O Destino das Espécies

O vocábulo de origem italiana (se bem que introduzido por cá via o francês ou espanhol charlatan) ciarlatano, eventualmente fusão dum vocábulo turco dzar-la (falar ruidosamente) com cerretanus (habitante de Cerreto, local na Úmbria onde terão aparecido na Idade média os primeiros vendedores ambulantes reconhecidos pela bela da lábia a vender remédios milagrosos), deu origem no muito nosso charlatão, conceito que deverá ser tratado com uma dignidade à prova de balas, tratados e moedas únicas. Antes de tudo eu defendo a tese de que existe uma alma charlatã, uma espécie de aperfeiçoamento dum transcendental aristotelo-kantiano, que impregna todo o conhecimento e todo o relacionamento, e introduz mais uma gloriosa inversão no maravilhoso mundo da realidade: é a ilusão que fundamenta a verdade. Como qualquer categoria de primeira ordem que se preze, o charlatão tem direito a uma caracterização rica e multifacetada e é a isso que o dicionário não ilustrado hoje se vai dedicar, dedicadamente. Mais interessante que a origem das espécies é o seu destino [entradas 1407 a 1413]

charlatão carente - é o tipo de charlatão que se introduz no coração alheio procurando as suas zonas por um lado mais vazias e mais debilmente ventiladas e por outro as mais ávidas de segregar compreensão e amparo. A carência afectiva está para o charlatão como o caldinho de carne está para as bactérias. Este charlatão deve radicalmente distinguir-se do vulgar engatatão, pois não está em causa a conquista erótica do objecto mas sim apenas levá-lo à adesão a um benefício previamente bem definido do charlatão. A gestão de carências é essencialmente um processo de preenchimento de espaços e este tipo de charlatão nesse ambiente é uma autêntica formiguinha laboriosa e insaciável num boião de açúcar.

charlatão subversivo - A utilização do método subversivo é geralmente atribuída ao clássico charlatão-revolucionário. No entanto a subversão é um composto charlatânico bastante mais vasto e engloba técnicas de surpresa, sedução e visionarismo que ultrapassam a mera proposta de alteração das normas vigentes. O mecanismo subversivo introduz-se na mente do objecto charlatanado pela via da sua debilidade conservadora, pois todo o nosso lado conservador, por mais intelectualmente aparelhado que esteja, deixa sempre de fora um complexo, o complexo do carro-vassoura: olharmos para a realidade de uma forma tão tão estática e distante que acabamos por confundir a perspectiva com a moldura.

charlatão iluminado - Pode abordar-se este tipo como uma autonomização da versão visionária do modelo subversivo. Só que neste processo dá-se a verdadeira geração duma nova categoria completamente consolidada: o charlatão que consegue ser percepcionado como aquele que vê, aquele que reflecte, aquele que refracta, aquele que atrai todas as luzes do universo e as jorra num quasar de certezas mirabolantes. Ganhar este estatuto no exigente ranking charlatânico geralmente consegue-se à custa duma tripla ganhadora: convicção, sorte e ciclo astral. Quer isto dizer que as duas primeiras têm de se conseguir juntar numa órbita que coincida com a fase basbaque do povo charlatanado, algo que, diga-se, acontece mais frequentemente que a maré vazia.

charlatão omnívoro - Este clássico do charlatanismo é um valor seguro da espécie. Trata-se do charlatão que já comeu de tudo e por isso pode falar com total propriedade do que provou. Desde gémeas virgens a espremedores com sucção turbo e filtro electrónico passando por desvalorizações cambiais progressivas tudo é passível de ser considerado experiência de consumação. O charlatão que já papou de tudo um pouco tem um efeito de força gravitacional impressionante pois a curiosidade humana é a maior fraqueza desde que nabucodonosor se deixou enrabar por causa da cor dos olhos dum gato angora.

charlatão de oportunidade - Se bem que a gestão da oportunidade tenha de estar presente em todas os representantes deste catálogo, existe um tipo muito específico que se define por estar sempre à espreita. Nalgumas correntes teóricas também é denominado de charlatão-caçador, no entanto optei pela presente denominação para afastar todos e quaisquer indícios equívocos de vocação predatória.  Este charlatão de oportunidade é por definição um generalista e uma espécie de gestor de clareiras, ou seja, espreita espaços abertos mas devidamente circundados, sendo também um especialista em iscos e motivações reprimidas. Regra geral actua rápido e talvez seja aquele que faz a melhor combinação das duas performances básicas do comportamento humano (a que um dia voltaremos nesta sede do saber) a empática e a estratégica.

charlatão espiritual - Será bom deixar já aqui claro que não se trata de um charlatão especializado em temas religiosos, de forma alguma (o charlatanismo de pendor religioso pode ser exercido sob qualquer uma das técnicas aqui descritas). Este tipo de charlatão é antes de tudo alguém que parece flutuar sobre a realidade dando a sensação de tocar em realidades que o comum dos mortais apenas tem uma leve sugestão de que possam existir. Não é também um espiritismo clássico, nada disso, trata-se muito mais da utilização duma pose estética semi-etérea associada a um discurso semi-enigmático e devidamente acolitado por um ritmo de intervenção com aquela intermitência típica dos grandes sedutores: sempre ausentes - sempre presentes, sempre a dar uma resposta - sempre a deixar-nos na dúvida.

charlatão desprendido - De longe o tipo mais sofisticado de charlatão e o representante mais ambivalente , para não dizer melífluo, do charlatanismo. Poderemos defini-lo como aquele que suspende a intenção. Ou seja, nada é com ele, de nada pode aproveitar, nada lhe é exigível, nada exige, a fronteira entre a aparência e a realidade é um risco que apenas ele conhece o local e o desenho, mas nem sequer disso faz questão. A sua capacidade de convencimento brota-lhe duma noção perfeita da dependência do charlatanado: ele é o dono do fio que os liga, e o seu trabalho prévio é o de fiar essa ligação, e ficar a conhecer na perfeição a suas especificações de torção, resistência e elasticidade. Vai, no entanto, deixando sempre no ar que tudo acontece com independência  da sua intervenção, mas como que a sua vontade fosse um graal que no dia em que realmente de dignar aparecer transforma toda a lesma mole em besoiro duro.

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