Almoços Grátis. série 2 [9]

O prato do dia era cabrito. Eu, em geral, detesto comer. Ela sabe-o. Não é uma coisa que a deixe contente, mas vive bem com isso. Quando tínhamos apenas uma relação de pestanas ela chegou a dizer-me: ainda farei de ti um bom garfo. Foi a primeira vez que me tratou por tu. Nesse dia rimos os dois e também havia cabrito. Sempre associei o cabrito ao proselitismo gastronómico. Hoje estava uma meia casa e ela pela primeira vez esteve um bocadinho a falar comigo junto à mesa. Percebi que lhe apetecia chorar. O choro é uma camuflagem terrível. Não se vê nada por trás dum choro, e pode lá estar de tudo. Comi bifes de frango. A melhor comida para situações frágeis é frango. Despedi-me com um beijo. Saiu-me. Acho que ninguém viu. Se calhar ela também nem sentiu. O choro é uma segunda pele; impermeável. E já ninguém consegue molhar uma lágrima.

Não dei por que tenhas entrado, estava entretida a arrumar o balcão e a tentar esquecer o cheiro a 'ovino' que se me entranhara no nariz desde cedo. Dizer que não aprecio borregos, ovelhas, cabritos e cabras é uma desnecessária elegância. Detesto, essa é a verdade nua e crua. Seja como forem preparados e cozinhados. Abomino. Tudo, a começar pelo cheiro a pêlo molhado e sujo, que já vem agarrado à carne, até ao enjoativo odor a gordura oxidada, o bedum. Para um 'pisco' como tu (já não me iludo com transformações de 'hashi' em garfos) não me parecia o prato ideal, ia sugerir-te a corvina grelhada com acompanhamento de legumes salteados. Na mesa ao lado da tua o Dr. Soriano sorria-me ainda, de memória a anedota das minhocas 'queer' sussurrada minutos antes, e tuteei-te involuntariamente, rindo. Fosse pela surpresa ou pela familiaridade despropositada do tratamento, fizeste um ar reprovador e incomodado, gélido e cáustico, que me deixou à beira das lágrimas. É sempre mais fácil, e mais recomendável, evitar uma desculpa do que esfarrapá-la em frente a desconhecidos. Soa a incompletude, a desconchavo. A 'camuflagem', como dizes. É inútil e desgastante. Terrível, como dizes. Ironicamente não era a desculpa o que se camuflava, era tanto mais que chegava a ser tudo. O tempo. A pena suspensa num olhar. A perda. A presença ausente num abraço. A acusação. A  carne do frango rasgada no matadouro. A minha carne dilacerada no teu olhar. E um pousar de lábios na minha testa, entrevisto na cortina opaca das lágrimas. Como um sortilégio.

L.

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