vêm...

Sr Camões - nunca da ira retirei favores/ sempre o destino me foi trabalhoso / e não andei a sulcar o mar e a desbravá-lo/ para agora me virem chatear com um qualquer de gonçalo

Irritisilon - Dizem os especialistas da crosta que se trata de um novo monumento literário que irá perdurar pelos séculos...

Sr Camões - oh, instrumento da triste história universal do aproveitamento / ruína do sangue de viriato / fica aqui o meu lamento: / quando esgotada a lebre é entronizado o gato

Irritipsilon - Mas não pensa que esta renovação da epopeia num estilo semi-existencialista poderá ser benéfica, até pela curiosa originalidade, para as letras portuguesas?

Sr Camões - revolvo a memória da minha mágoa / ditosa a flama que tudo arde / mas quando se confunde o fogo com a água / até o ulisses se pode amancebar com o sartre

Irritipsilon - Mas não acha que a alma desencantada do português moderno também merecia a sua nova tragédia?

Sr Camões - a alma é um animal que não repousa/ mais honesto não há nessa insaciedade/ por isso o tal tavares fica a meio da cousa / quando diz que a literatura não tem ciúmes da realidade.

Irritipsilon - Mas não acha que Gonçalo M Tavares veio destapar um compasso novo para o ritmo interior da escrita em português?

Sr Camões - vocês, das revistas literárias / quando o açúcar açambarcado vos falta / põem-se a lamber as canas várias / à procura d'adoçante q'agrade à malta

Irritipsilon - Mas isto da literatura não será um eterno jogo entre a ilusão e a desilusão? entre a descoberta e o encobrimento?

(lembro aqui que a semi-pena a que Camões ficou sujeito nos seus 3.270 anos de purgatório foi a de ter de fazer 15 piscinas diárias levando numa mão um exemplar da saga do gilgamesh ilustrada por Eládio Simões um cunhado do fernão mendes pinto que era o desenhador de motivos campestres para os cortinados dos palácios da corte de castela)

Sr Camões - oh, que espirradelas de fontana sem piazza / não sabeis perguntar algo que não me irrite / ainda vos enfiava pelo cu um soneto em brasa / não tivesse no ombro a porra duma tendinite

Irritipsilon - Acha então que os críticos da crosta estão a levar o Tavares ao colo?

Sr Camões - acho que se cansaram das coisas que se percebem / levados que foram pela voracidade do enigma e do pretexto / e como já não é pela métrica que os versos se medem/ até a épica dum tavares faz do lobo antunes um antónio aleixo

Irritipsilon - Mas não considera que quando Tavares escreve no que-antes-era-seu-e-agora-também-é-dele canto IX : «Ela quer, Bloom hesita. Os dois avançam, a coisa faz-se», acaba por inventar a 'foda ontológica'?

Sr Camões - perca-se, enfim, já tudo o que esperei / um par de nádegas virou musa / um bobo sem piada tornou-se rei / as mamas já não pertencem a quem as usa

Irritipsilon - Não acredita, portanto, na renovação do ideal romântico, sob as vestes duma saga de desencantos intermitentes?

Sr Camões - o futuro quanto mais me paga mais me deve /por muito bom haxixe que se fume / por muito que seja o frio a derreter a neve/ quem não me engana é esse cabrão do Bloom

Irritipsilon - Safa, o senhor camões não aguenta mesmo o sucesso dos outros... pensa mesmo que consigo tinha acabado a tragico-maritimice portuguesa? fizeram-lhe algum mal?

Sr Camões - não pode mal haver para comigo / de que eu já não me possa bem livrar /se esses tavares esfregarem bem no umbigo / verão que ainda têm muito estafilococos para tirar

Irritipsilon - Credo! Olhe se o Shakespeare também tivesse ficado assim depois da Enid Blyton!? ...Então e o Dante depois do Corto Maltese!?

Sr Camões - enquanto o tempo o claro dia torna escuro / a vida vai pedindo às palavras para ocuparem o espaço / mas como elas vão continuando a erguer o seu muro / aconselho ao tavares mais umas garrafitas de bagaço

Irritipsilon - No final do livro GMTavares diz que «a ingenuidade é irrecuperável», pensa que este livro é no fim de contas um lusíadas para realistas preguiçosos?

Sr Camões - dei-vos uma realidade em decassílabo como benção / mas vós desdenhosos chamais-lhe epopeia pelos mares/ agora, quando me vierem pedir letras para o festival da canção / dir-vos-ei mas é para irem ter com o tavares.

(e assim termina o tríptico adventício a propos de gmt)

viegas perdeu o emprego

Já estava praticamente em paz com a minha consciência, e inclusive com um bom negócio já apalavrado com o inconsciente, depois da alarvidade do post anterior, quando sou desamparadamente confrontado com uma entrevista que o Gonçalo M Tavares deu ao pravda da united colors of blogotton. Vacilei. De vez em quando fico infectado com este vacilo.

Como qualquer sportinguista sabe vive-se no nosso clube, seguindo o país, um momento de grande glória sob o triunvirato sergio-costinha-bettencurte. Julgo, pois, que é o momento certo de darmos mais um exemplo a todos e enriquecermos o discurso da 'entrevista-em-futebolês', introduzindo no seu seio o perfume do literaturês, ou seja, aquele incenso inebriante que emana das entrevistas a escritores e que se poderia também resumir em futebolês pelo: ocupar o espaço do entre-linhas. As entrevistas as escritores são das melhores coisas que não servem para nada do mundo - bem acima das pinturas do vasarely ou das vassouras dos kits lareira - e são uma oportunidade única que um treinador lagarto não pode nem deve desperdiçar quando precisa de dirigir a atenção para tudo menos para o que se passa no campo.


E foi assim que o júri do prémio Goncourt se lembrou arrancar com a nova categoria de prémio para a 'melhor entrevista a treinador estrangeiro', ao que Paulo Sérgio se devia candidatar aproveitando para usar algumas passagens com que GM Tavares abrilhantou a supracitada entrevista; passo a exemplificar.

Prémio Goncourt - Diga-nos, Paulo Sérgio, acha que as suas tácticas são determinantes para o jogo?

Paulo Sérgio - Tal como GMT disse «gosto muito da ideia de que cada forma diferente de escrita marca logo o conteúdo do que escrevemos», eu também gosto muito de considerar que são as minhas tácticas que determinam a merda de jogos que temos feito; eu estou para o bom futebol tal como certos romances estão para a arquitectura de interiores. Estou a pensar inicir uma nova estratégia de jogo a que chamarei 'Bairro Barbosa'.

P. G. - Sim...então, diga-nos, por exemplo, que instruções tinha dado ao seu jogador Vucevic para este se ter posto com fintinhas junto à bandeirola de canto quando podiam perfeitamente ter tentado ganhar àquela equipa do miúdo rouco, que até tinha menos um matreco e jogava com uma maçâ podre?

P.S. Bem, eu tinha dito ao Vucevic que, tal como ao GMT, «o que me atrai não é tanto o obstáculo é mais a ideia do cantinho escuro», ou seja, ele que procurasse os lugares do campo onde fosse feliz que assim as coisas bonitas e importantes haveriam de aparecer...

P. G. Sim...mas...não apareceram!?...

P.G. - Repare, eu e os meus jogadores somos como o GmT: «o que eu quero é ir iluminando partes do mundo que não conhecia», e todos nós sabemos que a zona da bandeirola de canto é ainda um grande mistério para o mundo do futebol.

