The uses of optimism

Roger Scruton, um dos pensadores conservadores da moda, e um pensador ainda com algum rating acima da banca portuguesa, tem como título do seu último livro, 'The uses of pessimism', (que vai traduzir-se em português como 'as vantagens do pessimismo' - que é o que se pode chamar uma tradução optimista) e tenta transferir o pessimismo do cestinho das grandes poses estéticas para a elite das grandes correntes autónomas do pensamento. Estamos, de facto, em tempos nos quais, não direi mais que nunca mas ficava bem dizer, um olhar pessimista sobre o mundo, a criação e outras miudezas é o único que garante uma audiência intelectualmente apinocada. O optimismo hoje está arredado para as plateias das igrejas de pendor mais ou menos psicadélico.

Ou seja, o optimismo precisa duma reabilitação teórica, precisa não apenas de um novo enquadramento ou aggiornamento, precisa mesmo de ser levado a sério novamente. E para isso temos de recuperar os mais famosos contributos do optimismo clássico e barrá-lo com umas fatiazinhas de queijo filadelfia.

[.] podemos sempre piorar - esta é uma das bases epistemológicas do optimismo. Ou seja, não há propriamente uma tendência optimista nem pessimista, há apenas uma hipótese ditada pela criação tanto quanto a conhecemos: o fundo é apenas onde está a tocar a ponta da broca.

[.] a seguir à tempestade vem a bonança - se repararmos não há noticia de ninguém ter aparecido a informar peremptoriamente que a seguir à bonança vem a tempestade. Moral da história: apenas a bonança pode aspirar a um estatuto de permanência, a tempestade será sempre um preliminar, ou então algo para dar alguma importância a um copo de água.

[.] não há mal que sempre dure - A eternidade está claramente ligada às coisas boas. Apesar de se falar no fogo eterno dos infernos, todos acreditam realmente que, a certa altura, quando estiver algum portuga de turno ao forno, vai faltar a lenha na coisa.

[.] o optimista é apenas um tipo pouco informado - esta máxima da pessimofilía com pretensões de belo efeito, apenas nos revela que o mundo (agora e sempre) se divide entre os pouco informados (optimistas), os desinformados (todos), os muito informados (pessimistas) e os reformados (estes agora têm de estar em todo o lado). Mas a parte que o cobertor curto do conhecimento deixa a descoberto é que os optimistas são afinal os que retêm apenas a informação suficiente para conseguirem chegar a reformados.

[.] A ideia de progresso - Ao contrário do que pode parecer, a ideia do progresso radica numa virose pessimista que por vezes penetra no ideário optimista, e que nos apresenta isto: não podemos estar completamente felizes como estamos, logo temos de piorar para demonstrar que estávamos melhor antes! Ora o verdadeiro optimista pensa que estamos bem como estamos, e não exige demonstrações: não mexam, pois, ok, nada se perde, nada se cria, mas tudo se pode baralhar. O revolucionário é afinal o maior dos pessimistas encapotado.

[.] O eterno retorno - Basicamente nós estamos sempre na mesma. O optimista é aquele que sabe que a casa da partida está sempre colada à casa da chegada. É aquele que sabe que tudo é possível, até a própria possibilidade de ser possível a possibilidade. Quando algo parece estar a desabar é apenas uma situação de caldo retornado.

[.] As evidências que realmente contam - Por cada dia que passa, todos e cada um envelhecem proporcionalmente menos e, ao contrário do que o rebadalado Keynes apontou, a longo prazo, tudo aponta, estaremos todos vivos, pois não há experiência de mortes entre os actual e a dado momento vivos. Para morrer não basta estar vivo.

[.] O optimismo como hospedaria - Todo o pessimismo é uma forma de parasitagem (hoje culta) num optimismo adormecido ou eventualmente negligente. Mas o optimista é tão hospitaleiro que inclusive acha que o pessimismo é algo que merece ficar protegido do frio e da chuva e alimentado com comidinha quente no seu regaço. O único amigo do pessimista é o optimista; sem o qual morreria de inanição.

[.] O optimismo como paciência - Existem duas correntes no optimismo: o optimismo de intervenção, que se baseia na experiência de que em principio a probabilidade de melhorar é grande se mexermos na realidade, e existe o optimismo de sustentação, que parte do principio que não mexendo se fica melhorzinho. De facto tudo radica na percepção da variável que condiciona o evoluir do mundo: a paciência. O pessimista é um impaciente frustrado e o optimista é um paciente realizado.

O optimismo é hoje o último reduto teórico da espécie e o pessimismo não passa dum expediente retórico para nos tentar fazer esquecer que a merda é apenas estrume. O pessimista apenas gere as expectativas que o optimista soube criar.

verso à terça

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade in "Nova Reunião"

e três vivas à duquesa da cornualha

Fedócles, Éstrilio e Dolarípedes constituíram um famoso grupo de dramaturgos alternativos que fez furor na Grécia Antiga, mas que acabaram por não entrar na posteridade por manifesta inabilidade em arranjar miúdas giras para as suas tragédias. Como sabemos, uma tragédia vive essencialmente duma miúda gira que, incapacitada por adn ou fungos de ser boazinha, se torna mazinha. Fedócles, que ainda assim se celebrizou pela frase da sua heroína 'Ecléctrica' : «Neste mundo onde os pólos se atraem a virtude só serve para aparar os choques», era um homem simpático mas nunca recuperou do desgosto de amor com uma chavala de tranças chamada Filantra, que o trocou por um vendedor de serapilheira de Salamina. Para se restabelecer escreveu a meias com Dolarípedes (primo de Eurípedes, está bom de ver) uma peça, hoje esquecida, de titulo 'As Beras'. Neste drama absoluto, precursor de todas as MacBethas & Briony's, uma moça chamada Laurinea, (os nomes que escolheram também não ajudavam à perpetuação da fama) apesar do seu ar angélico e doce, dedicava grande parte da sua vida a massacrar os homens com conselhos repetitivos sobre a melhor forma de atar as sandálias e puxar os cortinados das janelas. 'Uma gaja muito chata nunca pode ser malvada' era a mensagem que pretendiam desenvolver e transmitir numa borralheirice avant la lettre. Assim, uma meia irmã de Laurineia, uma rapariga de bom porte mas com o pescoço demasiado desenvolvido e chamada Celígona, revelava-se duma maldade rebuscada ao ponto de seduzir e depois enviar todos os seus amantes para um poço, prometendo ir lá ter disfarçada de rã, mas afinal deixando-os morrer de angústia e frio à sua espera. Uma terceira irmã, Estafermesta, rapariga mais dada ao estilo killing me softly, rodeava os pretendentes com um pudim à base de baunilha, nádegas rijas e ovos moles, e quando estes se apresentavam em ponto rebuçado mandava-os para a sauna meditar e desenrolar papiros. Apenas Laurinea, nas suas rotinas de mulher chata e preocupada com os tropeções e fraquezas de quem amava em segredo, se mantinha fiel, cuidadosa e sem artimanhas de género. A maldade feminina ficou ali para sempre fixada: uma combinação de sonho com expectativa, de ar quente e precipício, e Éstrilio no seu famoso, e também esquecido nas poeiras do tempo, drama 'Las galifonas' tão bem a soube sintetizar na frase da sua megera preferida, Sulipantia: «o homem para nós é apenas uma fecunda escolha».

triplex

Gajascópio

Há três percursos essenciais na blogosfera feminina: acompanhar as idas da ana d' amsterdam ao ginecologista, da io à opera e da cristina ao cinema (mais tarde falarei de outros circuitos alternativos não menos interessantes). São registos que colocam à disposição do homem moderno um leque de sinais indispensáveis para a compreensão do universo da sensibilidade feminina, assim se comprovando que esta, para além de possuir o sexto sentido, também há fortes possibilidades de incorporar os outros cinco. Desde umas pernas diagnosticamente abertas, até uma japonesa a rir-se enquanto desce umas escadinhas, passando pelo tenor maltês com trinados de encantar, estamos sempre perante visões do mundo, sejam elas de pormenor ou sejam de rasgo ou pendor impressionista, que escapariam ao homem, mesmo ao mais atento.
A mulher sensível começou por ser uma invenção colorida do homem carente, depois passou por ser uma obsessão sombria do homem indolente e transformou-se hoje numa distracção sadia do homem insolente.

Desígnios

Já tivemos o Portugal amordaçado, temos já há alguns anos o Portugal estagnado, e agora temos o Portugal à espera de ser resgatado. Nunca tendo saído do sítio - a proposta de Saramago para nos tornarmos uma jangada de pedra foi inesperadamente negligenciada - estamos hoje meramente mal estacionados à porta da Europa, sem perceber se eles vão fechar os olhos, rebocar, ou bloquear-nos as rodas. Ser governo em Portugal significará tentar as duas primeiras hipóteses, logrando ficar apenas com uma pena suspensa. E garantir que há pelo menos energia suficiente para manter os quatro piscas ligados.

Caprichos

Lê-se hoje no Ipsilon (meu deus, meu deus porque me abandonaste), a propósito da Mª Gabriela Llansol, que esta 'não reinventava a língua por capricho académico, mas por uma consciência profunda de que a língua condiciona'. Ora isto volta a lembrar-me que o capricho é um constituinte básico da alma (isolada e em socialização). Mal amado, muito colado a uma superficialidade de gosto ou mesmo ética, o capricho é de longe o patinho feio dos grandes mobilizadores da história. Os aiévadrimes, as vontades férreas, as conciências (profunda ou não) do dever e o sentido de missão têm fodido as hipóteses de muito capricho. Troco três preconceitos já consolidados por um bom capricho ainda à procura de seu lugar ao Sol. Mesmo que envolva a língua.

música à 6ª

verso à terça

Ó pastora, ó pastorinha,
Que tens ovelhas e riso,
Teu riso ecoa no vale
e nada mais é preciso

Fernando Pessoa, in Quadras ao Gosto Popular (nº 155)

daquele livrinho de entrevistas de que se fala por aí

«Afinal, podia-se falar durante horas acerca da relação entre um pai e um filho. A única coisa clara é que um pai tem de estar disposto a que o filho lhe cuspa em cima quantas vezes quiser»

Bolaño, pág 73

lua cheia

É o atraído que define a atracção. É o luar que desenha a noite. Eles nunca tinham experimentado um luar juntos, deitados, como se numa bancada de laboratório à espera dos raios de luz que o satélite saca à estrela-mãe lhes fatiassem o coração, sentimento a sentimento, como filetes à espera de panar. Ou penar. A ilusão é o mais próximo que o homem atinge da espiritualidade e eles esperavam que aquela lua cheia os esclarecesse: teriam chegado ao amor demasiado cedo ou demasiado tarde. Com o astro-príncipe a dominar-lhes o olhar e as mãos, acarinhavam a ansiedade comum como se dum defeito diluído no próprio sangue que bebiam sem querer saber. Ela depois de lhe roçar os cabelos pela curvatura do pescoço, fixou-o com as artes do sorriso e fez-lhe ver que se não tinham construído um leito conjugal pelo menos conjugavam uma lealdade de compêndio. Ele, olhando para aquela intimidade talhada com golpes de dor e riso, perguntava-se, coando ingenuidade, se um nome poderia salvar uma união inominável, e esperava milagrosamente que aquilo que Deus por distracção não tinha unido poderia agora a Lua reparar. Em cheio. Encostaram então as faces e os lábios sem se olhar, pois tinham medo que algum se transformasse em pedra, e ele sussurrou-lhe que a raptaria antes do quarto minguante, quando já ninguém estivesse à espera de príncipes a trepar por cordas. Ter a lua como única cúmplice garante perdão eterno. Ela nada disse, era seu costume garantir que quem cala só sente.

Serve o presente para avisar os mais distraídos que no próximo Sábado dar-se-á a maior lua cheia dos últimos 20 anos

O inverno está quase a acabar e antes de deixar que o pólen me obstrua os canais que dão acesso à zona bulbosa do tino, deixo hoje o dicionário não ilustrado abordar um tema que é absolutamente essencial em dias de dúvida e incerteza, e nada melhor do que fazê-lo enquanto os reactores ainda estão entre o quente e o frio. Quais são então (apenas um grupo seleccionado) os qualificativos que um homem pode receber duma mulher como críticas (ou até insultos) mas que serão sempre recebidos como um certo perfume elogioso. Se alguma mulher por mero, acidental inclusive, acaso aqui passar, guarde para si este segredo: não os use se quiser pôr um homem a milhas.


Insuportável - nenhum homem gosta de ser apenas suportável, e se a alternativa é não o suportarem, ele tem sempre a capacidade de se iludir como sendo um problema de demasiada densidade da sua personalidade, ou mesmo, para aqueles mais dados aos conceitos não palpáveis, algo metafísico que se deva à enorme intensidade do seu ser.

Irritante - Chega a ser confundido com um epíteto carinhoso e há muito irritante verdadeiro que assim se tem mantido graças à ambivalência intrínseca do termo. A irritação é um estado muito próximo da felicidade e nunca deve ser trazido para o mundo delicado, mas exigente, da retórica recriminativa.

Porco - Com a aparência de insulto radical, muitas vezes revela-se apenas um insulto de transição e até já foram observados casos de pocilga com dossel.

Insensível - este epíteto, da categoria dos insultos de fase preliminar, é muitas vezes absorvido como um convite à ternura, e em várias observações antropológicas serviu de dique no processo de repúdio, deixando-o novamente a boiar. Não confundir com o desgastado 'já não sinto nada por ti' que basicamente apenas pertence à categoria menor dos desabafos-de-amor.

Crápula - É uma espécie de insulto-com-estudos, raramente utilizado em movimentações tácticas correntes, mas que traz consigo toda a beleza que paradoxalmente o mal incorpora. Geralmente é assimilado como um hino à sofisticação que está no âmago de qualquer bom cabrão.

Inqualificável - Trata-se duma designação da categoria dos híbridos e que geralmente deixa no ar excessiva liberdade de escolha. Ainda para mais, o homem ao assumir que está a ser chamado a qualificar-se não raras vezes o faz sem se tornar mais indefinido e viscoso ainda. A mulher deve trazer sempre consigo a caixinha onde guardou as primeiras impressões.

Besta - De aparência algo cruel, este epíteto foi ganhando no coração do homem moderno um espaço de consideração e mesmo estima. O homem ao saber-se e sentir-se a besta de alguém tudo fará para carregar esse fardo com mais ligeireza, poupando a sua carga de apeadeiros sem condições mínimas e dando-lhe um balanço de albarda recheado de cuchi-cuchi's que muitas vezes conduz ao anestesiamento de coxas.

Farsante - Geralmente é uma atribuição que pretende atacar um dos constituintes básicos do núcleo moral da condição masculina, mas que acaba por trazer à superfície o componente lúdico que transforma a virilidade no mais potente afrodisíaco. Qualquer artista da braguilha sabe gerir a galáxia de diferenças que pode separar um 'és insignificante' dum 'já não significas nada para mim'.

Lamentável - Comunicar que um homem é objecto de pena e lamentação, quando tudo poderia indicar que se tratasse duma estocada irremediável, quase sempre se revela um tiro no pé, pois qualquer um sonha em estar deitado nos braços duma pietá, seja qual for a cruz que lá o tenha conduzido.

querido sócrates,

Eu, ao contrário desta turba de vândalos inconscientes, ou oportunistas impacientes, ou crueis impenitentes, compreendo-te. Tu tudo tens feito para o nosso bem e, sei-o, com enormes sacrifícios pessoais, prejudicando o teu jogging, a pós-graduação em marquises que pensavas tirar, e até o brilho do teu cabelo. Percebo perfeitamente que não quisesses preocupar o dr. cavaco e a sua reformada drª maria com essas medidas difíceis e ingratas que só tu sabes tomar com tanta discrição e,  direi mesmo, ternura, sei-o, pensando sempre primeiro nos mais desfavorecidos, naqueles que sofrem em silêncio, e inclusive dos que sofrem aos gritos, naqueles que apenas têm no teu olhar sereno o último refúgio de serenidade e bem estar. Tens sido o nosso amparo, sei-o, e tens-nos defendido com unhas e dentes junto daquela moça meio-bucha, a alemã, tens-lhe feito ver que somos um povo que também já sofreu muito, e inclusive, também tivemos o Salazar e tudo, e esse nem sequer tinha um bigodinho, nem ouvia o wagner nem nada, apesar de agora se saber que era maluco por rabos de saias. Não lhes ligues, não desperdices com eles a tua abençoada luz, eles não querem, nem jamais lograriam, compreender o quanto tu tens dado a este povo de marinheiros, e até já demonstraste que basta ter dois braços e duas perninhas para se ser teu ministro, tal a tua genuina vontade de dar oportunidades a todos, até já tiveste de falar inglês, ou ouvi, e já tiveste de ir vender computadores azuis àquele gordinho de encarnado que fala espanhol, eu sei muito bem o que isso é, ter de andar pelo mundo fora a dizer que os nossos produtos são muito bons, e muitas vezes sem tempo nem para ir ver umas montras, ou mesmo comer só umas sandes à pressa no free shop. Não lhes ligues, continua impregnado desse dom raro que te inunda, e a zelar por nós, como sempre tens feito, eu sei-o, e contra ventos e marés mesmo que aproveitando-lhes essa energia pura e limpa que tu tanto amas e amparas, estou aqui para te dizer que não estás só nessa missão, ainda há quem encontre em ti a nossa ultima réstia de esperança e sonho e luz e caminho, esse cheirinho reconfortante do vick vaporub que nos desentope a alma. Não deixes que venham os do fmi, não deixes, e se quiseres eu ajudo-te a pôr o barrote na porta e a entornar-lhes para cima o azeite a ferver. Não ligues aos maus, eles só querem roubar-te esse piqueno prazer , esse poucochinho e humilde prazer que tu ainda tens, que é servir desinteressadamente este povo que , muitos até sem o saber, dedicadamente te ama e que já não saberia passar sem ti e sem essa tua voz de pai e amigo que nunca vir a cara às dificuldades.

verso à terça

Dá-me o teu oco   Dou-te a minha faca
Troco tudo por nada e sempre ganho
É uma feira   uma festa   cada troca
se lugar tem à sombra do segredo
Conheço o tabuleiro   Mas o jogo
é que não mais a conhecê-lo aprendo

A própria vida quando assim a prendo
tem o gosto que fica numa faca
depois de arremessada só por jogo
de encontro ao que perdido já é ganho


David Mourão Ferreira, in Matura Idade

central de co-geração

O verdadeiro problema que vão enfrentar as novas gerações não será a precaridade, nem a globalização, nem a paroquização, nem as micoses, nem o pacheco pereira, o verdadeiro problema que enfrentarão será arranjarem um nome que lhes convenha e que possa servir às teses dos barretos de sec xxi . O dicionário não ilustrado não podia faltar à chamada (entradas 1360 a 1368):


geração rosca - considerando que as anteriores já possam ter esgotado as prerrogativas da anilha, julgo que esta designação assentará bem a uma nova geração que estando no buraco queira desatarraxar um pouco a pressão para poder aliviar na geração seguinte.

geração masca - com o desaparecimento do consumo de tabaco pela via da queima da folha, associado ao desaparecimento da abundância dos bens alimentares, a grande capacidade evolutiva e adaptativa do ser humano fará com que o sistema gástrico adopte também a configuração e funcionalidade ruminante, e assim onde estiver um homem da nova geração estará pelo menos um maxilar em movimento, fazendo com que, refluxivamente, o jantar do dia anterior possa também fazer de almoço do dia seguinte.

geração avatar - depois de todos os recenseados terem sido reabilitados e limpos de impurezas pelo programa das novas oportunidades, pode finalmente ter sido descoberta a fórmula de um português entrar no corpo de um habitante de dusseldorf e assim passar pelo menos um mesito por ano a viver à conta do orçamento alemão.

geração Alasca - depois de esgotados e fechados os destinos históricos da emigração nacional, descobrir-se-á que poderemos congelar - longe - uma ou duas gerações até aparecer uma nova em condições de poder novamente recomeçar a emigrar para bidonviles decentes.

geração atasca - considerando que a um grande ciclo da abundância se seguirá um ciclo de miséria, a actividade principal do jovem de uma nova geração será fazer número na bicha do pão e do leite, açambarcando assim quantidades suficientes para que a geração anterior - que está em casa a ver a telenovela e a contar os buscopans - ainda aguente mais uns anitos e assim mantenha a respectiva reforma, a última que o sistema produzir, e única fonte de rendimento estável (e estática) do desagregado familiar.

geração matrix - sendo descoberto afinal qual é o programa de computador em que estamos inseridos, cada geração procurará desenvolver as suas aplicações por forma a que apanhando uma ficha usb na estação do cais do sodré consiga acordar num restaurante em pequim, ou numa casa de massagens em Bangkok.

geração casca - a cada nova geração é entregue um espremedor para sacarem o mais que puderem das polpas das gerações anteriores. Os conflitos geracionais passarão a ser entre quem faz de grainha, semente ou caroço.

geração belisca - com o melhor conhecimento dos diversos tipos de estados de consciência (depois das experiências de A. Damásio com cérebros perfurados de impostos), cada geração poderá colocar as gerações anteriores em mero estado de vigília, consumindo menos recursos, e apenas as beliscando de vez em quando para acordarem e assinarem os cheques.

geração al dente - depois de todas as gerações terem percebido que fazem parte duma massa informe e sem capacidade de influenciar qualquer tipo de molho, resta a cada uma adquirir a melhor consistência e textura para que quando for trincada não se parta em gerações mais pequeninas sem capacidade de fazer manifestações em condições.

The dark side of the wool # n+4

Quem pastoreia escrúpulos tosquia borbotos.

música à 6ª

Almoços Grátis. série 2 [18]

Ambiente típico de meia casa: uns a acabar e outros a começar. Uma das coisa que L. nunca soube é que eu gosto de misturar o salgado com o doce, ali, mano a mano, chocalhando papilas. Hoje ela estava, como se costuma dizer: alheada de tudo; escondida entre duas constelações. Andava pelas mesas maquinalmente, como uma vitrina de sobremesas, aparando necessidades, fomentando caprichos, alimentando ilusões de carne e de peixe, sei lá, cumprimentou-me como se fosse apenas mais um, se bem que todos somos apenas mais um, mesmo que todos, algum dia, esperemos ser o-um-mais de alguém. Hoje pedi filetes de polvo. O polvo é um animal de despedidas, muitos braços para dizer adeus. Sabia que iria estar mais uma temporada sem a ver. Ela também sabia. Às vezes parece que sabe tudo, chiça. Nos últimos dias senti que este meu regresso tinha sido uma desilusão para ela. Todos os dias eram imprevisíveis, todos os dias se desenrolavam sentimentos diferentes, não havia continuidade, não havia a tranquilidade duma causa de mão dada com a consequência. Não chegou a haver ciúme, não chegou a haver desencantamento, se calhar nem sequer tinha havido saudade, e apenas uma curiosidade com um bom disfarce. Desta vez vou enviar-lhe este meu diário pelo correio, como se fosse uma encomenda de pasta fresca, depois logo se vê; pode ser que assim lhe ponha o coração a bater mais, ou então que o queime com mais cuidado, como quem grelha peixes espalmados. Numa escala de cinco pôr o coração a bater mais é nível dois, as pernas a tremer é nível três, e suores frios é nível quatro. Sonharem connosco é nível quatro e meio.

Sol na eira, chuva no nabal. Todos o desejamos. Tinha uma novidade no menu para te sugerir: um caril verde tailandês, feito por uma amiga que viera de longe em visita. Suavemente picante, o doce do leite de coco a controlar a irreverência salgada do molho de ostras, o toque ácido do sumo de lima a apelar aos sentidos. Todos. E no entanto... Gostarias de uma tal fusão de sabores, materializada de forma delicada mas sensual no teu prato, que tanto desejava oferecer-te neste dia? Serias capaz de reconhecer toda a dimensão da dádiva contida numa proposta tão simples como a linha de uma ementa do dia? "Filetes de polvo, pois bem. Com arroz branco ou de tomate?", só. Não era o momento para te dizer as palavras que faltavam, há um tempo para tudo, diz o Génesis, há um tudo para cada tempo, disseste-me no passado. E sobre o nada, o que dirás? Que "a questão principal é a do sentido / não das frases: dos factos"? (*) Tarte de amêndoa e tangerina, agridoce. E o "riso / cada vez mais é um modo / de acabar, talvez as coisas / já sejam só palavras, tudo / existiu na mente, e acreditámos / que ela estava / também, fora de nós dando existência / aos que eram pensamento"? (*) A sua conta, Doutor. "Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras." (**) E até sempre. "Conheço o sal que resta em minhas mãos / como nas praias o perfume fica / quando a maré desceu e se retrai. [...] A todo o sal conheço que é só teu, / ou é de mim em ti, ou é de ti em mim, / um cristalino pó de amantes enlaçados". (***)

L.

(*) Gastão Cruz, in 'Escarpas' (**) Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum' (***) Jorge de Sena, in 'Antologia Poética'

Almoços Grátis. série 2 [17]

Quando entrei no restaurante ia a pensar: será que já lhe pedi alguma coisa que ela não me desse? O que vale a primeira negação? Quando destrói uma recusa? O que distingue o desinteresse do desprezo?  O prato do dia um bacalhau assado, que eu não posso dizer que goste, e suporto com alguma benevolência. Ela estava à espera que eu o escolhesse, mas eu disse que não queria. Mais, acrescentei, quase insolentemente, hoje não há aqui nada que me apeteça especialmente. Ela fez cara de 'há mais restaurantes na zona', mas inesperadamente conteve-se e respondeu-me, não sem a agressividade típica de um certo formalismo: se quiser peço à cozinha para lhe fazerem um bife. Senti-me num jogo. E senti-me mais bem preparado que há dois anos atrás. Disse que um bife me parecia bem, mas não precisava de ser do lombo. - Podem guardar o lombo para os clientes mais exigentes. -Tu és o cliente mais esquisito. - Define-me o teu esquisito. Já havia muitas mesas em estado de emergência. Mas quem fazia ti-no-ni por dentro era eu. O bife veio muito mal passado. Quando andamos a pisar o risco o pior que pode acontecer é o risco mover-se. Quanto batemos o pé o pior que pode acontecer é o chão fugir. Quando queremos fugir à pressa o pior que pode acontecer é não distinguirmos o trás da frente. A fuga a quente é apenas uma presença mal passada.

"Cara fechada, frente de batalha", pensei quando te vi entrar sem cumprimentar. Confirmou-se. Lembrei-me de uma frase lida num pequeno e curioso livro de que já muito ouvira falar, "A arte da guerra", comprado durante a escala num aeroporto qualquer do hemisfério sul. Vejamos, qualquer operação militar tem na dissimulação a sua qualidade básica: "Oh Doutor, por quem é! Se quiser peço à cozinha para lhe fazerem um bifinho." Há poucas coisas mais difíceis do que obter uma posição favorável frente ao inimigo: "O senhor é o cliente mais esquisito." Recorreste à opção de manter o inimigo sob tensão e cansá-lo: "Define-me o teu esquisito." Preferi a habilidade maior, dominar o inimigo sem o combater. Risco por risco pedi à cozinha um bife em sangue, utilizando um caminho que, para ti, seria inesperado. Afinal, como dizia aquele poeta inglês muito famoso, a melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo.

L.

Almoços Grátis. série 2 [16]

Hoje foi dia de canal odissea. Todos observavam todos, aquele restaurante parecia um ninho de espiões. L. encaixa plenamente no seu papel de agente dupla, dando informações a todos os lados, desde molhos picantes a nomes de primas de ministros. Inesperadamente sentia-me bem, sentia-me do lado dos bons, daqueles que apenas defendem as causas nobres: um amor, uma cabana e uns pastelinhos de bacalhau. Não havia prato do dia, julgo que L. decide assim quando prevê que vai ter clientes com interesses muito parecidos e que se conhecem uns aos outros; todas as mulheres que valem a pena gostam de brilhar. A certa altura comecei a sentir-me a mais, é um sentimento que conheço bem, posso mesmo dizer que me é familiar, aliás, se há dom que tenho é o de passar despercebido. Ela sente-se à vontade quando o radar lhe revela que eu estou num daqueles dias em que faço de conta que não existo. Há cinco níveis na transparência, sentir-se dispensável é nível três, sentir-se irrelevante é nível quatro.

Vieste sem o harém, logo hoje? seria uma oportunidade excelente para a cascavel dentro de mim te proporcionar umas boas gargalhadas, acredita, lombos de peixe-porco em tomate, escolhi por ti para ti uma receita da Justa, tenros, suculentos, bróculos e cenouras miúdas como acompanhamento, os desenhos que os meus dedos traçavam no teu peito, ao sabor de um desenho antigo de Pollock, puseste aquele arzinho etéreo e blasé que tanto me diverte, como se não soubesses, com o arroz doce, a certeza.

L.

Almoços Grátis. série 2 [15]

Existem dois tipos de dias: os dias em que acontece um pouco de tudo e os dias em que tudo pode acontecer. Quanto ao de hoje ainda não decidi. Entrei no restaurante com o meu amigo C., uma amizade antiga, a conversa a escorrer com uma naturalidade tal que nos sentámos quase sem eu dar conta desse acto de puro heroísmo. Como que de propósito L. aproxima-se da mesa e serve-me - apenas a mim - um sumo de tomate sem eu nada ter pedido. Tal o inesperado que C. fez aquela cara que corresponderia a ela ter-me encaixado a mão entre as pernas. Tenho uma aversão completa a sumo de tomate pelo que fiquei a olhar para ele, como o peregrino olha para a cera a derreter-se nas velas. O primeiro silogismo foi: sangue, tourada, cornos. Estremeci. O segundo foi: cor, calor, amor. Estremeci mais ainda. C. entretanto e de forma despachada pediu amêijoas sem perder tempo a fazer-me perguntas obvias, mas também sem evitar o estamos muito bem, menino, muito bem. Ri-me, com aquele desdém do comprometimento descomprometido que trago desde que me desmamaram, mas ainda com dois silogismos a dançarem entre hemisférios. L. aparecia esporadicamente apenas para despachar um está tudo benzinho. Benzinho. Fiz um teste: pedi batatas fritas com os chocos. Claro, acho que até já o fazem assim para ti, rematou L., sem deixar cair no chão. Se calhar quer ir a Fátima contigo e não sabe como pedir - ricocheteia C., campeão nacional de sarcasmo aos pratos. Consegui falar de dezoito assuntos diferentes durante o almoço, felizmente tenho a imaginação completamente amestrada, e C. não se acanha, também foi campeão de bilhar. Mas não serviu de nada. No final do almoço L. aparece na mesa, senta-se a um dos lados mais afastados de mim e dirige-se a C.: - o seu amigo há dois anos deixou de cá vir, sabe a razão? Ainda sinto a mão encaixada entre as pernas. Sangue ou calor.

O Carlitos aproximou-se, conspirativo "O teu 'cliente' (sibilou 'cliente') trouxe aquele tipo que me dá cócegas no céu da boca". "Cócegas onde?", não acreditei nos meus ouvidos, ou o radar do Carlitos avariara ou o meu gps perdera mapas. "Quem vai à mesa dele hoje?", sussurrou quase em assobio. "Tanta excitação, rapaz! Mete a cabeça em água fria, vou eu!", antecipei a ignição da ludopatia. "Sr. Doutor, o seu 'bloody mary' sem álcool. A pimenta, prefere-a preta, claro..." Olhei o teu amigo como se lhe vendasse os olhos com a gravata, perguntei "O senhor?" e deixei-o a olhar o vazio. Ou para ti, não cheguei a perceber, vejo mal das costas. "Amêijoas à Bulhão Pato, se faz favor. São de pedra?", ouvi atrás de mim. "São, mas posso empratá-las em seda vermelha, se preferir." Às vezes tenho medo da mulher que posso ser. "'Muito bem' uma pinóia, seu trambolho!" ainda lhe respondi, dentro do silêncio frio. "Carlitos, serve-os tu! estou sem paciência para tolos." Passei na vossa mesa a espaços, "Como está tudo, 'benzinho'?", provocava-te. Adorei que pedisses batatas fritas, movias o bispo no tabuleiro, respondi-te a contento. O teu amigo "blá blá blá". Com a conta decidi abrir-te a braguilha. "Doutor C., o seu amigo esteve dois anos sem cá vir, sabe o motivo?", afundei a mão. Afinal o que importa é a pergunta certa, a resposta? Essa não me diria nada que não soubesse já.

L.

Almoços Grátis. série 2 [14]

Hoje estava cheio de fome quando lá cheguei. É a coisa mais tenebrosa que me pode acontece quando lá estou. Ela sente-o logo, como uma lavadeira descobre uma nódoa, e tudo em L. se torna dever e responsabilidade, os grandes inimigos da ternura. Aquele restaurante é a minha trincheira, não é o meu berço. Respondi como um rolamento numa linha de montagem, comi, sem sequer resmungar alternativas, como um príncipe albanês nas mãos duma ama suiça, um bife saído da passerelle dum matadouro dos alpes. Espero ter terminado com umas faces rosadas, espero que os meus olhos tenham brilhado de fastio. Espero que o meu estômago tenha podido corresponder às expectativas de L. Espero que vendam bandas gástricas na tabacaria. Hoje que me senti tubo de escoamento tive saudades do tempo em que pensava ser verbo de encher. Mais um dia de fome e a paixão morre como o peixe.

Por mais voltas que dê ao Sol não conseguirei compreender essa tua cabeça espiralada que ora quer o que não quer ora não quer o que quer. A minha experiência de vida ao serviço dos homens ensinou-me uma caterva de inutilidades quando se trata de ti. Queres comer, dou-te de comer, empenhada e profissional. É para isso que me pagam aqui, não sou uma gueixa, sou uma empregada de mesa, inculta mas com os meus pergaminhos. Quisesses-me tu como 'escort' e poderias contratar-me, 'after hours.' Saciar-te-ia de ternura a troco de beijos, ficava-te barata afinal se o sugerisses. Poderia ler poesia francesa, resumir os episódios das telenovelas e mostrar alguns heróis das séries da FOX e do AXN. Cantar o fado. Cozinhar. Num negócio entre iguais, fora de portas, partilhar pequenos prazeres. Aqui apenas me obrigo a. Como se um peixe agarrado ao anzol. Asfixiando a paixão, de olhos bem abertos.

L.

Almoços Grátis. série 2 [13]

Hoje ela estava com um olhar reprovador. Fez-me aquele sinal de mão que pode significar desde o olá, até ao espera, passando pelo hoje não dá, ou, nos piores dias, deixa-me em paz. Venha o diabo e decifre. Limitei-me a pedir uma salada de salmão fumado; um dos meus menus de refúgio, que permitem uma espécie de degustação em piloto-automático, sabores intensos mas familiares, que não exigem concentração e dão uma satisfação previsível. Sonho com o dia em que também possa estar com a L. assim, em piloto automático. Hoje mal a vi. Descobri, à força de poesia, que é possível a ausência terminar sem que a presença regresse. Felizmente estou preparado para as ausências. Inclusive para o abandono. Numa escala de um a cinco ausência vale dois, abandono três e desprezo quatro.

Anda tudo louco no restaurante desde que a cozinheira principal fugiu com o motorista de longo curso. Vou ver o mundo, disse ela antes de nos pôr a ver navios a todos. A pobre que a substituiu ainda está para saber o que lhe ensinaram no 'curso' que a Câmara lhe ofereceu a troco de um subsídio mensal. Duvido até que ela saiba que curso tirou mas apareceu com um diploma de cozinheira. Nada mais, nada menos. Tenho a paciência a bordejar o limite inferior, venham-me com o que quiserem mas poupem nos 'rodriguinhos', não há pachorra. Temos pena. Salada de salmão fumado? Delírios no menu, o patrão deu em fino. Não podia ser de frango, pois não? Salmão fumado, com uma pitada de ovas de lampreia, imagino... e com uns salpicos de aneto picado e umas lâminas de limão, certo? Muito bem, quem quiser que marche para a cozinha e aproveite para ensinar a cozinheira. Ah, queres salada de salmão? Porque é que não fui capaz de o prever, ou será que sim? Ou ta preparo ou preparo-me para uma crise de azia. Nas próximas semanas. Desde que voltes. Só isso. Vem. Queres que te escreva o resto, razões, dúvidas, pedidos, em morse de ovas de esturjão?

L.

Almoços Grátis. série 2 [12]

Restaurante apinhado. Logo hoje. Queria ter posto os sentimentos e os pensamentos em dia, consegui até safar-me a outro almoço. Um dos pratos recomendados era peixe-espada, concentrei-me para lhe pedir uma posta fechada. É uma mariquice mas resulta sempre. Excepto nos dias de enchente. Não sei se terei gaguejado as palavras posta fechada. Vamos lá ver se não preciso também dum terapeuta da fala. Especializado em ementas difíceis e comensais de pleura inflamada. Inesperadamente Lázaro ressuscitou outra vez: ela sentou-se na minha mesa e disse - és tão especial para mim. Acho que ainda estou à mesa, nem sei bem, oiço um zumbido esquisito, arde-me a garganta, lá ao fundo está uma luminosidade estranha. A palavra especial tem algum significado especial ou será apenas um simples derivado de espécie. Ela podia-se ter limitado a dar-me uma posta fechada. Numa escala de um a cinco especial vale três; único vale quatro.

Dia cheio, casa boa, patrão feliz, a tríada perfeita. Só te vi já à mesa, um certo ar febril (estarias doente?) e crispado (seria o esófago?) que te assenta bem, passe a ironia, confere-te uma aura de espiritualidade distante. Do que disseste, entredentes, não entendi senão 'espada' (seria rainha de espadas? assenta-me bem mas contigo prefiro ser a de copas). À copa pedi uma posta fechada, um pequeno mimo que te ofereci como se mo tivesses pedido por telepatia. Quando ta entreguei sussurraste uma expressão ininteligível, debrucei-me para te escutar melhor (o restaurante cheio é óptimo para enviesar a comunicação) e respondi-te "Não é tão banal assim, pode ser com molho de alcaparras?". Afinal falavas do molho de manteiga, continuavas febril, ofereci-me para te arranjar um ben-u-ron e recomendei que fosses para casa descansar. Sempre me fez espécie que as pessoas insistam em ir além dos limites que o corpo lhes impõe, ainda te disse com o troco.

L.

Almoços Grátis. série 2 [11]

Na zona da entrada tocava uma música suave. Quem escolheria? Será ela? Parece que já não me chegavam as dúvidas que tinha. Jurei que não lhe ia perguntar. Uma pergunta é muito mais perigosa do que uma resposta; mas uma não pergunta pode ser mil vezes pior que uma pergunta. Foi com ela que descobri o que era o estado de indecisão. E de alerta. E de arrependimento. Acho que antes de a conhecer o único sentimento que tinha era o de aflição para mijar. Nestes dois anos sem a ver só sentia falta dela aos sábados à tarde. Nunca percebi porquê, mas era quase automático, fizesse sol ou chuva. Hoje comi umas costeletas de borrego que são uma especialidade lá do restaurante, quando têm escolho sempre, e sempre pela mesma razão: penso que ela gosta que eu escolha aquilo. Como sempre ter-me-ia bastado uma sopa e um arroz doce. Melhor, ter-me-ia bastado que ela olhasse para mim; comer com os olhos, as grandes frases já foram inventadas. À saída tocavam os acordes iniciais de Will You Still Be Mine, do Sonny Rollins. Se havia mensagem não percebi. Se calhar é apenas o que toca quando há costeletas de borrego. Dois anos dão para relativizar muita coisa. Relativizar significa contentarmo-nos com as explicações que acompanham bem apenas com batata frita.

Local Hero, Mark Knopfler em tua honra. Música d'elevador, será que acedes à provocação? Provavelmente reconhecerás, afinal ambos sabemos que não era a resposta o que realmente importava. A pergunta, essa sim, deveria ser a certa. E apenas essa, decidida ainda que silenciosa. Determinada e determinante. Como se o cão de uma pistola puxado atrás e a menos de um milímetro do impacto. E, no entanto, a séculos do disparo. Um calafrio com que também vivo em cada vez que outro corpo, que não o teu, me habita provisoriamente o corpo. Detesto que peças costeletas de borrego, o pior é o cheiro. Acho que as escolhes para me contrariar, uma provocação gratuita com que me brindas como se me oferecesses um ramo fragrante de muguet. Ou de odoríferos nardos. Nesses dias, se pudesse, punha-te na frente um prato de sopa de peixe e um leite creme queimado. Só. E depois sentava-me no teu colo a partir, devagarinho, a crosta estaladiça e brilhante do açúcar queimado. Continuas a perguntar-te, jazzísticamente, se 'será apenas uma memória do passado', tecedor de sonhos? Ou pensas oferecer-me um tear para criar mantas de farrapos de desculpas eternas enquanto durarem? Por mim troco a subsidência da relativização pela elevação do perdão.


L.

Almoços Grátis. série 2 [10]

Cortou a franja. Em tempos eu tinha-lhe dito que gostava de franjas de esquadro. Estava um dia agitado, numa das mesas reunia-se um grupo espalhafatoso. Eu ia com a S. e  F., ambas giras, faladoras e engraçadas. Ela está habituada a que eu vá almoçar com outras mulheres. Nesses dias fica mais simpática, quer mostrar que é superior a esse contraste; julgo eu, que acerto julgamentos na base de um em mil. A S. um dia disse-me 'tu gostas daquela rapariga' mas depois riu-se com aquele riso disparatado que faria de qualquer resposta numa farsa. Comemos todos um risoto que me deixou enfartado e sem a ligeireza necessária para dar conta de tanta mulher junta. F., que de parva nada tem, disse-me que eu tinha esófago de apaixonado, andava sempre contraído para deixar espaço aos pulmões. Ia responder-lhe quando L. apareceu com um sorriso paralelo à franja. Eu parei o olhar e a S. não perdoou: estás com a hipnose du dessert? Riram-se as três. Bonito serviço.

'Casual friday', gosto de te ver vestido em azul e bege, camisa oxford e chinos, sapatinho sport chic a condizer com o relógio. Pintei as unhas de encarnado, puxei o cabelo num rabo-de-cavalo e pus as argolas de arrecada, o meu 'special friday'. Dedicado. Gosto que venhas com as tuas 'meninas', acredito que não te apercebas de quanto ficas mais vulnerável e transparente quando mais te crês escondido por trás delas. Como jamais te apercebeste que as mulheres comunicam por sinais, elípticas e encriptadas. Codificadas numa territorialização comum, telúrica e uterina, a que macho algum acede. O que elas sabem, pressentem ou adivinham nem às pestanas confessam, enquanto se esmeram a tirar nabos da púcara. Exímias predadoras, jogam aos contrários como quem come pistácios enroupados a melaço. Eu sei que elas sabem que eu sei o que tu não sabes que elas sabem. Prefiro a provocação viperina, fugidia, da loira à sensualidade exibicionista, ostensiva, da morena (S., não é?). O risotto da casa não é grande coisa mas o anfitrião, nesses dias, és tu. Pena. Não sei se elas sabem o que sei sobre o teu esófago, acredito que apenas a F. imagine a que se deve o arzinho de 'arroz tufado' com que ficaste. Com que ficas sempre que o meu lado ludopata se te declara. Afinal 'cheesecake' com arandos não é nada que te faça parar o trânsito digestivo, pois não? Gostes, embora.   

L.

