Quaresma II

Armado em Kundera…

«Que deve fazer um romancista que apresenta aos seus leitores tipos inteiramente ‘vulgares’, para não dizer pouco interessantes? (…) Na nossa opinião, o autor deve esforçar-se por descobrir matizes interessantes e sugestivos, mesmo nas pessoas vulgares. Mas quando, por exemplo, a características dessas pessoas reside na sua sempiterna vulgaridade ou, melhor dizendo, quando, apesar de todos os seus esforços para sair da vulgaridade e da rotina, recaem nelas irremediavelmente, então adquirem certo valor típico; tornam-se representativos da mediocridade que não quer continuar como é e que visa a todo o custo à originalidade e à independência, sem dispor de meios para a conseguir.
(…)
Nada há de mais vexatório do que ser, por exemplo, rico, de boa família, de aspecto atraente, razoavelmente instruído, nada tolo, bom até, e, não obstante, não ter qualquer talento, nenhuma característica pessoal ou até qualquer singularidade, não pensar nada por si; enfim, ser positivamente ‘como toda a gente’.
(…)
Há, por este mundo, uma multidão de pessoas desta espécie, mais até do que se julga. Dividem-se como todos os homens, em duas categorias principais: os que são limitados e os que são ‘mais inteligentes’. Os primeiros são os mais felizes. Um homem ‘vulgar’ de espírito limitado pode muito facilmente julgar-se extraordinário e original, e comprazer-se sem modéstia nesse pensamento.
(…)
A segunda categoria é muito mais infeliz que a primeira. Isso deve-se ao facto de um homem ‘vulgar’, mas inteligente, mesmo se se julga por vezes (e até durante toda a vida) dotado de génio e originalidade, não deixar de albergar na alma o verme da dúvida que o rói a ponto de lançá-lo em complexo desespero. Se se resigna, permanece, no entanto, definitivamente intoxicado pelo sentimento de vaidade recalcada. De resto (…) o destino desta categoria inteligente de homens medíocres está longe de ser tão trágico; quanto muito, sucede-lhes sofrer pouco ou muito do fígado ao cabo de certo número de anos: a isto se reduz a sua infelicidade.»

… escreve isto Dostoievski no ‘Idiota’ ( ed. Arcádia, 1971, pags 518-20), mas já bastante depois da cena em que o Príncipe Mychkine – numa misoginia reprimida, ou envergonhada, certamente - confrontado com a questão:
«- Deixa-se atrair pelo sexo feminino, príncipe? Fale sem rodeios.»
Responde:
«- Eu? Bem…(…) devo dizer-lhe… nada sei de mulheres.»
Ao que Rogojine reage:
«- Ah! Sendo assim, príncipe, és um verdadeiro visionário; Deus gosta das pessoas como tu.»

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