Quaresma IV

A vida como ela não é...

«Não são as aguarelas que me interessam, mas o que quero fazer com elas.
(...)
Bartlebooth decidiu um dia que toda a sua vida seria organizada em torno de um projecto único, mas integral, intacto, irredutível (...)cuja necessidade arbitrária não seria outro fim para além de si mesma. (...) O dinheiro, o poder, a arte, as mulheres, não interessavam a Bartlebooth. Nem a ciência, nem sequer o jogo.
(...)
Não se trataria de uma proeza, não seria espectacular ou heróico, (...) mas excluía qualquer recuso ao acaso, (...) e, finalmente, (...) era inútil, com a sua gratuitidade como única garantia do seu rigor, o projecto destruir-se-ia a si mesmo à medida que se realizasse; a sua perfeição seria circular;(...). partindo do nada, Bartlebooth regressaria ao nada, através de transformações definidas de objectos acabados.
(...)
É o dia 23 de Junho de mil novecentos e setenta e cinco (...) Bartlebooth acaba de morrer. Sobre o pano da mesa, algures no céu crepuscular no quadrigentésimo trigésimo nono puzzle, o buraco negro da única peça ainda não colocada desenha o perfil quase perfeito de um X. Mas a peça que o morto segura entre os dedos tem a forma, há muito previsível na sua ironia, de um W.»


... escrita por George Perec em ‘A Vida Modo de Usar’ ( ed. Presença, 1989), num dos bons tricotados literários do século passado, e lembrado a despropósito, num daqueles impulsos da memória arregimentada atrás das histórias do ‘acrobata que se recusava a descer do trapézio’ ( pgs 56/7) e do ‘homem que riscava palavras’ ( pg 265) ; esta ainda merece outro destaque: «Cinoc, que tinha então uns cinquenta anos, exercia um curioso ofício, era ‘matador de palavras’; trabalhava na actualização dos dicionários Larousse. Mas enquanto os outros redactores andavam à procura de palavras e sentidos novos, ele, para arranjar lugar para esses, tinha que eliminar todas as palavras e todos os sentidos caídos em desuso. (...) Fizera desaparecer centenas ou milhares de ferramentas, técnicas, costumes, crenças, ditados, pratos, cognomes, pesos e medidas. (...) devolvera ao anonimato taxinómico centenas de raças de vacas, espécies de pássaros (...) variedades de bivalves, plantas não exactamente iguais(...) fizera desaparecer na noite dos tempos cortes de geógrafos, missionários, entomologistas, Padres da Igreja, homens de letras, generais, Deuses e Demónios». Só se pode escrever sobre os modos de usar a vida vivendo a vida dos outros; senão é batota.

Sem comentários: