os três porquinhos

A loba Merkalina chegou justiceira à borda da floresta e viu a casota do porquinho Calotondreos acabada de construir em palhinha do Pireu colada com leite fermentado. Encheu os fartos peitos de ar e metade da palha voou pelas espumas do Egeu, pondo Calotondreos a correr de alívio pelos montes abaixo porque já estava farto de palha. Na louca perseguição que se seguiu, a loba Merkalina encontra a cabana que o porquinho Gaspar tinha conseguido construir à pressa com corticite embebida em baba de caracol. Saca imediatamente do seu famoso fôlego do Reno e, num ápice, a corticite vira torresmo pondo Gaspar e Calontondreos, que entretanto aí se tinha refugiado para passar o são martinho, a correr desvairados pela pradaria a caminho dum cadafalso com revestimento a sumaúma. Eis quando já quase sufocada pelos calores das acelerações a loba Merkalina dá de focinho numa casota em bela alvenaria da Provence, cores cálidas e arvoredo em redor, como que saída duma cezanneada ao entardecer. Lá dentro ouvia-se o ruído tricotado da roca, dois acordes de nemequittespas, e um odor camomiliado. Lesta espreitou pela fresta e foi levada pela comoção. Uma cena linda e pura atravessou-lhe o coração como um obus de ternura: o porquinho sarkozinho derramava uma lágriminha no colo abençoado da bela e doce Brunilde. Merkalina ainda subiu arrastada à chaminé, ainda lançou a corda com os restos da sua impiedosa severidade, ainda franziu a sua austera fronha, mas sucumbiu à vergonha e aos latidos de mel do leitãozinho petiz embrulhado em flor de Liz. Recuou, deixou a raiva passar, esqueceu Calotondreos e Gaspar, alisou o pelo reluzente da pata, e à porta deixou um enxovalinho de luxo: um eurobonde de prata e uma fonte de porcelana com repuxo.

The dark side of the wool # n + k


trabalho, conhecimento, crédito.
pastor, prado, lã.


exploração, charlatanice, especulação.
lobo, palha, borboto.

verso à terça

Pastai então, povos mansos, pastai!
Não vos acorda o clamor da honra.
Os dons da liberdade a um rebanho
À matança ou tosquia destinado?
Vossa herança é, por todo o sempre,
O jugo de chocalhos e a aguilhada.

Aleksandr Puchkin, in Ermo semeador da Liberdade (Tradução de Nina e Filipe Guerra)

Os grandes baluartes da civilização; uma actualização.


O Dicionário não ilustrado sai do armário (salvo seja) - as portas já estão destinadas a lenha para a lareira - e dá a sua contribuição para a compreensão do mundo que nos rodeia e inclusive penetra. (entradas 1396 a 1406)


Representatividade - mecanismo de índole peripatética que permite ao acto eleitoral concorrer com o acto sexual na sua performance masturbatória, ou seja o político está para o eleitor como a palma da mão está para as bordas da coisinha.

Equidade - variação do conceito de equinidade destinado a que as mulas possam pensar que são cavalos mesmo sendo tratados como bestas puro sangue.

Retroactividade - instituto legal que permite ao passado tornar-se futuro sem passar pela casa da partida mas não estando garantida a dispensa da prisão.

Igualdade - princípio de registo quimico-filosófico que determina a possibilidade de toda a essência humana poder esquecer os dilemas da existência ou da substância e encarar com tranquilidade a sua dissolução total na mamiferização do ser.

Presunção de inocência - misticismo jurídico que permite ao estigma ser promovido a chaga sem o pagamento de custas.

Função pública - tipo de desperdício que ao não ser enquadrável nas competências de reciclabilidade da sociedade ponto verde caminha alegremente para o aterro vermelho.

Direitos adquiridos - tipo de direito que nascendo torto só pode entortar mais.

Soberania - conceito fluido da ciência politica que determina que o dono do charco é o que tiver a mijinha mais amarela.

Voto - efeito sufrágico-decorativo que embeleza a ranhura das urnas com fundo falso.

Responsabilidade cívica - componente fundamental da ética republicana que permitiu aos sacos azuis que antes tinham dinheiro sujo hoje tenham facturas imaculadas por lançar. As imoralidades do excesso deram lugar às imoralidades da falta.

Obrigação fiscal - Receita especial de Empadão do Contribuinte que se obtêm juntando duas doses de sodomizante com uma de fellaciose.

Oração

Dai-nos Senhor outra bolha especulativa

E entretanto

num corte inglês perto de nós há uma semana de moda íntima. Nos tempos em que a intimidade foi posta de lado, dado que o importante agora é a coisa publica, felizmente a cadeia dos nuestros hermanos vem relembrar-nos que há um íntimo dentro de nós que deve ser acarinhado e inclusivamente tornado mais público, como que demonstrando que o público e o íntimo estão afinal de mãos dadas nesta espuma austera dos dias. Ora o íntimo austero pode e deve ser um exemplo para o público austero. Para quê um folho onde pode estar uma renda, mas quê uma gola onde pode estar um fio, para quê um quadrado onde um triângulo parece ser bastante. Para quê um lombo se podemos ter uma cintura. Ao sabermos decorar a nossa ( leia-se: delas ) intimidade daremos um sinal para a coisa pública, e esta poderá aparecer aos olhos de todos coberta por uma capa sedosa e brilhante mesmo que tentando disfarçar a carcaça decadente e chocalhante em que se transformou. Por último, as técnicas da moda íntima são igualmente uma lição para os poderes públicos: escondem sem esconder e mostram sem mostrar. Mas é ao povo confiscado que poderão dar uma lição ainda melhor: aprender a fodê-los só com o olhar. The last frontier of the citizenship.

verso à terça

Depois de nós, não é certamente o dilúvio,
e tão pouco a seca. Com toda a probabilidade, o clima
no Reino da Justiça, com as suas quatro estações, será
temperado, de modo que um colérico, um melancólico,
um sanguíneo, um fleumático poderão governar por turnos
de três meses cada.

Iosif Brodskii , in Paisagem com Inundação (tradução de Carlos Leite)

DSM VIII

A Perturbação de Excesso de Resistência foi uma patologia especialmente desenvolvida em Portugal no rescaldo da crise das dívidas soberanas no início da 2ª década do século XXI. Apesar de se associar inicialmente a focos localizados em torno de pacientes com o Síndrome de Auto-responsabilização, rapidamente alastrou para os mais debilitados pelas Perturbações de Privação de Subsidácios. No grupo mais exposto às Perturbações de É-Bem-Feito  a sintomatologia acabou por evoluir e juntamente com os que padeciam das Perturbações do Tem-Mesmo-de-Ser acabaram por apresentar de forma generalizada um historial de episódios intermitentes da compulsão resignativa de resistência associados a alta capacidade dissociativa, tendo sido inclusive encontrados casos de Compreensão Benigna dos Excessos de Poder, uma verdadeira antecâmara das perturbações esquizoafectivas. A prevalência aponta para índices acima dos 50% em espectadores dos canais de noticias por cabo com apresentadores de laço e 65% nos degustadores de mexilhão enlatado em vinagrete. Um subgrupo curioso acabou por se destacar e ficar conhecido como a Pananoia Orangette, assim designada por estar relacionada com comportamentos de base amarga mas socialmente adaptados de forma doce e responsável por forma a esconder a capacidade subversiva que inunda a alma humana desde que Abraão se dispôs a testar a sua fé com o pescoço de Isaac. A Perturbação de Excesso de Resistência acabou por evoluir para uma Anti-Cleptomania de segunda geração, quando o Estado aboliu todos os Impostos e instituiu a figura dos Repostos, ou seja, devolvendo-nos tudo com juros a partir do ano sagrado de 2278, provocando um surto de donativos aos partidos políticos e a todas as outras instituições de protecção da natureza, naquilo que ficou também conhecido como a Perturbação de Regresso à Fase Anal.

orangette #2

3/4 laranjas; 250 ml de água; 250 g de açúcar; 2 cravinhos; 180 gr de chocolate negro em tablete

Preparação das tiras de laranja:
1. Partir as laranjas em quartos e retirar toda a polpa, mantendo ao máximo possível da parte branca. Cortar os quartos em tiras com o máximo de 1 cm de largura. Colocar as cascas de laranja numa panela com água suficiente para cobrir. Levar a ferver. Escorrer toda a água. Repetir 3 vezes este procedimento a fim de retirar o amargo da casca. Reservar.
2. Fazer uma calda com água, açúcar e cravinho. Levar a levantar fervura até que o açúcar se dissolva completamente. Reduzir o lume para muito brando, juntar as cascas de laranja e deixar que as cascas cozam durante cerca de 1 hora até ficarem translúcidas. Retirar as cascas de laranja com uma escumadeira.
3. Colocar as cascas de laranja a secar, sobre uma grade ao sol (1 dia) ou no forno (na grelha do forno a 140ºC durante 1,5 hora).

Finalização com o chocolate:
4. Derreter o chocolate em banho-maria e, em lume muito brando, misturar com uma espátula até que todo o chocolate tenha derretido. Desligar o lume.
5. Mergulhar as tirinhas de laranja no chocolate, escorrer o excesso e colocar sobre uma grelha ou sobre papel vegetal de cozinha até secar.

orangette #1

good times bad times

Nos tempos bons a demagogia pode ser descrita pelo clássico atirar de areia para os olhos, nos tempos maus a demagogia precisa que sejam os próprios olhos atirados para a areia. O pior cego torna-se aquele que quer ver.

k'rizz

Como os cientistas políticos já tiveram a gentileza de levantar o véu e esclarecer-nos, Portugal saiu directamente da negrura salazarista para o maravilhoso mundo das liberdades democráticas sem ter tempo de amadurecer as suas preciosas instituições, sem ter debutado convenientemente no baile do pluralismo cívico, saltando de precipitação em precipitação, queimando etapas como quem trinca sorvete. Infelizmente, os cientistas financeiros, certamente por afazeres vários, não foram tão capazes nem rigorosos a advertir-nos e explicar-nos que passámos meteoricamente da fase do saco azul para a fase dos buracos orçamentais sem termos feito a necessária e ponderada adolescência financeira, pulando da punheta deslumbrada para o deboche alavancado sem o devido processo de organização hormonal e emocional exigível aos nossos recursos financeiros. Chegamos assim ao siliconizado mundo da finança adulta com muita experiência por consolidar, misturando o escândalo com a descoberta, incapazes de discernir o prazer da responsabilidade, e alvo agora de reprimendas e conselhos de vária ordem e índole, servindo-nos na boquinha sopas de austeridade e consolidação, como que tivéssemos finalmente de fazer com a merda os castelinhos que outrora não treináramos com areia. Esta carência de um período de adolescência financeira coloca-nos na mão de psicoterapeutas orçamentais, encartilhados nas terras de ninguém e babando inevitabilidades como quem clisteriza dons do espírito santo. Encontramo-nos naquela curiosa condição em que apalpamos em redor e todos os dias descobrimos zonas que já perderam a sua prorrogativa erógena e agora se limitam a ver o sangue passar por entre as franjas dos pielings.

domingo

I have been here before,
But when or how I cannot tell:
I know the grass beyond the door,
The sweet keen smell,
The sighing sound, the lights around the shore.


You have been mine before –
How long ago I may not know:
But just when at that swallow’s soar
Your neck turned so,
Some veil did fall, – I knew it all of yore.


Has this been thus before?
And shall not thus time’s eddying flight
Still with our lives our love restore
In death’s despite,
And day and night yield one delight once more?

Dante Gabriel Rossetti, "Sudden Light" in Poems, 1870

Prepucionismo

O ano de 2037 ficou definitivamente marcado pela fusão do Nobel da economia com o Nobel da literatura. A fundação quis assim dar um sinal aos génios em geral e ao povo em particular que o talento está pelas horas da amargura, pelo que todos se deveriam empenhar em render simultaneamente nas várias frentes. Por outro lado já se tinha dado a fusão do nobel da química com o da paz em 2036, na ocasião premiando a descoberta da nova técnica de desfrisado de cabelo com bromato de enxofre em vinha d'alhos e que permitiu a terroristas subsarianos discursar na assembleia das nações unidas.
Os trabalhos de Gualter Besugo Pai foram bem acolhidos pelo comité sueco, e não foi assim com grande espanto que um português inaugurou este novo ciclo dos Nobeles em formato bitoque. Em causa esteve a singular análise do trajecto não menos singular da economia portuguesa que, na ressaca da falha dos subsídios de natal entre 2011 e 2015, se alcandorou em poucos anos à posição de líder em índices de desenvolvimento, designadamente no famoso Indice de portugueses per capita. 'Em cada Português há um português' foi um dos títulos do trabalho visionário de Gualter Besugo que, num cruzamento de bildungsroman com tese de microeconomia demonstrava as relações entre o encaracolamento precoce do pintelho e a eficiência do factor trabalho, logrando trazer para a cultura ocidental a noção de 'irra-cio-nalidade', um conceito revolucionário pela sua simplicidade e que deriva do enunciado semi-reflexivo: «irra que os credores parece que estão com o cio», e acabou por constituir um factor determinante na recuperação portuguesa, muito bem ilustrado pelo comportamento duma personagem do citado romance, a moura Firmina, que de manhã era douta senhora e à noite atrevida menina. O cruzamento da literatura com a economia já tinha sido ensaiado com algum sucesso através de Velasco Porfírio Vicente, mas com Gualter Besugo Pai conseguiu chegar a patamares gloriosos, permitindo que enredos com escassos recursos obtivessem vantagens competitivas através de dramas psicológicos em matriz neo-depressiva. Noutro dos seus romances, 'A Máquina de fazer caracóis', Gualter aproximou-se mais do roman fleuve em que a sociedade portuguesa é vista como um fluxo contínuo daquilo que ficou conhecido como as 'neuras criativas' - desmontando e reformulando o velho postulado de raizes schumpeterianas - e no qual as personagens mais marcantes faziam monólogos interiores à la molly bloom, descrevendo modelos econométricos onde, por exemplo, o código do multibanco era uma percentagem fixa do NIB e deixando o leitor desejoso de vir a falecer num campo de relaxamentos forçados onde libertava o miolo das caracoletas e o servia a clientes oriundos de países com excedentes comerciais, a troco de promessas de crédito vasto, fácil e infinitamente reestruturável. No entanto, esta troika conceptual só ficou completa quando à 'irra-cio-nalidade' e à 'neura criativa' se lhe juntou a 'baba facilitadora', brilhantemente apresentada no seu livro 'Uma Viagem à Pívia', onde o obsceno e o burlesco deram as mãos e revelaram ao mundo todas as capacidades de auto-motivação do povo português, com o aliciante adicional de incluir a primeira descrição formal e teórica da hoje famosa 'Taxa Tolkien', que introduziu com sucesso a tributação universal à utilização de anéis, pulseiras, brincos, piercings e restantes berloques. Com o seu elevadíssimo Indice de Portugueses per capita, Portugal tornara-se um caso de sucesso a partir da segunda metade da primeira década do novo século e Gualter Besugo Pai soube caracterizar com distinção e mesmo nobreza as razões desse sucesso, sem nunca deixar de o fazer no seio (não siliconizado) de uma escrita que se veio a apelidar posteriormente de 'lirismo rigoroso', pois combinava a perturbação inerente a personagens perturbados com o deslumbramento inerente a personagens deslumbrados sem esquecer a angústia inerente a personagens angustiados ou até o remorso inerente a personagens remordidas. «Num país em glande», terminava sempre assim Gualter os seus romances, «o segredo será não puxar com muita força».

