Almoços Grátis. série 2 [15]

Existem dois tipos de dias: os dias em que acontece um pouco de tudo e os dias em que tudo pode acontecer. Quanto ao de hoje ainda não decidi. Entrei no restaurante com o meu amigo C., uma amizade antiga, a conversa a escorrer com uma naturalidade tal que nos sentámos quase sem eu dar conta desse acto de puro heroísmo. Como que de propósito L. aproxima-se da mesa e serve-me - apenas a mim - um sumo de tomate sem eu nada ter pedido. Tal o inesperado que C. fez aquela cara que corresponderia a ela ter-me encaixado a mão entre as pernas. Tenho uma aversão completa a sumo de tomate pelo que fiquei a olhar para ele, como o peregrino olha para a cera a derreter-se nas velas. O primeiro silogismo foi: sangue, tourada, cornos. Estremeci. O segundo foi: cor, calor, amor. Estremeci mais ainda. C. entretanto e de forma despachada pediu amêijoas sem perder tempo a fazer-me perguntas obvias, mas também sem evitar o estamos muito bem, menino, muito bem. Ri-me, com aquele desdém do comprometimento descomprometido que trago desde que me desmamaram, mas ainda com dois silogismos a dançarem entre hemisférios. L. aparecia esporadicamente apenas para despachar um está tudo benzinho. Benzinho. Fiz um teste: pedi batatas fritas com os chocos. Claro, acho que até já o fazem assim para ti, rematou L., sem deixar cair no chão. Se calhar quer ir a Fátima contigo e não sabe como pedir - ricocheteia C., campeão nacional de sarcasmo aos pratos. Consegui falar de dezoito assuntos diferentes durante o almoço, felizmente tenho a imaginação completamente amestrada, e C. não se acanha, também foi campeão de bilhar. Mas não serviu de nada. No final do almoço L. aparece na mesa, senta-se a um dos lados mais afastados de mim e dirige-se a C.: - o seu amigo há dois anos deixou de cá vir, sabe a razão? Ainda sinto a mão encaixada entre as pernas. Sangue ou calor.

O Carlitos aproximou-se, conspirativo "O teu 'cliente' (sibilou 'cliente') trouxe aquele tipo que me dá cócegas no céu da boca". "Cócegas onde?", não acreditei nos meus ouvidos, ou o radar do Carlitos avariara ou o meu gps perdera mapas. "Quem vai à mesa dele hoje?", sussurrou quase em assobio. "Tanta excitação, rapaz! Mete a cabeça em água fria, vou eu!", antecipei a ignição da ludopatia. "Sr. Doutor, o seu 'bloody mary' sem álcool. A pimenta, prefere-a preta, claro..." Olhei o teu amigo como se lhe vendasse os olhos com a gravata, perguntei "O senhor?" e deixei-o a olhar o vazio. Ou para ti, não cheguei a perceber, vejo mal das costas. "Amêijoas à Bulhão Pato, se faz favor. São de pedra?", ouvi atrás de mim. "São, mas posso empratá-las em seda vermelha, se preferir." Às vezes tenho medo da mulher que posso ser. "'Muito bem' uma pinóia, seu trambolho!" ainda lhe respondi, dentro do silêncio frio. "Carlitos, serve-os tu! estou sem paciência para tolos." Passei na vossa mesa a espaços, "Como está tudo, 'benzinho'?", provocava-te. Adorei que pedisses batatas fritas, movias o bispo no tabuleiro, respondi-te a contento. O teu amigo "blá blá blá". Com a conta decidi abrir-te a braguilha. "Doutor C., o seu amigo esteve dois anos sem cá vir, sabe o motivo?", afundei a mão. Afinal o que importa é a pergunta certa, a resposta? Essa não me diria nada que não soubesse já.

L.

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