Almoços Grátis. série 2 [9]

O prato do dia era cabrito. Eu, em geral, detesto comer. Ela sabe-o. Não é uma coisa que a deixe contente, mas vive bem com isso. Quando tínhamos apenas uma relação de pestanas ela chegou a dizer-me: ainda farei de ti um bom garfo. Foi a primeira vez que me tratou por tu. Nesse dia rimos os dois e também havia cabrito. Sempre associei o cabrito ao proselitismo gastronómico. Hoje estava uma meia casa e ela pela primeira vez esteve um bocadinho a falar comigo junto à mesa. Percebi que lhe apetecia chorar. O choro é uma camuflagem terrível. Não se vê nada por trás dum choro, e pode lá estar de tudo. Comi bifes de frango. A melhor comida para situações frágeis é frango. Despedi-me com um beijo. Saiu-me. Acho que ninguém viu. Se calhar ela também nem sentiu. O choro é uma segunda pele; impermeável. E já ninguém consegue molhar uma lágrima.

Não dei por que tenhas entrado, estava entretida a arrumar o balcão e a tentar esquecer o cheiro a 'ovino' que se me entranhara no nariz desde cedo. Dizer que não aprecio borregos, ovelhas, cabritos e cabras é uma desnecessária elegância. Detesto, essa é a verdade nua e crua. Seja como forem preparados e cozinhados. Abomino. Tudo, a começar pelo cheiro a pêlo molhado e sujo, que já vem agarrado à carne, até ao enjoativo odor a gordura oxidada, o bedum. Para um 'pisco' como tu (já não me iludo com transformações de 'hashi' em garfos) não me parecia o prato ideal, ia sugerir-te a corvina grelhada com acompanhamento de legumes salteados. Na mesa ao lado da tua o Dr. Soriano sorria-me ainda, de memória a anedota das minhocas 'queer' sussurrada minutos antes, e tuteei-te involuntariamente, rindo. Fosse pela surpresa ou pela familiaridade despropositada do tratamento, fizeste um ar reprovador e incomodado, gélido e cáustico, que me deixou à beira das lágrimas. É sempre mais fácil, e mais recomendável, evitar uma desculpa do que esfarrapá-la em frente a desconhecidos. Soa a incompletude, a desconchavo. A 'camuflagem', como dizes. É inútil e desgastante. Terrível, como dizes. Ironicamente não era a desculpa o que se camuflava, era tanto mais que chegava a ser tudo. O tempo. A pena suspensa num olhar. A perda. A presença ausente num abraço. A acusação. A  carne do frango rasgada no matadouro. A minha carne dilacerada no teu olhar. E um pousar de lábios na minha testa, entrevisto na cortina opaca das lágrimas. Como um sortilégio.

L.

Almoços Grátis. série 2 [8]

Passou uma semana e voltei lá. Fui com o J. que me trazia novas da Índia. Ter um tema certo de conversa, algo que me prendesse a atenção sem esforço, era absolutamente essencial para um dia como hoje. Se aqueles dois anos não tivessem transformado L. tratar-me-ia como se nada fosse. Senti-a triste e a tristeza não acompanha bem os diagnósticos. Já não fazia de recepcionista, mas não me ligou nenhuma. Decepcionista então. J. tinha-se apaixonado por uma indiana de voz doce com quem eu já fizera dois bons negócios, Saadi, e que apenas conheço de telefone. Disse-me que ela tinha uma beleza serena, ora, só faltava que fosse uma indiana maluca. J. percebeu que eu estava irónico em excesso para uns salmonetes. Detesto salmonetes. Agora toda a gente gosta de salmonetes. Por quê essa cara, perguntou-me L. à saída. A partir de hoje pelo menos tenho cara; menos mau.

Imagino que tenhas voltado pelas uvas, não me parece que te deixes seduzir por raposas. Mas talvez me  engane, já todos corremos atrás de um olhar traiçoeiro. Trazes contigo o teu amigo de cara larga e tranquila, "Excelente", penso com os meus botões, "assim não olhas para mim como se me verrumasses." Rodei na sala, troquei de lugar com o Carlitos e quis crer que te ofereci paz. A paz de que eu precisava. O Carlitos tem um fraquinho por ti, um destes dias leu-me um poema que me pareceu homoerótico num livro com o título "Desobediências" e perguntou-me se gostarias. "Acho que não", respondi, "mas na alma de um homem há muitas almas que se encaixam como as matrioskas, e algumas são inacessíveis". Tive pena do Carlitos, sabes? Por essa ilusão mas também porque se apercebeu que não deste o devido valor aos salmonetes que escolheu, um a um, para ti. Engraçado, sou tão egoísta que nunca te ofereceria salmonetes. Porque não os aprecio, sabem-me a quase nada ou a fénico e têm demasiadas espinhas mal localizadas. Lamento que tenhas recusado o sorbet de lima que sugeri ao Carlitos para te indicar. É acre e doce, clarifica o paladar e refresca a alma. "Porquê essa cara, Sr. Doutor?", perguntei-te com intencional ironia, "Volte sempre, amanhã há filetes de peixe-galo com arroz malandrinho. É um prazer inexcedível meu tê-lo entre nós". É. Também haverá caras e línguas de bacalhau mas essa informação fica reservada. Até ao teu regresso.

L.

Almoços Grátis. série 2 [7]

O restaurante fez ligeiras obras para poder ter uma zona de recepção um pouco maior. L. parece fazer agora, seria só hoje?,  um pouco de relações públicas. Apanhou-me desprevenido. Disse logo que me tinha esquecido de uma coisa importante e fui-me embora. É por estas e por outras. Olhe que hoje temos empada de lebre, pareceu-me ouvir dizer. Quero bem que se foda o coelho e mais a sua empada. É por estas e por outras. Há dois anos ela disse-me: se calhar é melhor deixar de cá vir por uns tempos. O 'por uns tempos' se calhar estou eu a acrescentar agora. Todos temos direito aos nossos dunquerques.

Mudei a cor do cabelo, fiz nuances de três cores. Digo, na brincadeira, que é para condizer com o novo guarda-vento de alumínio lacado a azul que o patrão mandou instalar na entrada. O objectivo oficial é propiciar resguardo à sala e aos fumadores nos dias frios, o oficioso é pôr-me a vender sorrisos e rapa-pés aos clientes mais presunçosos. Chegas mal enrolado no teu sobretudo cinzento, um tanto a cair, e olhas, com um ostensivo esgar de despeito, para os 'patos-bravos' que atascam a entrada. Cumprimento-te com a frieza polida e treinada com que me reservo. Sempre, nas tuas palavras. E continuo a enunciar aliciantes da ementa ao Engº Ribeiro. Viras costas, podia contar-te uma vez mais a fábula da tartaruga e da lebre (interpretá-la-ias mal, de novo?). E, se calhar, saborear a nossa empada de lebre acompanhada por pontas de espargos verdes. Salteados. Fábula francesa por fábula francesa, hoje talvez fosse mais adequada a da raposa e das uvas.

L.

Almoços Grátis. série 2 [6]

Várias mesas com almoços de grupos. Duas meses com cenas de engate. Outras tantas ainda a tratar de negócios claramente mal encaminhados. Típico ambiente para deixar L. nervosa e sem tempo para um olhar decente para mim. Depois destes dois anos de ausência preparei-me para dias mais difíceis e hoje isso ia ser posto à prova. Distraí-me com as mesas de engate. Em ambos os casos a coisa ia de feição. O negócio do sexo tem esse factor algo desinteressante, ou interessante consoante o ponto de vista, que é a sua previsibilidade. L. fez-me um aceno algo nervoso. Noutros tempos diria distante, hoje digo apenas tenso, irritadiço, exasperado. Ganhar experiência afinal é apenas ganhar vocabulário.

Tanto barulho, tanta gente hoje. Um bruáá de fundo que me põe os nervos em franja (soprá-la-ias?). A ucraniana tem companhia nova, um certo ar de empreiteiro próspero, a mulher no cabeleireiro de mão dada com a manicure que lhe conta histórias de paraísos tropicais. De onde fugiu e não quer regressar, nem por se chamar Belo Horizonte. A morena, ancas largas e cabelo crespo pintado de louro e desfrisado a formol, faz boquinhas e meneios ao rapazola, bêbado de um odor novo que não conhece nas miúdas cá da província. Encontrou-a no outlet, há-de trespassá-la ao pai, esse tem dinheiro para. Quase nem te vejo passar, discreto e miúdo, entre os homens espessos de dedos grossos e anéis indiscretos, os telemóveis vistosos espalhados como cartas de póker em cima da mesa alternando com as chaves dos automóveis. Para que se saiba que. Esta fauna encanta-me, estimula-me a imaginação. Ponho-te (gosto de te pensar assim, uma espécie de masoquismo muito meu) na mesa da mulata loira, tiro o garoto de lá e ponho-o na mesa da ucraniana. Mando o empreiteiro para casa, claro. Tenho de (me)te distrair. O tempo. Também a mim o tempo. Imagino-te divertido, 'dando risadinha', e transfiro-te para a mesa da ucraniana.É um prémio, aproveita para rever e praticar o vocabulário russo (não é igual, bem sei, mas hás-de usufruir). Sentas-te sozinho na tua mesa da janela. Tiras-me o brinquedo das mãos. Fico um bocadinho furiosa, admito. "Sr. Doutor, para hoje sugiro-lhe o bacalhau com broa e espinafres. É uma receita nova da Ermelinda, experimente."