Veritatis Splendor 2.0

Diz-me como mentes dir-te-ei em que acreditas. Diz-me como finges dir-te-ei como te revelas. Se o maior refúgio do homem é ele próprio, ele próprio é também o seu escape, conclusão: o homem não pode fugir a si próprio. Apesar da enormidade que representa o problema de Deus, o homem deve ser o maior problema do homem. Diz-me como suas dir-te-ei como bebes. Diz-me como foges dir-te-ei como te enganam. A história é o maior divertimento humano. O futuro é o segundo maior e o nunca-jamais o terceiro. Conclusão: o presente não tem lugar no pódio. Quem diz viver do presente é um aldrabão. Ou hipocondríaco. Diz-me como cobiças dir-te-ei como possuis. Diz-me o que possuis dir-te-ei o que não terás. O homem evoluiu ao sabor do homem, o vento afinal de contas sempre contou muito pouco. Conclusão: é o colarinho que desenha o pescoço. Cada andorinha faz uma primavera, cada árvore é uma floresta, em cada nuvem há uma amante de Júpiter. Não há fumo sem fumo. Apenas o fumo conta.

Gaudium et Spes 2.0

O que divide o mundo é o mesmo que o une: o progresso. Todos o amam, todos têm medo dele, todos o admiram, todos o desprezam, todos lhe lançam impropérios e todos esperam ansiosamente que ele apareça vestido de branco a resolver-nos os problemas - depois logo veremos se era um anjo ou uma nuvem ácida. Tudo tem um princípio e um fim, dizemos de peito meio cheio - meio vazio, mas o facto de nem sequer isso sabermos ao certo nos impede de conseguirmos viver com mínimos de decência psicológica. O bem e o mal estão entranhados nas nossas acções e, se bem que de vez em quando o tenhamos de enfiar debaixo do tapete, convivemos de forma razoavelmente benigna com isso. As realidades mais importantes e determinantes da nossa vida escapam-nos na sua essência e ludibriam-nos na sua aparência, mas tal alegado drama não nos impele com regularidade ao desespero. O essencial e o acessório aparecem-nos normalmente misturados, pedindo explicações urgentes um ao outro, mas raramente nos deixamos apodrecer na dúvida. A Humanidade é algo relativamente bem conseguido até para os nossos padrões mais recentes de elevada exigência e controle orçamental, e ainda para mais não temos grandes pontos de comparação, tirando as grandes irmandades das abelhas, das formigas ou dos castores, e se a ignorância e o conhecimento andam frequentemente em concubinato, têm pelo menos passado as festas com os seus legítimos. Quando voltar a mão invisível desta vez trará luva branca.