P. G. - Vejo que aborda o jogo duma forma muito pessoal...

P.S. - Eu sou muito gmtavaresiano na forma de ler o jogo, como ele diria: «instintivamente , quando recebo uma 'jogada', é como se me movimentasse em redor dessa jogada', olhando para a parte de baixo dos passes, das desmarcações, como se pudéssemos levantar a saia dos dribles». Os bons treinadores estão sempre a desbravar a intimidade do jogo mas sem o macular, «eu não quero impor-me ao 'jogo', tento sempre colocar-me na posição de receber aquilo que ele me quer dar»

P.G. - Será por isso que uma ou outra vez alguns treinadores estão de cócoras no banco a olhar para o campo?

P.S. - «O Wittgenstein tem uma frase que considero muito bonita em que diz que quando quer mudar de teoria muda o corpo de posição. Isto faz muito sentido». E, como diria gmt, (não sei se já me referi a ele) treinar «não é mais do que contar uma história, que é a história de uma ideia».

PG - Acha que o seu treino, as suas tácticas, são mais histórias ou mais ideias?

PS -«Esta divisão entre histórias e ideias é uma divisão incorrecta». Eu «sou claramente do mundo das ligações», vejo o futebol como um processo, uma constante criação, «a pessoa vai avançando, avançando e a certa altura está num sítio diferente. Está naquilo.» O jogo é uma sequência de aquilos e os problemas que nos vão confrontando são precisamente os calcanhares d'aquilos.

PG - E então, sr Paulo Sérgio, como consegue equilibrar o jogo que salta tantas vezes de aquilos para aqueloutros duma forma tão vertiginosa?

PS - Bem, como diria GmTavares (julgo até que já falei dele) «estamos num mundo em que a questão do actual e do importante se joga minuto a minuto» e a minha fórmula é sempre esta, eu abordo o jogo como se ele já tivesse acabado, volto a GmT: «eu trabalho em diferido»

PG - Será então essa a razão pela qual esta época contratou 35 defesas centrais para depois continuar a jogar outra vez com os mesmos que já tinham provado ser uma bela trampa?

PS - Escalonar uma equipa é uma tarefa muito delicada e é preciso estabelecer critérios, «porque pode estar tudo numa confusão total, podemos estar mergulhados em elementos distintos, uns que atiram para um lado e outros para outro; quando começamos a organizar isso por ordem alfabética, a coisa ganha logo uma ordem, uma mágica». Eu acredito na mágica da ordem alfabética para definir uma equipa titular, e esta mágica irá impor-se, tenho a certeza.

PG - Mas terá de concordar que até agora não se viu nada de jeito...

PS. - Muitas vezes o processo da vitória e do sucesso é «um processo em que aquilo que nos parecia claro e evidente se torna mais escuro, mais obscuro». Ser vitorioso é ser paradoxal.

PG - Mas não há aí uma negação do heroísmo tão próprio da magia do jogo, do desporto?

PS - «Isto segue a estrutura da epopeia, logo desde a tempestade, no início». A magia precisa que primeiro se instale a perturbação, a desordem, é dessa combinação, sequência mesmo, que resultará o sucesso, como diria gmt (que, julgo, já referenciei há pouco): «nós precisamos das duas coisas, não te esqueças, cuidado, aqui há um perigo, mas ao mesmo tempo também acho que o encantamento é fundamental».

PG - Então vê os seus jogadores quase como personagens?...

PS - Claro. Por exemplo, Vucevic «é uma personagem que sabe muito claramente que é uma personagem, ali não há qualquer tentativa de parecer real». Por outro lado, se repararem bem, o Matias Fernandez (um jogador que foi contratado através do Facebook), joga como se levasse o santo graal na mão...

PG. - Acha que isso dará resultado?...

PS. - Posso-lhe assegurar que se GmT disse que «quase podemos organizar o mundo a partir do que as pessoas levam na mão» eu penso o mesmo em relação ao jogo, por exemplo, o Postiga nunca larga o seu cubo rubik e muitas vezes tem de rematar logo porque tem de tratar dele dado que as peças encravam muito com o uso e com a humidade da relva.

PG. - Se nos pode satisfazer a curiosidade... o que é que o João Pereira traz no seu regaço?

PS. - O João Pereira é um caso à parte porque é um rapaz que não consegue estar parado e eu , tal como o GMT (não sei se ouviram falar dele), «tenho muito medo das pessoas que não sabem lidar com o tédio», por isso como é importante tê-lo sempre em actividade, não vá arrear em alguém, ponho-lhe sempre na mão um pacote de cajus para ele ir roendo.

PG. - Julgamos entender... Identifica algum momento que tenha sido o seu primeiro grande entusiasmo táctico?

PS. - No jogo «gosto de coisas completamente opostas»... por exemplo, tal como GMT, entendo que «a grande velocidade é muito violenta», mas ao mesmo tempo o 'tédio também é perigoso', por isso tento incutir aos meus jogadores o encantamento da zona da bandeirola de canto ou do circulo central, e nos dias mais luminosos digo-lhes para irem uma ou outra vez à meia lua da área. Aos 18 anos vi os vídeos de todos os toques de calcanhar de Roberto Baggio, hoje não sei se seria capaz.

PG. - Acha então que se pode pensar no jogo como um lugar caótico, cheio de micronarrativas?

PS. - É engraçado: «parece-me que as pessoas ou são muito do e ou são muito do ou». « Eu 'vejo sempre vários jogos ao mesmo tempo'».

PG. - É por isso que os seus jogos estão sempre em diálogo com outros jogos?

PS. - É evidente que toda a tradição cultural está presente, não se pode pensar num Polga sem ignorar que já existiu um Hugo, nem se pode pensar num Saleiro ignorando que já existiu um Purovic, não se pode pensar que começámos logo a perder com o paços de ferreira sem esquecer que perdemos uma final da taça uefa em casa depois de estar a ganhar ao intervalo. 'Qualquer jogo que se jogue é sempre uma ousadia', como diria o nosso GmTavares, de quem julgo já falei aqui à atrasado.

(é evidente que esta potencial - e claramente precursora - entrevista de paulo sérgio para ser bem compreendida teria de ser acompanhada da leitura da entrevista de gMtavares à tal revista Ler (trechos entre aspas), mas como esta não foi incluída no pacote proposto para a campanha do banco alimentar, lamento o incómodo)

e descansem pois ainda não viram os meus desenhos no ibrushes

Considerando que a análise política e a análise económica estão destinadas ao fiasco, sobram apenas duas análises decentes ao homem moderno, e inclusivamente ao clássico: a análise literária e a análise religiosa. Repare-se antes de mais nos termos, não se tratam de 'comentários', nem 'críticas', são mesmo 'análises', ou seja, para melhor compreensão do vasto auditório: a análise é uma crítica mas já com as devidas e desproporcionadas ambições dialécticas de síntese, de, se quisermos ir mais longe (e , meu Deus, quem não quer ir mais longe) de sublimação, de - mais longe ainda - criação; e, Santíssima, (Deus já tinha sido invocado há pouco e praticamente em vão) quem não quer ser criador, nem que seja de galinhas!

Hoje tratarei de analisar em conjunto os fenómenos 'Gonçalo M Tavares' e 'preservativo', ou melhor, expondo-os em conjunto, designaria esta análise por: 'Santo António perdeu o emprego'. Reformulo apenas para efeitos didácticos: Gonçalo M Tavares (do qual o seu último livro premiado à francesa é bom exemplo) está para o soit disant «fenómeno da literatura em português» como o preservativo está para a não menos soit disant «ética sexual católica». Poderia dizer-se que é uma análise sem futuro pois só lê quem quer e só fode quem quer; falso. Irão compreender-me, prometo.

Experimentem acompanhar-me. Ao lermos GMT estamos a entrar num universo misterioso que deveria ser preservado: o universo da impotência literária, ou seja, entramos num grande ovário de paredes polidas onde apenas chocalha um liquido amniótico chamado 'vocês-nunca-poderão-acompanhar-este-paleio-porque-o-meu-espermatozoide-era-turbo'. O universo literário de GMT funciona assim como uma grande menopausa, não precisamos de nos prevenir de nada; diria até mais, basta ler utilizando o método-das-temperaturas: se estivermos com febre aquilo desliza muito melhor. Por outro lado, a tendência processual (ou o processo tendente, como se queira) para a reformulação moral ( 'reformulação' é o termo canónico para relativização, sublinhe-se) do uso de um método anti-concepcional artificial (está em curso a criação da Alta Autoridade para a definição de naturalidades e artificialidades) equiparando-o a uma mera abstinência (e não há nada mais artificial que uma abstinência técnica, alerto para o facto) é efectivamente também o método literário específico utilizado por GMT: quando se pensa que uma razoável ideia ficcional, poética, lírica, está pronta para germinar naturalmente, choca repentinamente com uma barreira aborrachada de nonsense que a deixa ali a chapinhar com outras produzindo um conjunto leitoso de nhanha literóide que se transformará, se for devidamente acondicionada, em direitos de autor alguns meses depois. É, então, um processo que merece ser acarinhado, até mesmo subsidiado, se bem que isso agora já não seria tão bem visto, depois da interrupção voluntária do cheque-bébé.

Permita-se-me então rapidamente a síntese: A melhor forma que a ética cristã tem de abordar o grande mistério da concepção é fazer ver aos seus fieis que sto antónio pode ter o emprego em perigo quando foder se tornar um mero acontecimento meta-literário.
procura-se: têmporas em bom estado para temporizar.
procura-se: valor para juízos de
procura-se: silogismo com património para premissa com iniciativa
procura-se: salvação para governo de
procura-se: biografia urgente para sucesso inesperado
procura-se: cálculo para folha de
procura-se: tentação barata para pecado urgente
procura-se: medo com ambições a fobia
procura-se: ciclo para fim de
procura-se: novos destinatários para batata quente
procura-se: nascimento para renascimento
procura-se: número para cautela premiada
procura-se: regime para pacto de
procura-se: adamastor para decoração de tormenta
procura-se: santo para milagre em bom estado
procura-se: cadência para de

desclassificados avulsos sem alvíssaras

.

Procura-se: país de 8 letras, 3 sílabas e nenhum acento, a meio caminho entre o grito, o espasmo, a jaculatória e o lamento


Procura-se: soberana para dívida sem pedigree


Procura-se: uma medíocre realidade que com um sofrível enquadramento produza um razoável cenário para a criação de boas circunstâncias


Procura-se: boas circunstâncias que com um razoável enquadramento produzam um sofrível cenário para disfarçar uma medíocre realidade


Procura-se: república para bananas com experiência


Procura-se: indicador económico que permita a país que deu novos mundos ao mundo poder passar claramente para o pelotão da frente do dito, sem precisar de ir buscar outra vez as caravelas à doca seca.


Procura-se: rendimento para tributação séria


Procura-se: múmias viçosas para pirâmide social em fase de decomposição


Procura-se: país em desaceleração para localizar à volta de linha de alta velocidade


Procura-se: meios agradáveis e duradoiros que justifiquem fins desconhecidos e incertos


Procura-se: misantropo com experência para crematório em expansão


Procura-se: bois que se deixem chamar pelos nomes a fim de atestar frontalidade em governação de rebanhos.


Procura-se: pobreza sem rosto para mera identificação estatística


Procura-se: formação geografico-politíca sem tratado, para troca de experiências constitucionais com compromisso. Garante-se a mínima referencialidade.


Procura-se: decisões de fundo para país que vive no buraco


Procura-se: frentes para fugas


Procura-se: potência polenizadora para país a quem saiu o favo


Procura-se: fronteira para contrabandista


Procura-se: espelho que Deus utilizou quando nos criou à sua imagem e semelhança


Procura-se: vício ligeiro para privação urgente


Procura-se: algo para dar a Deus depois de César ter levado tudo


Procura-se: santo padroeiro para costume bárbaro


Procura-se: tábuas da lei para seita marceneirista


Procura-se: salão de cabeleireiro para culto pentecostalista


Procura-se: toda a parte para encontrar Deus


Procura-se: prova da existência de Deus baseada na capacidade masculina de caminhar com a virilha assada e continuar a dar bons conselhos.


Procura-se: pastor adventista, porteiro episcopalista, contabilista baptista e jockey pentecostalista a fim de criar projecto empresarial visando transformar o papel bíblia em papel cavalinho


Procura-se: Deus compreensivo para testar moral atraente e credo ambulatório


Procura-se: humorista católico para desenvolver rábula entre a pila de adão e a cabeça da serpente.


Procura-se: hábito nº 48, cintado, que assente bem em monge que está a emagrecer duma fé nº 54 sem jogo de cintura.


Procura-se: certeza intermitente para céptico em part-time


Procura-se: esfera armilar para universo em contracção, a fim de produzir efeito roca para distrair o menino jesus.


Procura-se: graciosa venalidade que possua o sabor do crime, o encanto da distracção e o bom juízo da virtude


Procura-se: descarada para transplante de libido


Procura-se: chão para pés habituados a pensar, e ar para cabeça habituada a estar enterrada na areia


Procura-se: problema fantasma para enriquecer vida desassombrada


Procura-se: ciúme terapêutico para insegurança patológica


Procura-se: somatização ligeira ao nível da epiderme para canalizar efeitos de desgosto amoroso, mas que não exija o uso excessivo de pomadas com cheiro a menta.


Procura-se: melancolia para evitar engessar uma memória traumática muito exposta


Procura-se: escrúpulo com ambições a paranóia


Procura-se: inconsciente com prestígio para acolher recalcamentos duvidosos


Procura-se: linguae para lapsus carente


Procura-se: pequenas angústias para degustação por mente capciosa em momentos de racionamento psicótico.


Procura-se: arritmia sobresselente para vida monocórdica


Procura-se: sono para terapia de


Procura-se: método descomplexado para satisfazer dúvida preconceituosa. Dialéctica sigilosa.


Procura-se: existência para justificar pensamento


Procura-se: ignorante para comprovar sábio


Procura-se: a tal coisa para coiso e tal


Procura-se: lei natural para resolver problemas artificiais


Procura-se: rebelde com causa para revolução sem consequências


Procura-se: badana rígida e que não desiluda uma contracapa excitada perante um prefácio atrevido.


Procura-se: tabuleiro de xadrez com peças dispostas a tudo


Procura-se: feijoada para diarreia sem álibi.


Procura-se: ecrã de alta definição para distinguir cópula justa em mercado regulado, cópula equilibrada em mercado liberalizado, e cópula ininterrupta em mercado protegido.


Procura-se: bom olhar de esguelha para quem não sabe dar a outra face


Procura-se: vesícula com más vizinhanças para bílis em expansão.


Procura-se: lua em quarto minguante para astronauta com falta de orçamento


Procura-se: olho de vidro para comentador prever os acontecimentos que vão estar na berlinda


Procura-se: história sobre crimes à dentada para pivot da continuidade escrever nas folgas


Procura-se: agent provocateur no sentido de obter argent pacificateur


Procura-se: o que fazer com os espaços vazios do tracejado


Procura-se: óptimo disposto a travar amizade com bom


Procura-se: anti-americanismo primário para aplicação posterior ao decapante russo.


Procura-se: folha caduca para dar lição a rei de copa arrogante


Procura-se: tragédia ligeira para guarda roupa reduzido


Procura-se: sevilhana para dar uso a par de castanholas


Procura-se: sócio com boas ventas para negócio que está no pêlo


Procura-se: singular de pose simples para acompanhante de plural majestático


Procura-se: ginásio em roma para treinar transalpinos e biblioteca em pisa para treinar itálicos


Procura-se: signo entre o gelatinoso e o crocante para novo zodíaco em formação.


Procura-se: jardim suspenso para sexo seguro


Procura-se: amores não correspondidos a fim de criar clientela certa para negócio de cartomancia


Procura-se: combustível fóssil para desenvolver zona de património arqueológico.


Procura-se: pénis de alcance intermédio para fornicação táctica.


Procura-se: general na reserva para invadir região demarcada


Procura-se: 2º coelho para rentabilizar cajadada


Procura-se: modelo de carica para fusão amigável entre sagres e super bock.


Procura-se: ideólogo marxista para elaborar regulamento de luta de classes em recinto coberto. Eliminatórias a duas mãos para facilitar a alienação e aligeirar o determinismo histórico.


Procura-se: cães que nem ladrem para a caravana poder passar em sossego


Procura-se: portantos para poupar tampoucos


Procura-se: comunistas dissidentes para purgas didácticas a efectuar com a máxima discrição, fornecendo-se verba extra para renovação de guarda roupa e penteado.


Procura-se: pessoa responsável para treinar responsos


Procura-se: pastorinhos disponíveis para aparição sobre floresta de espécies não protegidas a fim de inviabilizar projecto imobiliário.


Procura-se: testemunha idónea e alibi convincente para crime passional provocado por ciúmes injustificados mas arroz sistematicamente queimado


Procura-se: antropólogo com bom feitio e melhores intenções para transformar sociedade horrivelmente machista em ternura de berço patriarcal


Procura-se: cruzamento de bermas largas em fase de promoção a rotunda para acção de formação a entroncamentos afunilados.


Procura-se: crime de colarinho branco para encobrir pescoço de pele de galinha


Procura-se: adepto fervoroso para equipa anti pirética


Procura-se: pescoço de enforcado sem marca de corda para ilustrar torcicolos em aula de anatomia


Procura-se: novas raças para hominídeos imberbes, de sentimentos nobres, dados ao desenvolvimento de fungos e ao encravamento de unhas.


Procura-se: expressão brejeira que produza um insulto situado entre a zona pélvica e as relações de parentesco de 2º grau, e que possa substituir com ganho de exuberância onomatopaica a tradicional cona da (minha) prima.


Procura-se: buraco de snooker que na horas livres possa fazer de baliza de matrecos.


Procura-se: curva com sobreiro, para derrapagem seguida de embate frontal para teste de tratamento paliativo


Procura-se: cozinheiro waabita para confeccionar xiitas de escabeche com arrozinho curdo servidos em hachemitas de barro.


Procura-se: garanhão bem alimentado para fertilização in litro


Procura-se: estampa de mulher para relação serigráfica. Fornecem-se marcas de água.


Procura-se: dois figurantes para a dezena chegar à dúzia.


Procura-se: assuntos em súbdita dispersão para exercer o poder de síntese.


Procura-se: enólogo com saliva alcalina para desenvolver casta rica em taninos.


Procura-se: realista mágico para recuperar enredo fragilizado por duas gémeas fumadoras com artrose e um amante ambientalista tísico.


Procura-se: palavra que rime com flor de estufa e que esteja disponível para relação estável em refrão de três versos a adocicar balada sobre incompetências românticas.


Procura-se: democracia bem instalada para escoamento de excedentes de tiques de autoridade











 

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [12]

Na fase terminal do seu mandato, FMI revela-se uma mente em escassez de gases com poder combustível e avança por um iluminismo fin de siècle que, no caso, era moitier de siècle.


16 de Agosto de 2031

Hoje, durante a manhã, finalmente conclui o que anteriormente já intuí e mais atrás ainda pressupus: o saber é incompatível com o poder. De entre outras incompatibilidades recentemente epifanadas a que mais me surpreendeu foi a de que a própria intuição não coabita decentemente com a sensibilidade, chamando aqui sensibilidade àquela característica predominante nas criaturas que se especializaram em ser dominadas pela realidade; sendo que 'ser dominado' significa aqui 'absorver', o que é, assim, praticamente equivalente a 'dominar', concluo final, copulativa e arduamente: o mecanismo da intuição é inimigo da posse. Assim ficamos dum lado com o saber e a intuição e do outro com o poder e a posse. Felizmente (andava eu nisto) deu-me uma fome negra ao almoço e o Hélio Herpes da Cunha veio ter comigo, trazia um farnel de pães saloios com queijo aflamengado sendo notório o deficit, no caso, de vegetais. Falámos sobre fermentação leitosa e poesia galega, tendo-se juntado a nós a minha chefe de gabinete, que partilho com o ministro da cultura às segundas, quartas e sextas durante a tarde, e com o call center do Instituto de Socorros a Náufragos às terças o dia todo. Hoje, nos dias que correm, mais propriamente, as finanças públicas são um exercício combinado e iterativo de métrica e rima: vamos de sílaba em sílaba até à fonética final, e na última estrofe o mexilhão acaba sempre por aparecer porque tem a terminação mais requisitada. A L. hoje estava muito carinhosa comigo, parece ter adivinhado que estive numa récita da Florbela Tranca, aquela grande poetusa. A mulher em austeridade torna-se uma verdadeira predadora, ou seja, primeiro dá, sim, mas depois quer receber; em dobro. Vou dormir de banda pois parti uma costela a descascar um pistachio que confundi com uma santola (a ultima que vi foi no carnaval de torres em 2019 a fazer de cabeça do ministro da religião e das pescas). Tornei-me um visionário ao descobrir que quando nos diziam que Portugal era um país viável queriam dizer que teríamos uma boa rede viária para dar o salto.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [11]

O desligamento de FMI em relação à realidade torna-se mais evidente a partir do último trimestre de 2030, apontando já para a sua fase mais sur-mística que se desencadeará definitivamente no ano seguinte com a entrada em vigor do sistema de 'governação vigilante', no qual, em vez de orçamento, aquilo que resta do Estado é gerido financeiramente pelo sistema FGC: um fuzileiro, uma granada e um cofre.


3 de Novembro de 2030

Quando em 2027 o Velasco Porfírio Vicente escreveu o seu livro em prosa semi-automática 'Quem mais orça mais mente', eu estava longe de prever que me seria tão inspirador para o decreto que hoje finalmente consegui aprovar naquela que ainda se denomina Assembleia da república - se bem que alguns já lhe chamem acémbleia dado que não se vê lá nada do lombo vai para mais de 30 anos: a partir de 2031 deixará de existir orçamento. Por outro lado tenho pena, pois nos últimos tempos o orçamento era a minha distracção preferida desde que acabaram as crónicas daquele moço, o balenciano, que fazia a critica dum disco de rock parecer uma descrição da digestão conjunta do compal de papaia com queijo de Serpa mal curado. O meu último orçamento foi mesmo dos mais inventivos pois, entre outras medidas, consegui que cada família tivesse de dar de jantar a um polícia por semana, ou então optar por dar uma banheira de água por mês para os bombeiros, e assim garanti praticamente o auto-financiamento da segurança da nação, modelo esse que vai sendo progressivamente adoptado por todos os países da Europa que ainda vivem harmonicamente o multiculturalismo, como a Suécia, onde, segundo li hoje, até voltaram a nascer bebés loiros. Inclusive, sinto-me orgulhoso, - mesmo que o orgulho não seja um sentimento - pois este ano dizem-me que estou bem colocado para ganhar o prémio goncourt para o melhor benefício fiscal, com a minha ideia de que por cada badana apresentada numa repartição de finanças o contribuinte passa a dispor de duas refeições quentes, um duche de água morna e uma salada de carnes frias por semana a uma taxa de iva reduzida de 72%.
Não quero parecer indelicado neste diário, mas depois de ter almoçado uns filetes de chispe está-me a dar a volta à barriga e preciso de perspectivar um momento de introspecção retrospectiva.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [10]

Com o passar do tempo, o diário de FMI vai perdendo alguma colagem com a realidade mais próxima e imediata e vai derivando para um encharneiramento duvidoso com a linguagem que nuns tempos se chama psicadélica, noutros pop, e noutros uma trampa.