L.

Almoços Grátis. série 2 [5]

Tinham filetes de cherne com arroz de berbigão. Ela riu-se quando eu entrei. Lembrava-se do quanto eu adorava aquilo, porra! Ela lembrava-se! - este foi um porra da família dos aleluias. Sentei-me numa mesa que gosto, perto da janela, onde faz um recanto com uma temperatura mais alta. Comi com uma sofreguidão anormal, queria evidentemente mostrar gratidão com todas a glândulas que podia, infelizmente não era prato que desse para limpar, nem desenhar corações com o pão e o molho. Pedi apenas para me arranjarem um bocadinho mais de arroz. Quando ela mo trouxe parecia estar vestida de noiva com uma travessa de pétalas brancas na mão. Parecia mesmo; ainda agora me parece, mesmo depois de dois duches frios. Dizem que pára a digestão.

Vi-te chegar, o semblante fechado, um ar frio de desdém a fechar a porta atrás de ti. Escolheste a mesa ao sol, aquele sol pobre de fim de Inverno que sabe, como nenhum outro, doirar-te os contornos da íris num verde de relva molhada (Tirésias, ajuda-me!). Peixe, escolho eu por ti. Por tua escolha, mascarando o pequeno prazer pecaminoso que me dá adivinhar-te os desejos que julgo conhecer. Engoles a comida, pressinto uma urgência, queria que pedisses arroz doce, branco e suave como a espuma de uma onda. Pintá-lo-ia com canela, pequeninas argolas d'ouro escuro enlaçadas em corações. Como lenços d'amor minhotos, silenciosos embora. Latindo os corações.

L.

Almoços Grátis. série 2 [4]

Sala vazia. Fui estupidamente cedo, um cliente - alsaciano fedorento e chato - que estava comigo tinha voo às 3 e é um picuinhas com os horários. Podia ser que o meu francês a deliciasse, foi isso que me animou repentinamente enquanto me dirigia para a mesa. Disseram-me uma vez que tenho uma pronúncia que faz rimbaud parecer baudelaire, mas há cognaques muito poderosos. Quando ela veio à mesa 70% do meu ser tremia e os outros 30% estavam dormentes à espera de vez. Ela fingiu que não percebeu e tocou-me ao de leve. Foi com aquela zona da anca utilizada pelos hipnotizadores, disse-me o cabrão do alsaciano. Hás-de perder o avião e ter de dormir numa pensão em Chelas. Só comi sopa e um leite creme. O leite creme acalma-me. Ela trouxe-o sem eu o pedir, reparo agora. Só ama quem antecipa, ou quem ama nunca antecipa?

É a crise. Há sempre uma boa desculpa, sabes bem. O patrão chora-se, eu fico com mais vagar para te olhar. O cheiro do teu alsaciano não seria do Munster que come? É um queijo mágico, dizia-me o meu patrão parisiense. Saboreava a palavra, rolava-a na língua, guturalizando-a, 'mmuunnsterrr' enquanto me percorria as coxas com as mãos, devagar, com a lentidão estudada de um hedonista. 'Un produit de terroir', dizia-me no seu francês contaminado de alemão, e eu hesitava entre pensar no sabor do queijo sobre a mesa ou no prazer das mãos dele na minha pele. Recitava-me Verlaine, em noites mais longas. "Au temps où vous m'aimiez (bien sûr?), / Vous m'envoyâtes, fraîche éclose, / Une chère petite rose, / Frais emblème, message pur." Sôtises, petites bêtises... "A vous ces vers de par la grâce consolante / De vos grands yeux où rit et pleure un rêve doux, / De par votre âme pure et toute bonne, à vous / Ces vers du fond de ma détresse violente." Des conneries encombrantes, quand même... Tal como o teu alsaciano, o meu. Sabedores de ancas e de magia, quem diria. Talvez durma na Damaia, em dias certos. Devias ter seguido a minha sugestão implícita, papos-de-anjo em vez do leite creme que te apresentei à mesa. Não por antecipação. Por amor. Provocação por vocação.  


L.

Almoços Grátis. série 2 [3]

Hoje tinha fome. Comigo ia a R. que se tinha separado do marido e me queria contar as últimas da sua guerra pelo controlo da fancaria. Gosto de ir com outras mulheres para lhe fazer ciúmes, mas fico sempre com a merda de sensação que não lhe faço ciúmes nenhuns. Comemos arroz de polvo; já não me lembrava que quando na ementa havia arroz de polvo ela estava sempre particularmente bonita. Cheguei a dizer-lhe um dia que ela tinha uma beleza de cardápio. Corou e pôs-me a língua de fora. Um bocadinho só. Nessa noite nem dormi. Na escala de um a cinco das coisas que me deixam maluco a língua de fora é nível dois e a sopradela de franja com franzidela de nariz é nível três.

É bom saber que voltaste a ter fome. É saudável. Torna-te humano. R. Chama-se assim a que trouxeste hoje? São tantas, diferentes... sinto-as como cunhas fracturantes na intimidade que criei contigo neste cenário. Em que me quereria  apenas contigo, vê só a loucura a que se chega quando se funciona no esquema restrito das nossas expectativas mais delirantes. Chama-lhe 'ciúme', se quiseres, chama-lhe 'ferida'. Narcísica, pois claro, há quem diga que é isso o ciúme, o resultado da perda da ilusão de uma união sem fissuras. Como se um cordão umbilical cortado por mãos estranhas, com a incerteza e a insegurança que o desconhecido traz. O arroz de polvo estava óptimo, malandrinho e salpicado de salsa fresca, o polvo "do nosso", apanhado na pedra batida a ondas selvagens do Oeste. Para a próxima olha o cardápio com mais atenção: o arroz de cabidela rima com 'franzidela' e é de nível cinco. Pede papos de anjo à sobremesa. E bom proveito.  


L.

Almoços Grátis. série 2 [2]

Estava um dia nublado, feio, mas não chegava a ser esquisito. À entrada do restaurante estava um grupo de raparigas que festejava um aniversário. Gosto de entradas confusas porque me sinto mais protegido. Ela estava ao balcão, na conversa com um cliente habitual. Fico irritado quando ela fala com clientes habituais. Os ocasionais não me perturbam, é a diferença entre sedução e negócio. É a segunda vez que cá venho depois deste tempo todo e ela ainda não olhou para mim em condições. De represália não pedi o prato do dia. Pedi uma omolete de queijo, estava tão irritado que nem me lembrei que detesto omolete de queijo.

Estava um dia péssimo, permite que te contrarie. Uma luz fosca, um ventinho irritante e gelado, o céu infeliz na premência de chuviscos ríspidos e incertos. Como o teu olhar. Como a tua rigidez. Só mesmo tu conseguirias provocar-me ira e riso com essa perversão de comparar 'sedução' e 'negócio'. Aqueles a quem chamas os 'clientes habituais' foram o meu écran natural, tal como tu preciso de me sentir protegida. Tal como tu, de ti. Fizeste bem pedir omelete de queijo, é relativamente inócua em sabor e textura. A de camarões estava a sair demasiado aguada. Não a apreciarias, de todo.

 L.

Almoços Grátis. série 2 [1]

Voltei lá dois anos depois. Quando entrei ela não me viu. Estava mais magra, tinha o cabelo mais curto, ao principio não deu para ver muito mais. Sentei-me com alguma ansiedade, felizmente ia almoçar com dois fornecedores, não precisava de grande imaginação para alimentar uma conversa e o prato do dia era jardineira. Ainda me lembro que quando o prato do dia era jardineira ela usava umas azuis claras e brincava com isso, punha aquela ar de gaiata envergonhada que reduz qualquer homem a papa cerelac sem precisar de misturar muita água; porra, passaram dois anos, quantas jardineiras perdi em dois anos? Como recuperar aquilo que não se sabe que se perdeu?

Vi-te chegar, sim. Ao contrário de mim, estavas mais 'amplo' mas mantinhas o mesmo olhar de quase-tristeza-quase-doçura irreverente e tímida com que me olhaste da primeira vez que te servi um ice-tea green. Tínhamos ambos mais cabelos brancos, os meus agora visíveis despedida que foi a colaboração de décadas que mantive com a L'Oreal. Uma jardineira é sempre uma jardineira, seja de jeans seja de ervilhas. Não sou capaz de calcular quantas jardineiras perdeste, sou capaz de te dizer que hoje conheço melhor os ingredientes e sei que não se recupera o que se perdeu. Mas qualquer boa cozinheira te dirá que uma jardineira, por ser um estufado delicado, ganha espessura e sabor com o tempo. Afinal quem quer uma jardineira requentada se a pode hoje pedir revista e actualizada, com receita melhorada?

