stanzas for music (*)

There be none of Beauty's daughters / With a magic like thee; / And like music on the waters / Is thy sweet voice to me: / When, as if its sound were causing / The charmed ocean's pausing, / The waves lie still and gleaming, / And the lull'd winds seem dreaming: // And the midnight moon is weaving / Her bright chain o'er the deep; / Whose breast is gently heaving, / As an infant's asleep: / So the spirit bows before thee, / To listen and adore thee; / With a full but soft emotion, / Like the swell of Summer's ocean.

(*) Lord Byron (1815) Stanzas for Music © 2009 University of Toronto.

Explico agora com mais profundidade ainda

Os fundos de colecção do Bloco de Esquerda iniciaram a sua fase de monetarização e economia paralela. «Tu Zé, que vales apenas 15 votos, vais para a marcha popular do Costa a troco de duas tshirts do Che no tamanho da Drago (colecção Cenoura 89), tu Miguel LGBTLGTB d’Almeida vales 3.500 votos vais para o Sócrates mas a troco de bar aberto no Frágil para o grupo parlamentar durante um mandato, tu Joana-a-Dias vales 67.560 votos, ficas a tratar do canil. Tu, Rui Tavares ainda só vales 753 votos, mas podes valer mais depois de treinares o flamengo e cortares a barbicha, ficas ainda, o Fazenda vale 5 votos mas se se rir pode chegar aos 6, fica, o Pureza vale 2 ou 3 consoante representar Alfarelos ou Mamarosa, mas não temos mais ninguém para a Pocariça, fica. Tu, Arrastão d’Oliveira, não sabemos quanto vales, mas, pelo sim pelo não, ficas por causa duns olhinhos que a Clara Ferreira Alves te fez; trocamos ainda aquela moça que foi com o Miguel Portas para Estrasburgo - já fez o servicinho que tinha de fazer - pela Sanfona e mais 5.000 votos no circulo de Braga, só para foder os arcebispos e poder oferecer preservativos com estrias no Bom Jesus. Aceitamos o Pinho a título de empréstimo desde que ele traga também os chavelhos com ele, e até pode fazer a pré-epoca no Ancão. Não dispensamos aquele do Rosas porque é amigo do senhor do banco de jardim de Sto Amaro, vale 3 votos, vá apertadinhos 4.»

Mas hoje já estou com uma profunda capacidade para impressionar.

Sinto-me requintado. Praticamente incapaz de qualquer estridência, - para ouvir um ruído que seja, os estimável leitor terá mesmo de encostar o ouvidinho à tela – irei explicar-vos várias coisas sem recurso a muletas, dispensarei inclusive onomatopeias, e nem sabem o que me custa não usar assim uma bucha clássica tipo huumm, ou mesmo um splash, ou um grrrrrr, ou até um zzzt. Ficam assim afastados da minha explicação cães e gatos, fora de questão animais ferozes, quanto muito uma joaninha, ou então um colibri paralisado das asas.
A talhe de martelo (não está disponivel a foice) lembremo-nos que foi a metafísica escolástica que nos deixou como testamento a única definição que dispensou figuras de estilo: ‘Deus é aquele que é’. E assim, mesmo sem reticências, deixou-nos pendurados com a noção de puro ser, puro acto. Uma verdadeira explosão metafísica que dispensa pornoexclamações.
E isto tudo para (vos) expressar a minha semi-exclamativa consternação: e então nenhum partido convida a Diana Chaves? Estão à espera que venha cá o Berlusconi? Estaremos perante a descriminação das sex simbols? Integramos a paneleiragem e ostracisamos as gajas boas? Focamo-nos no investimento público e continuamos a importar beldades eslavas? Ele é testamentos vitais e bancos de esperma e ninguém pensa em apurar decentemente a raçola da fêmea lusa? Vão continuar a nascer portuguesas de pernas tortas e anca de baleia? Para ver lábios carnudos teremos sempre de ligar a tvi? Será que os meus netos terão de emigrar para apalpar umas mamas que não descaiam ao fim de 15 dias de racionamento de leite em pó? É também esse o encargo que lhes vamos deixar? Se pretendemos ser um rabiosque condigno da Europa temos de nos preparar em condições. Quero ver esses programinhas de governo, quero.

Francisco José!...

Um aluvião possidónico assolou de repente a blogaria literaloide portuguesa: a aversão ao ponto de exclamação. (pelos vistos até recuperando um esgar mexiano de 2007, mas duma altura em que ainda precisava de dar um pouco nas vistas). O texto de JMSilva então apresenta um acervo de tiradas dignas duma espécie de Paula Bobone da crítica literária (‘sintoma da absoluta falta de requinte estilístico’, ‘ideal para adolescentes idealistas’, ‘prenúncio de estridências capazes de furar o silêncio da leitura’, ‘profunda incapacidade de alguém se fazer explicar’, – esta é dum tal de Palomar, Senhor – ‘muleta dos maus escritores que querem impressionar’, etc) recolhendo o maior chorrilho de granulado para dissolver desde o discurso dos irmãos castro nos prémios gazeta dos desportos. Ora então queridos especialistas em escrita explicativa de requinte sem muleta, dizei-me, como vai significar um ‘bum’ sem ponto de exclamação, um peidinho sem cheiro?, (calma, ponto de interrogação ainda não fura o ‘silêncio da leitura’) um orgasmo sem jacto?, uma sodomia sem rabo? Como fazemos? E a seguir a um foda-se gritado? Também não se pode? Arredonda-se para ponto e vírgula? Como fazemos: «O senhor Palomar ia na rua encontrou o senhor Silva e estavam os dois muito bem a falar sobre o último Nabokov quando o sr Francisco José se aproxima e lhes arremessa com um 'martelo pneumático' na testa. Palomar, senhor, desmaia, e Silva, senhor também, grita: foda-se, ponto e virgula, Francisco José, que bruto, ponto e virgula; era uma metáfora virgula será que só tens reticências nessa moleirinha?». Será assim? O que fazemos com leitores e críticos tão sensíveis, receosos que a exclamação-em-ponto-de se lhes atormente a boca do cólon do estilo? Damos-lhes o lápis azul do ‘requinte estilístico’? É que nem a reticência vai escapar, coitada, mas atenção: novo lema: todos a castrar a exclamação, acordo ortográfico é que não! Perdão, ponto e virgula. E se o escritor quiser mandar o leitor e o personagem principal para o caralho, e por atacado, no final do livro, como faz? Mete dois pontos travessão? E se uma velha cai a rebolar numas escadas e lá em baixo no fundo das ditas está o Pacheco Pereira? Como se descreve? Ela diz, «carago, não me bastava cair das escadas e ainda tinha de apanhar com este ponto e virgula dum cabrão» (mulher do norte). Como é? (se me acabam com o ponto d’interrogação é que fico desgraçado) E como fazemos para não ‘furar o silêncio da leitura’ do sr. José Mário se quisermos mandar um GNR ir passar multas de excesso de velocidade para a puta que o pariu? «Senhor agente ainda agora me apeteceu enfiar-lhe um cacetete de exclamação pelo cu acima mas não sei o que vão dizer os críticos do Expresso». E o que faço quando me perguntarem da Granta como estou das costas? Digo «que aborrecimento esta sensação de espasmo que me subverte em dor o lombo querido»? Não seria melhor um «dói-me como o caralho!», meus anjos da guarda do estilo? Então e se eu quiser mesmo um 'martelo pneumático' no final da frase? Qual é o mal de querer um 'martelo pneumático' no final da frase? Não devo? Aumento as contas d'otorrino de alguém? Tenho de acabá-la em chave de fendas? Só a picareta é que não avilta o estilo? Desisto. Também ando com uma imensa incapacidade de impressionar.