23 de Julho de 2030

Não fora um calorzinho estival que me percorre a espinha e hoje teria sucumbido ao gelo que a nosso atol financeiro não consegue fissurar quanto mais derreter. Infelizmente, desde a Reforma-do-paleio de 2025, as expressões que envolvam 'buraco' desapareceram da nossa terminologia oficial ou oficiosa, pois agora apercebo-me que o buraco tem algo de tão eloquente como útil: podemos lá esconder-nos, descansar, guardar segredos, tesoiros, espernear, espermear, e se ele for bem cavado e desenhado inclusivamente esticar as costas, ou até simplesmente ser esquecidos, algo que é, como se sabe, a camuflagem dos pobres. A seguir ao almoço consegui esquivar-me ao lançamento pela Roche Finance dum novo medicamento milagroso: o 'Keynesten'; trata-se de uma pomada que a economia aplica na zona lombar e que serve simultaneamente para anestesiar e para dizer às inflamações que façam de conta que são alergias enquanto não se sabe bem o que fazer. Foi o Velasco Porfírio Vicente que lhes escreveu a bula, «aplicar em camadas finas/ rodando sempre sem parar/ ou então, abrir um buraco nas minas/ e depois, puxar, puxar, puxar». Mas não deu para ir, tinha-me comprometido com o conselho de ministros a ir comprar uns rodapés ao ikea: já que andamos sempre de gatas, ao menos que tenhamos uma desculpa decente. Sinto que estou no topo da minha missão, naquele distinto lugar em que para saber a posição do Sol me basta observar para que lado os pássaros cagam.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [9]

O amigo de FMI, Velasco Porfírio Vicente, ia cimentando o seu prestígio e cada vez era mais falado para a nobelização. A nação tinha os olhos postos na sua métrica sui generis e FMI, à falta de buracos em minas de cobre, depositava nele grandes esperanças para trazer outra vez Portugal para a ribalta, depois de tantos anos na ribaixa.


26 de Abril de 2030


Já vi escrito há muitos anos, num comentário a Ovídeo, que o que distingue os deuses dos homens é que os primeiros escolhem as suas metamorfoses enquanto que os homens sofrem-nas. Dei-me hoje a pensar nisto por causa da última medida radical que tive de introduzir: dado que a cobrança do irs tem reduzido de forma drástica - 80% das pessoas trabalham hoje de forma graciosa, e apenas para passar o tempo entretidas - substitui este imposto por um outro que incide sobre os sinais exteriores de envelhecimento. Para poupar na papelada e no timbre manteve-se o nome IRS (ficou 'Imposto da Ruga Sintomática') e deixei bem claro o que ele visava: a sociedade de portuguesa precisa de ter bom aspecto para poder continuar a dar a entender ao resto do mundo que estamos aqui para as curvas e que cada português serve perfeitamente como garantia para qualquer empréstimo que o Estado venha a necessitar. Em cada português há um Egas Moniz. Temos de estar despreocupados, libertos de angústias, de pele esticada, e de faces rosadas a disparar hemoglobina por toda a rosa dos ventos. Quando olharem para qualquer um de nós como garantia dos empréstimos da nação, os nossos credores sentir-se-ão seguros e confiantes. A ruga dá-nos cabo do rating.
Fui almoçar com aquele sentimento agradável duma tarefa cumprida, aquele espasmo quase metafísico de fazer o que deve ser feito. Como esta semana é par havia ovos mexidos na cantina do ministério e souberam-me bastante bem combinados com a salada de feijão verde que a L. me tinha preparado. Ainda reparti com o secretário de estado, que não via um legume desde aquele período que ficou conhecido como o do 'Referendo Saloio', no qual, em 2026, cada português passou a ter um talhão de horta na zona da Malveira.
O Velasco Porfírio Valente entregou-me hoje as provas do seu novo livro de poemas: 'Um túnel ao fundo da luz'. Trata-se de um trabalho minucioso, baseado nas últimas descobertas sobre a influência do soneto camoneano no efeito multiplicador do consumo de sementes de oleaginosas e, estou esperançado, vai abrir os olhos ao membros do comité do Nobel. Felizmente que mandei guardar um talhão com eucaliptos na Arruda dos Vinhos para que não falte o papel no dia da impressão.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [8]

FMI tinha-se tornado ministro das finanças ainda relativamente novo, mas desde o início que se soube demarcar duma imagem de excesso de voluntarismo. Sempre pareceu ponderado, inclusive com a marca de distanciamento que lhe providenciava a prudência, mas sem mostrar medo de pôr a mão na massa. Dizia-se, a brincar, que gostava da massa al prudente.


16 de Outubro de 2029


Hoje faço 40 anos. Nada me dizem os números redondos, mas tenho de reconhecer que deles emana uma energia diferente. Foi até baseado nessa energia-especial-do-número-redondo que no início do mês assinei um despacho definindo que só passará a ser possível atestar depósitos - e bonificadamente jantar fora - na celebração das bodas de prata ou de ouro, fora dessas datas será cobrada a 'taxa de luxúria' - carinhosamente já conhecida nas repartições de finanças como a 'tuxa'. Penso alcançar com a tuxa uma cobrança que nos permita ligar os semáforos em Entrecampos aos domingos e, eventualmente, o elevador de Santa Justa no feriado da Ascensão.
Julgo que chego a esta idade em razoável bom estado, recebi até um inesperado piropo da L. ao me dizer que 'se as finanças públicas estivessem tão rijinhas como os teus abdominais este ano se calhar ainda podíamos pôr outra vez o iva abaixo dos 50% como chegou a estar quando nos casámos'. Considero que foi querida. O Hélio Herpes da Costa, por outro lado, ligou-me logo de manhã e, com o seu humor peculiar, disse-me que comigo no ministério anda tudo de finas ancas. O Velasco deve andar atarantado com alguns alexandrinos novos porque nem se lembrou de me dar os parabéns.
Jantei em casa, convidei o meu irmão M. que, como de costume, trouxe uma namorada nova - que é hospedeira-fritadeira daquela companhia de aviação nova, a Air-Bimby, em que os passageiros vão descascando batatas para reduzirem o preço do bilhete - e foi uma noite agradável que conseguimos passar sem fazer nenhuma alusão a péssima notícia de hoje, com a confirmação oficial de que está proibido o tempero da salada por um período indeterminado. Era inevitável, tivemos de trocar as nossas reservas estratégicas de azeite para comprar um lote de vacinas contra a micose asiática.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [7]

Depois das grandes vagas de indiferença religiosa do início do século, uma campanha inovadora do patriarcado iniciada em 2021 junto dos barbeiros e cabeleireiras, com o título arrojado e controverso : 'Não à calvinice', fez recuperar o empenho geral em aprofundar a fé, baseados no lema de então: 'estamos carecas de saber que Deus é amor'


