Há palavras que dividem as águas. Quero dizer, que servem para distinguir, seja pessoas, (por acaso o tipo que forneceu o último verso à terça também escreveu «Cada um por si imita / o som branco dos demais / verdade, somos iguais») situações, hábitos, almas, corpos, palavras que servem para olhar para dentro e para fora em simultâneo. Mas as 'melhores' de todas são as que parecendo ajudar a distinguir acabam por misturar. Fornecem aquela espécie de 'benigna ambiguidade' que ajuda a ver o mundo eventualmente desfocado mas brilhante. Numa leitura que tenho feito e refeito desde que começou este ano (acompanhando Paul Morand no seu 'Journal Inutile') fui confrontado com duas frases simples e supostamente opostas (entrada de janeiro de 1971), e que corresponderiam às últimas palavras de quem as proferiu: Proust teria dito «J'ai peur», e Claudel «Je n'ai pas peur» (*). O 'medo' é uma dessas palavras. E tem o mérito suplementar de colar aquilo em que somos mais básicos com aquilo em que somos mais sofisticados. O medo moral e o medo biológico, o medo animal e o medo transcendente. O medo do desconhecido e o medo do conhecido. O medo do eu e o medo do outro; medo de ir - medo de voltar. Mas esta palavra, ali daquela forma apresentada no diário de P. Morand, leva-me mais longe: ter medo e não ter medo são a mesma coisa, não são sequer as duas faces duma mesma moeda, o medo será até a face comum de duas moedas diferentes. Aquilo a que vulgarmente se veio chamando de 'a nossa condição' mostra-nos que não somos auto-suficientes, mas mostra-nos também que somos suficientemente parvos para pensar que sim e há medos que são apenas sub-produtos da confiança, tal como há não-medos que são restos (e rastos) do próprio medo. A esperança, aquela virtude teologal que parece estar ali a fazer apenas figura de corpo presente a velar a fé e a caridade, é talvez a mais difícil de incorporar na nossa vida pois mostra-nos que nós para além de corpo e espírito somos também 'estado de espírito', aquilo que uns chamam circunstância para simplificar, outros existência para complicar, e outros que-se-foda para esquecer.
(*) Paul Morand, in 'Journal Inutile' , 2003, gallimard , pág 466
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