L.

verso à terça

A perda real é a perda do sentido

Só se perde o sentido do que não
foi nunca real senão quando perdido


Gastão Cruz , in Escarpas

La revuelta de los cacahuetes


Há forte reboliço nos lobis do Paraíso. O Altíssimo, confrontado com a necessidade urgente de intervir numa Criação que apaneleira em rédea solta, fez saber que iria escolher uma dentre as várias corporações de efeitos especiais do seu séquito para dar uma lição a esta pandilha da igreja militante.
Sabendo da iminência de ter de entrar em acção, os vários lobis reuniram-se tentando cada um fazer valer os seus direitos, adquiridos ao longo de gerações e gerações de cataclismos, pragas & infecções urinárias.
A reunião deu-se numa tasca ilegal e apócrifa gerida por uma cunhada do são Gregorio Magno que tinha sido cervejeira em Antuérpia. (daí aquela expressão de chamar o gregório quando...adiante)

Quem tomou a dianteira na palavra foi a dona Maremota Diluvina que se achava com prorrogativas especiais pelos favores já prestados no passado, mas que tinha ficado ligeiramente amuada desde que o Moisés, um bocado à cowboy, convenhamos, separara as águas à sua revelia.

Dona Maremota Diluvina - Julgo que todos perceberão que nada se poderá fazer em condições sem a minha equipa de técnicos. Mesmo que tenhamos feito um piqueno downsizing no departamento de glaciações continuamos a ser os únicos que mantêm um estrutura sólida, com tradição de serviços completos, e que inclusive já fizemos um ou outro biscate para outros credos e religiões...

Obviamente que a lobi do fogo ficou logo em brasa com este paleio e quase nem deixou a moça acabar de falar...

Dona Churrasca Dragonilde - Presunção e enxurrada benta, é o que tu tens. Desde os grandes incêndios da história que não há uma desgraça em condições; essas brincadeiras com a aguinha só fazem o povo tornar-se mais beato ainda. Todos sabemos que apenas um trovão e uma tocha pelo cu acima é que arrebita as almas, carago!

Era inevitável a reedição desta rivalidade ancestral, o pessoal dos lobis da água e do fogo sempre fora muito cioso da sua importância histórica, digladiavam-se entre si quase epicamente, mas com isso iam perdendo a perspectiva e não ponderaram correctamente a entrada no Mercado dos Sinais Apocalípticos de novos poderes e tecnologias, aparentemente já esquecidos, ou enciumados, de toda a raça de bicharada que tinha dado serventia nas mais célebres pragas da história.

Mas esta rapaziada, agora mais sofisticada, estava ansiosa por voltar a ter uma palavrinha a dizer, por entrar em acção com novos softwares, e olhavam para o pessoal dos mares & fogos como quem vê dois velhotes a resmungarem no meio duma bicha da caixa.

A mais impulsiva era a Dona Salmonella Estafilococa, uma sensual representante do fascinante mundo das diarreias e que tinha inclusive apresentado recentemente ao Criador um projecto inovador de cagaço generalizado à base de borrar meio mundo com uma bactéria disfarçada de salsa na morcela de arroz.

Dona Salmonella Estafilococa - Meus amores, vocês já eram, agora toda a vossa força é transformada naquela coisinha mariquinhas da energia renovável, vocês agora já nem dão trabalho à sta Barbara, coitada, que para se aguentar até já tem de ir fazer uns ganchos para fora, noutro dia vi-a a ajudar uns miúdos que tinham medo dos desenhos animados. Chegou o momento de ver o mundo a encarquilhar o pirilau a sério, meninas! Isto já lá não vai com rábulas para hercules e perseus andarem a medir o comprimento da lança. O Altíssimo agora quer serviços menos espalhafatosos mas que entranhem mais fundo, não sei se estão a perceber...

Depois desta entrada de rompante do lóbi-da-cólica as outras corporações com menos pergaminhos sentiram um reforço extra de confiança e chegaram-se à frente... A mais entusiástica foi a dona Maddoffa del Spread, uma ex-banqueira que chegara à santidade através de um esquema de ponzi com pagelas de nossa senhora de Guadalupe.

Dona Maddoffa del Spread - Filha, depois da barraca que foi a gripe das aves , dos porcos e dos agáénes, vocês perderam toda a credibilidade... O Altíssimo só vos confiará uma missão destas se andar a beber da mesma ginja que o dragão. Chegou a nossa hora: aquela raça de primatas não vai lá com terramotos nem com enxurradas nem com caganeiras, pá! Temos de lhes ir ao bolso. Transformar-lhes o graveto em palha. Temos de lhes acenar com os filinstones, a tanguinha e a pedra lascada, e pô-los outra vez a correr atrás dum coelho se quiserem lembrar-se de como era bom chupar uma coxinha!

Estava montada a confusão, a velha guarda contra a nova guarda, os subtis contra os brutos, o sintético contra o prolixo, o ruminante contra a mosca da fruta, o yin contra o yang, o eros contra o tanatos, a borla contra a franja, indescritível. E Deus parecia estar a leste de toda esta cegada. Mas não estava. Havia um infiltrado. O Altíssimo há muito que sabia destas tensões no seio dos lobis dos efeitos apocaliticos e tinha criado antecipadamente uma equipa especialmente treinada para inovar no competitivo mundo dos Poderes Alternativos. E foi assim que, como que saída do nada, a dona Pistacha La Fève, vestida de abelhinha e com uma boina em formato de casca de tremoço, pediu a palavra.

Dona Pistacha la Fève - Como sabemos o homem é extremamente propenso à habituação, ao vício, à dependência. Mas geralmente estas estão associadas a consumos rapidamente percepcionados como danosos quer fisiologicamente quer socialmente (o álcool, a droga, o jogo, o sporting, o tabaco, etc) o que já colocaria o humano de pé atrás. Assim temos de entrar de mansinho pelo lado dos vicios brandos...deixá-los dependentes do amendoim, do caju e da pevide... e depois, como não quer a coisa, zuca, de repente tirávamos o brinquedo do dentinho dos meninos! Chegou o momento dos aperitivos salgados também terem um papel a desempenhar nesta porra toda. Queremos entrar para a história a par dos Terramotos, dos Dilúvios, dos gafanhotos e dos meteoritos, queremos uma Nemésis só para nós. Há um poder escondido no salgadinho! O mundo há-te ter um amendoim encravado na garganta e assim, sim, ver o que é o poder do Altíssimo! A natureza orgulhosa terá de respeitar-nos, Deus soube reconhecer o nosso valor, vocês minhas grandes maremotas, meus grandes aluviões, vinde e reclinai-vos perante a minha oleaginosa graça e influência.

(fosgasse que isto hoje foi só ganga...)

diz que um gajo chamado guttenberg afinal copiou tudo

Há palavras que dividem as águas. Quero dizer, que servem para distinguir, seja pessoas, (por acaso o tipo que forneceu o último verso à terça também escreveu «Cada um por si imita / o som branco dos demais / verdade, somos iguais») situações, hábitos, almas, corpos, palavras que servem para olhar para dentro e para fora em simultâneo. Mas as 'melhores' de todas são as que parecendo ajudar a distinguir acabam por misturar. Fornecem aquela espécie de 'benigna ambiguidade' que ajuda a ver o mundo eventualmente desfocado mas brilhante. Numa leitura que tenho feito e refeito desde que começou este ano (acompanhando Paul Morand no seu 'Journal Inutile') fui confrontado com duas frases simples e supostamente opostas (entrada de janeiro de 1971), e que corresponderiam às últimas palavras de quem as proferiu: Proust teria dito «J'ai peur», e Claudel «Je n'ai pas peur» (*). O 'medo' é uma dessas palavras. E tem o mérito suplementar de colar aquilo em que somos mais básicos com aquilo em que somos mais sofisticados. O medo moral e o medo biológico, o medo animal e o medo transcendente. O medo do desconhecido e o medo do conhecido. O medo do eu e o medo do outro; medo de ir - medo de voltar. Mas esta palavra, ali daquela forma apresentada no diário de P. Morand, leva-me mais longe: ter medo e não ter medo são a mesma coisa, não são sequer as duas faces duma mesma moeda, o medo será até a face comum de duas moedas diferentes. Aquilo a que vulgarmente se veio chamando de 'a nossa condição' mostra-nos que não somos auto-suficientes, mas mostra-nos também que somos suficientemente parvos para pensar que sim e há medos que são apenas sub-produtos da confiança, tal como há não-medos que são restos (e rastos) do próprio medo. A esperança, aquela virtude teologal que parece estar ali a fazer apenas figura de corpo presente a velar a fé e a caridade, é talvez a mais difícil de incorporar na nossa vida pois mostra-nos que nós para além de corpo e espírito somos também 'estado de espírito', aquilo que uns chamam circunstância para simplificar, outros existência para complicar, e outros que-se-foda para esquecer.

(*) Paul Morand, in 'Journal Inutile' , 2003, gallimard , pág 466

verso à terça

em duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente

António Franco Alexandre , in A Pequena Face