13 de Maio de 2029


Hoje acabei de ler o livro 'Para que serve Nossa Senhora'. Trata-se do último tratado de filosofia política de Minerva Damásia, uma psicolitóloga que se tornou famosa em meados desta década pelos seus estudos em torno da consciência colectiva, dos remorsos de classe e do aproveitamento dos miúdos de frango. Defende agora Damásia que o culto em torno de Nossa Senhora de Fátima, que obteve um impulso fulgurante depois do referendo de Novembro de 2025 em que foi decidido pendurar um terço em cada caixa multibanco, acabou por ser determinante para a construção do novo desígnio nacional baseado nesta ideia revolucionária: em cada casa uma azinheira. O livro, escrito num ritmo que o faz parecer um misto de romance de cavalaria com folheto do Media-markt, faz apelo à sensibilidade mais fina do leitor e teve o mérito de nos recordar que, até hoje, as aparições de Fátima foram a maior obra científica do povo português, apenas aproximada pela via verde, os telemóveis pré-pagos e as receitas da maria de lurdes modesto.
Durante a tarde voltaram-me as enxaquecas, mas como a Associação Nacional de Ervanárias celebrava hoje o seu 10º aniversário aproveitei uma promoção para renovar o stock de lúcia-lima com que me dou muito bem. Aliviei por volta das 5 da tarde e ainda fui a tempo de apanhar uma matiné com a ante-estreia do ultimo filme do Gabriel Guelrinhas. Trata-se duma adaptação em fusão - para poupança de recursos - da tomada de Lisboa aos mouros com a guerra de Tróia, na qual o Martim Moniz em vez de ficar entalado numa porta se disfarça dentro dum galo de Barcelos feito com a madeira dum corrimão da embaixada da Grécia. Desanuviei um pouco e ainda deu para dois dedos de conversa com o Guelrinhas, um tipo curioso que começou a carreira a filmar ciclos menstruais para projectar nas aulas das pro-graduações de fecundação in situ.
Depois do jantar ainda falei com o Velasco Porfirio Vicente ao telefone, estava cabisbaixo, havia mais de duas horas que não encontrava uma rima decente para o seu trabalho em redondilhas sobre a flutuação das taxas de câmbio. Também não o pude ajudar porque estou com um ardor na vesícula desde que comi um nogat que a L. me tinha comprado numa feira de petiscos que agora há todas as quartas nos Jerónimos desde que o alugámos à Nestlé.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [6]

Em 2020 foi decidido que a 5ª república se caracterizaria por grandes ciclos de 9 anos divididos em sub-ciclos de 3 anos cada: três anos de reformas, três anos de referendos, três anos de pousio. (A 4ª republica fora um breve período de 6 meses em que a governação estivera entregue ao departamento de jogos da Sta Casa da Misericórdia que, entretanto, faliu)



23 de Março de 2029

Desde que foram abolidas as estações do ano que me assalta uma grande tristeza nestes dias em que antigamente começava a Primavera. Penso, no entanto, que foi uma medida acertada, pois, por exemplo, deixou de haver desperdício com a renovação das colecções de moda, (na grande Reforma do Clima de 2023 foi deliberado que era sempre Outono) podendo os recursos têxteis dirigir-se agora para aplicações mais úteis como a cobertura de estátuas para protecção dos pombos - não me esqueço da desvalorização que sofreu a do Marquês quando a vendemos ( toda borradinha, benza-a Deus) há alguns anos para o jardim zoológico de Singapura.
Vendo bem tanta estação também não nos fazia falta, mas ao menos podíamos ter ficado com uma semanita a fazer de Verão, nem que fosse por causa das mini-saias. À conta da austeridade as mulheres têm investido mais nas mamas e menos nas pernas, pois uma glândula ficou com prioridade em relação a um músculo desde a grande Reforma Anatómica de 2021.
Agora que estamos a terminar o primeiro grande ciclo de 9 anos, tenho de reconhecer que a melhor fase de todas foi a dos referendos. Todas as 1ªs sextas feiras do mês tínhamos um e as pessoas envolviam-se, sentiam a governação como se fosse uma coisa delas. São desse período a obrigação das torradas serem servidas aparadas e o bolo rei ser sempre mal cozido. Foi-se à raiz dos problemas.
Hoje jantou cá em casa o ministro da educação; veio com uma cunhada que é viúva dum guarda-republicano, trouxe empadas de frango e uma tarte de maçã; a L. fez a sua famosa sopa de agriões que é de alface e pôs música da Hope Sandoval. Podia ter sido uma noite muito bonita, não fora termos recebido um telefonema da policia a comunicar-nos, alarmada, que, em infracção gravíssima à Reforma Educativa de 2022, tinham sido descobertos a monte dois portugueses que ainda não tinham mestrado.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [5]

8 de Janeiro de 2029



Hoje fiz um ano como ministro das finanças e ofereceram-me um centro de mesa em flores secas para pôr no gabinete. O presente até terá a ver com o meu apelido, mas as flores secas combinam bem comigo e com os tempos. Felizmente eu tinha levado uma caixa de palitos de la reine que sobejaram dos reis e ainda pude dar uma arzinho da minha graça, retribuindo a surpresa. A L. sempre foi contra esta minha ida para o governo e passou o dia meio amuada, rabujando por tudo e por nada, sendo que a sua única palavra de encorajamento foi quando disse que eu tinha conseguido que dentro dum campo de concentração nos sentíssemos como numa reserva natural. Afinal de contas, e ao contrário do que chegou a pensar no início do século, o que interessa numa mulher é combinar a força enigmática do conteúdo com o efeito decorativo no contexto.
Desde que se aboliram os impostos na grande reforma de 2024, a receita baseia-se na filantropia coerciva, na venda de património e no aluguer da costa para a pesca, por isso subcontratei o grosso do trabalho do ministério à Remax, o que me deixa algum tempo livre que hoje aproveitei para ir beber uma meia de leite com o Porfírio Vicente, com quem já não falava desde a passagem do ano. Mostrou-me um esboço da sua nova peça: 'O chupista e o louva-a-deus'; trata-se duma alegoria em que um oportunista especulador se apaixona por uma vendedora de flores que fala com os insectos, e que procura revelar-nos que o lado parasitário da nossa natureza é o mais nobre e o mais dado à correcta organização da sensibilidade.
Constato que há muito que deixei que ter sentimentos, mas ainda me lembro muito bem do último, quando comi uma fatia de fiambre.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [4]

Por referendo, realizado em 2023, o dia de Portugal passara a ser o dia dos Santos Inocentes celebrado a 28 de Dezembro. Fora uma votação renhida e a vitória obtida apenas pela diferença de 50 votos sobre a proposta apoiada pelos partidos da FMA (frente da miséria assistida) que defendia o dia dos namorados.


28 de Dezembro de 2028


Neste dia de Portugal, como de costume, fui almoçar com o Herpes da Costa e o Velasco Porfírio Vicente umas fanecas fritas num restaurante em Algés. Encontrámo-nos na Fnhac do Cais do Sodré e apanhámos o comboio da uma. Em Alcântara entrou também o Ministro dos Contentores e acabámos por convidá-lo a vir connosco; é um tipo que nunca desilude com as suas histórias, pois desde que na grande erosão de 2021 desapareceu todo o areal entre a trafaria e sesimbra, aproveitámos para aí construir a 'Containerland' , um parque temático dedicado à poupança, pechisbeque, pelintrice & pechincha.
Derivámos um pouco em excesso e perdemo-nos no moscatel e nas horas. Fomos assim forçados a ir directos para a festa do grupo Genuflex. Desde 2025 que são o maior grupo industrial português. Tudo começou aquando da conversão do Japão ao cristianismo e a Genuflex (na altura dos irmãos Caixinhas) se iniciou na exportação maciça de confessionários para aquela zona. Quando eu fui director-geral das florestas e matagais mandara abater todos os eucaliptos (a ultima dose de pasta de papel foi produzida para a colecção de cartões de boas festas da Unicef em 2018) e fiz plantar pau santo por todo o país; tal veio a revelar-se uma boa ideia que os irmãos Caixinhas souberam aproveitar da melhor maneira, projectando as capacidades penitenciais de Portugal no mundo. Sempre me foram gratos, e a gratidão é a ultima coisa a desperdiçar - sem desprimor para os pasteis de bacalhau. A L. não quis ir; desde que pertence à seita dos picuinhas que lhe fazem impressão todas as actividades em que não se tenha de passar pelo menos de hora a hora com a mão pela consciência.
Está a chover muito e lembro-me agora do que dizia o meu pai: nestes dias de muita água nunca se sabe quando deixa de limpar e começa a enlamear.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [3]

Uns meses antes de FMI ter tomado posse na pasta das finanças entrara em vigor o 58º plano tecnológico que tinha como objectivo fundamental o aproveitamento energético do bocejo. FMI descobrira que vários políticos poderiam com as suas entrevistas contribuir meritoriamente para este plano e estabelecera uma escala diária com os 128 canais de notícias.

22 de Setembro de 2028

Hoje tive uma correria a levar os ministros às entrevistas nas televisões, mas sinto-me realizado pois os últimos dados da marktest da semana passada revelaram um aumento de produção de 300 mil kw/bocejo. Julgo que, com isto, para o mês que vem já se poderão outra vez utilizar torradeiras na zona do litoral a norte de peniche; na zona sul vingou o lobi das cafeteiras e no interior o das escalfetas. Gosto muito da diversidade do meu país, pois mesmo sendo pequenino sabemos parecer muitos quando queremos.
Ao fim da tarde na recepção da embaixada de Espanha serviram tortilha e anchovas, por isso o governo esteve lá em peso. Eu teria preferido a da embaixada da Itália porque já não vejo carne no esparguete à bolonhesa desde o Natal de 2020. Fazem-me falta as carnes, tenho de reconhecer.
Hoje perdemos o Harmónio Palheto, um homem trabalhador e competente que pediu a demissão da Pasta do Ambiente porque teve uma infiltração em casa e o único canalizador do país está em Serrralves a arranjar uma obra do Raushenberg que precisamos de vender para o mês que vem.
O Velasco Porfírio Vicente veio cá jantar a casa, sinto-o numa fase de enorme produtividade desde que garantiu que a alma portuguesa fosse nomeada para património da humanidade juntamente com o museu ferroviário do Poceirão e os ovos moles.
Amanhã parto para uma semana de férias no Porto Santo. Já não ia ao estrangeiro desde a Páscoa de 2019 quando fui na semana santa ao Gerês.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [2]

Nestes excertos do diário secreto de FMI , que se começaram aqui a transcrever, é patente a sua ansiedade permanente por querer agradar a todos, e uma das personalidades que neles é muito referida é o moralista criativo Hélio Herpes da Costa, com quem FMI mantinha uma amizade decorada de acesas discussões sobre tudo, mas, sobretudo, sobre nada.

16 de Junho de 2028


Tive uma manhã bastante turbulenta por causa dum telefonema que recebi do Herpes da Costa. Ele insiste em que a sociedade é um todo e que deviam ser reduzidas ao mínimo as medidas de protecção selectiva como aquela que eu introduzi ontem ao admitir que as lojas do Pingo Doce recebessem a cobrança do iva em espécie, tendo como contrapartida o fornecimento gracioso de todos os frutos secos para as embaixadas portuguesas. Aborrecem-me estas incompreensões de base ideológica, e a L. diz-me, inclusivamente, que me fazem uma espécie de borbulhagem na zona lombar - eu até lhe respondi, para tentar desanuviar, que assim ela já tinha algo que coçar. Rematou-me logo, sem apreciar a piada, que o Herpes da Costa, com quem, estou convencido, namorou nos tempos do liceu, gosta muito de dar palpites sobre o que os outros devem fazer ou não, lembrei-me então de que quando ele liderou a 'comissão para o aumento da natalidade' as suas principais propostas foram reduzir a distribuição de preservativos apenas para a 5ª sexta feira do mês, e o projecto científico dos 'partos às 20 semanas'. Mas no fundo acho que até gosto do Herpes da Costa, e o que ainda nos rimos ao telefone quando ele me disse que conseguiu convencer um grupo de indianos a comprar-nos a estação do Oriente para servir de entreposto à exportação de pitons para o negócio dos suicídios de honra.
Hoje doem-me muito as pernas porque agora no ministério só há elevadores às quartas feiras. Felizmente era o dia de distribuição de cajus aos funcionários começados pela letra F. Adoro adormecer com esta sensação salgada na boca, faz-me lembrar os tempos em que ainda se podiam gastar recursos naturais a fazer batatas fritas de pacote. Como dizem os astroanatomistas: o céu está na boca.

Os Diários Secretos de Facundo Macário Induvial [1]

Segue-se a publicação de excertos dos diários daquele que foi o ministro das finanças de Portugal no famoso período de 2028 a 2033. Facundo Macário Induvial, um ilustre português de origem uruguaia, celebrizou-se por ter conseguido manter o país com o seu orgulho intacto depois da crise identitária originada pela venda do barlavento algarvio a um grupo paquistanês de peúgas. O período que se escolheu foi aquele em que FMI privou de perto com outra personalidade importante da época, o poeta Velasco Porfírio Vicente, que acabaria por ganhar o prémio nobel da economia como reconhecimento pelos seus trabalhos em verso alexandrino sobre o espirro chinês e a cólica coreana.



13 de Fevereiro de 2028

Hoje levantei-me mais tranquilo que o costume. Comi sem especial avidez a meia shortcake que tinha guardado de ontem e tanta era a minha calma que ainda tive de correr para apanhar a boleia do ministro da educação que está de serviço esta semana com a carrinha para deixar os ministros. Tenho de reconhecer que este mini-bus foi uma medida interessante que me foi sugerida pelo Velasco no Natal. Felizmente hoje o ministro da cultura estava de baixa, em assistência ao agregado, e sempre se poupou uma ida ao Poço do Bispo que, estou farto de o alertar, fica muito fora de mão.
O dia ficou marcado pelas enormes pressões que sofri para introduzir no Plano de Grandes Obras Públicas a substituição dos autoclismos na estação do Rossio. Penso que tenho de ser justo e equilibrado, mas custou-me deixar de fora os estores do Parlamento, tanto mais que não paro de receber cartas dos deputados a queixarem-se do sol na cara desde que se mudaram para o pavilhão do estádio universitário, de qualquer forma assinei hoje finalmente o contrato de promessa da venda do Palácio de São Bento, e o sinal que nos deu a Samsung já serviu para atestar o depósito dos cacilheiros.
Ao fim da tarde tive uma boa surpresa, chegaram as estatísticas e confirmou-se: no último trimestre do ano nasceram 14 portugueses, o que significa uma subida substancial em relação ao desastroso trimestre anterior em que apenas tinha nascido um casal de gémeos em Alverca.; entretanto pode ser que aquele poema que encomendei ao Velasco nos santos populares, 'Antes parir que aposentar' , esteja a começar a dar frutos.
Se amanhã conseguir vender o jardim zoológico à companhia das águas do Bahrein ainda vai dar para carregar os telemóveis dos secretários de estado com 20 euros cada.
Vou-me deitar cansado, tenho as gengivas a latejar, a placa está solta e só chega a cola da Indonésia em Abril; mas o raio dos ladrilhos do CCB têm prioridade.

Berilos, Turmalinas & Volframatos.

Giacomo Piolini sentia-se, e consequentemente, no caso, considerava-se, um artista. Contudo, não apresentava talentos para render na vasta amálgama das designadas artes consagradas (uma espécie de estados religiosos aplicados à arte), daquelas em que não era preciso apresentar resultados explícitos para um artista se sentir realizado ('sentir-se realizado' é a 5ª essência da natureza humana, e a 1ª essência da natureza artística a par do Kunstschaffende Gedanke, já se sabe). Ora se é do acordo comum que um bom escritor não precisa de ser lido, um bom realizador não precisa de ver os seus filmes todos apipocados nas salas de cinema, um bom escultor não precisa de ver as suas obras a servirem de pisa-papéis, um bom pintor não precisa de vender os seus quadros ao Berardo, um bom actor de teatro não precisa de trepar às paredes como a beatriz batarda, and so on, and so on, Giacomo descobriu então que: se também se assumisse como um artista-do-negócio, poderia perfeitamente realizar-se sem que da sua arte tivesse de resultar qualquer mínimo vestígio de lucro, que, como é do conhecimento geral, e nalguns casos particular, se estabeleceu como a regra de oiro, mesmo com estatuto de condição sine qua non, para definir a bondade do negócio-que-não-é-arte-mas-apenas-negócio.


Doctor Piolini dedicou-se assim a conceber, planear e executar projectos de índole empresarial, nos quais realizasse a sua Kunstwollen sem o imperativo categórico (perdoem-me a deKantação terminológica) do cash-flow, ombreando assim sem vergonha com pintores da nova figuração, romancistas de diálogos do eu, bailarinos contorcionistas do expressionismo e cineastas do deserto da intimidade. Claro que teria sempre de ficar claro que jamais se trataria duma mera actividade-sem-fim-lucrativo, (como lavar o cuzinho a velhos indigentes ou distribuir sopas a benfiquistas) Não! mas outrossim algo que, de facto, estava rigorosamente pensado para dar lucro, mas pura e simplesmente dele não necessitava como raison de satisfation, tal como um pai-nosso se reza para nos dar força d'alma mas basta sabermos que nos pode salvar das chamas do inferno para aguentarmos a angústia da existência por mais uns 30 ou 40 e picos anos.

A sua primeira instalação - designação emprestada pelo sempre inovador e generoso mundo das artes mais ou menos plásticas - de negócio-arte concretizou-se numa empresa de polimento de minerais para incrustação em pontas de bengalas, pingalim's e bastões diversos. Tratava-se dum nicho dentro dum nicho, mas que cruzava várias linhas de força dentro do cluster dos body-suplements: 1) uma necessidade óbvia ( de coxos e demais aleijados) com 2) um adereço estético clássico (são vários os exemplos), acrescentando-lhe 3) uma nova singularidade estética com espasmos de propagação (leia-se: moda) e 4) uma nova forma de distinção (agora que se torna, meus Deus, cada vez mais difícil distinguir quem é quem na sociedade).

À estrutura da empresa foi decidido enquadrá-la num clássico funcional, uma espécie de chanel dos organigramas, sendo que alguma transversalidade também era admitida face à segmentação de negócios: linha coxo tradicional, linha paneleirote, linha aristocrática e linha gadjetada. Cada área tinha objectivos traçados anualmente, conta de resultados autonomizada e, obviamente, planos de investimentos, marketing e desenvolvimento que, dalguma forma, competiam internamente entre si, tornaram-se inclusivamente famosas as rivalidades entre o designer chefe da paneleirote division e o seu homólogo da baronete division. As reuniões eram periódicas, as agendas conhecidas com a antecedência necessária, e a inovação (não se pense que era um produto maduro) era incentivada a par dum enorme, mas equilibrado, sentido corporativo, sem excessos iconográficos. Informalidade & Rigor era o lema que todos levavam para casa ao fim do dia mas com o qual retornavam diariamente, e sempre remoçado. Uma empresa, um negócio, um projecto que era uma peça de arte.

No primeiro ano foram adquiridas pela 'La Cannelona, SA' 2 toneladas das mais diversas madeiras e bambus (a empresa não admitia materiais que não fossem fornecidos directamente pela mãe natureza) e 1 ton dos mais diversos minérios. Foi devidamente subcontratado (a beleza incontornável do outsourcing, lá está) o serviço mais grosseiro de tratamento de madeiras e minerais e às instalações da empresa já só chegavam paus e roliças pedras.

A promoção e vendas estava suportada num catálogo que se tornou rapidamente uma obra de referência, e a distribuição realizava-se através de lojas seleccionadas, sendo que cada bengala era, obviamente, uma peça única, que cada cliente haveria de sentir que tinha sido pensada especialmente para ele. Nesse primeiro ano de presença no mercado foram vendidas 1253 bengalas (155 para coxos tradicionais, 328 para baronetes, 422 para uma gay parade em Leixões e as restantes para uma promoção do desodorizante em stick roll on da Old Spice, sendo que 2 delas ainda assumiram um estatuto mais elevado, pois uma ficou exposta no museu de marqueterie de Rennes, e uma outra no salão nobre da Câmara Municipal de Gdansk).

Esta combinação de organização exemplar, (com altos níveis de motivação do pessoal, a que não é alheio a obtenção em 3 anos consecutivos do prémio da melhor sandes de presunto em snack de refeitório ) a inovação crescente de produtos, (o melhor gadjet-cócó do ano em 2016 pela sua bengala com anti-fungos e corta unhas para pés), e o grande reconhecimento pelos fornecedores (eleita empresa-transformadora do ano por mais de uma vez pela União das Pedreiras do Piamonte) fizeram de La Cannelona SA uma empresa que se tornaria com o tempo uma obra de arte requisitada pelas mais reputadas galerias internacionais de empresas modelo, das Kunstwollen corporations. Não foi pois de estranhar que em 2022 tenha ganho o Prémio Camões, pelos relevantíssimos serviços prestados à difusão da cultura nacional das empresas-arte, batendo concorrentes fortíssimos como o conjunto de receitas para bolo mármore de Medina Carreira , o moscatel de Henrique granadeiro, ou os preservativos de renda de Joana Vasconcelos. Em 2019 uma colecção especial das suas bengalas foi escolhida por Fidel Castro para celebrar o 1º regadio em Havana e em 2027 passou a ser elemento de uso obrigatório nas tomadas de posse do governo da região da Madeira.

Giacomo Piolini foi agraciado com a grã ordem de mérito artistico-industrial e em 2023 uma bengala com incrustações a pedra lunar da colecção primavera la paneleirota de 'La Canellona, SA' foi colocada no museu Pompidou junto ao urinol de Duchamp, com este verso de Valery por perto: « e cem anos depois qualquer coxo poderá sacudir sem cair». Giacomo tinha conseguido. A sua empresa era uma obra de arte reconhecida em todo o mundo. Em mais de 30 anos nunca dera lucro, a sua divida bancária subira gradualmente ao ritmo do custo duma barriga de aluguer de Ronaldo por ano, chegando à fantástica soma de 150 EBITDA's na celebração das suas Bodas de Prata. Apesar de nunca ter distribuído dividendos, o seu valor em bolsa subira mais de 20 vezes e para qualquer banco era um orgulho ter aí parte da sua dívida estacionada, chegando as empresas de rating a apelidar de crédito-cannelona a este tipo de dívida artística, que se caracterizava por pouco interessar se algum dia seria paga ou não mas que qualquer banco se esforçava por apresentar no balanço, dizia-se no meio que se revestia de leverage artístico, a Kunsthebel. Giacomo Piolini chegou ao ponto de não aceitar que qualquer banco emprestasse à 'La Cannelona, SA'. O desenho do 1º organograma (baseado num vestido de casamento de Armani) foi leiloado pela Sothebys por 3 milhões de euros, o 1º recibo de ordenado (da telefonista-recepcionista-polidora-de-morganites, D. Cibele Sousa) foi comprado pela biblioteca do congresso da guiné equatorial por 200.000 dólares, e a 1ª factura ( de uma bengala da 1ª colecção baronete adquirida por um Aorta e Tosta para o casamento de uma sobrinha com o descendente do inventor do bico de Bunsen) foi resgatada pelo museu da cera de Londres por 100.000 libras para acompanhar a estátua de Tony Blair. Amen.