Luna Park #99

«A minha sátira é a minha doença», Mickey Sabbath, in Teatro de Sabbath de Philip Roth

O Epigrafómano (que merda de título, francamente)

«Que rosto era o teu antes de o teu pai e a tua mãe se terem encontrado?» de um Koran Zen

Epígrafe in ‘Souvernirs Pieux’ de Marguerite Yourcenar

Todos os cristãos (e não só) são reféns da frase: «Deus criou o homem à sua imagem e semelhança?» (Livro do Génesis). Dizem que é figura de estilo. Dizem.

O Epigrafómano (este título também saíu uma bela trampa)

«Les poètes ont cela des hypocrites qu’ils défendent toujours ce qu’ils font, mais que leur conscience ne les laisse jamais en repos» de Racine, carta a Le Vasseur em 1660

Epígrafe in ‘Tolstoi ou Dostoievski’ , Cap II, de George Steiner.

Lá está, no fundo, somos todos poetas.

O Epigrafómano

«Ó Deus, fechado numa casca de noz eu poderia julgar-me rei de um espaço infinito [: se não fossem os sonhos maus que tenho]» de Shakespeare, Hamlet, II, 2

Epigrafe in ‘El Aleph’ de Jorge Luis Borges

Ou seja, O Inferno, 400 anos antes de Freud e Sartre

O Epigrafómano

«Não são as próprias coisas, mas as opiniões acerca das coisas o que atormenta os homens». Epictetus, Encheiridion

Epigrafe in ‘A vida e opiniões de Tristram Shandy’ de Laurence Stern


Esta tasca está a tornar-se chata. Nem sequer se consegue inclinar decentemente para si própria, quanto mais virar-se decentemente para o mundo; ora parece um torcicolo permanente a fazer trejeitos para tentar ver alguma coisa, ora põe a mão no lombo para se conseguir manter de pé direito. Já são demasiados anos a lamber opiniões como se fossem sabão.

[Não é que eu esteja atormentado, mas o que é essa merda de que todos falam da 'passagem do tempo num banco de jardim de sto amaro'? Sinto que posso estar a passar ao lado de algo realmente importante]

O Epigrafómano

«Abre bem os olhos e vê». Júlio Verne, 'Miguel Strogoff'.

Epígrafe in ‘A vida modo de usar’ de Georges Perec.

Pior que deixarmo-nos iludir pelas aparências é desperdiçarmos as evidências.

«Se Deus está por nós, quem pode estar contra nós»

A frase do título (da Epistola de S.Paulo aos Romanos) está escrita num placar verde-garrafa instalado na A1 quase à saída de Lisboa. Deverá tratar-se de mais um apelo insinuante de alguma 'igreja evangélica', tentando vir a entrar na alma ( e se calhar bolso) do automobilista pelo flanco peri-apocalíptico, ou seja, apelando ao espírito de intocável que qualquer cristão dalguma forma transporta e qualquer pagão aspira.

Desde sempre que o cristão teve de incorporar na gestão da sua vida o problema das ‘forças do mal’, e, talvez mais rebuscado, o problema do sinal e do castigo. Nenhum católico (digo católico porque tenho dificuldade – por desconhecimento - em entender a alma protestante) poderá certamente dizer que nunca atribuiu (sentiu) algo de mal que lhe aconteceu (a ele ou ao mundo) como uma manifestação clara duma admoestação de Deus.

A manifestação da vontade de Deus na criação é um grande cabrão dum mistério. Mas ninguém se dispensa de ir dando palpites. Precisamos mesmo destes palpites para equilibrar interiormente a nossa vidinha. Ninguém – crente ou não - se consegue alimentar permanentemente de livre arbítrio; nenhum estômago aguenta.

O comunismo, as guerras mundiais, a sida, o terrorismo, a mais recente crise da ganância, as alterações climáticas, e agora, fresquinha fresquinha, a gripe porcino-global: é impossível que não perpasse de vez em quando pelas nossas santas alminhas que se tratam de sinais de Deus. (*) Estranhamente o mal exige mais causalidade que o Bem.

Faz parte da formação dum católico ir tentando equilibrar esta frágil casquinha d’ovo da nossa condição, ou seja: isolar do convívio diário o conflito entre o desígnio de Deus (a clara) e a liberdade do homem (a gema). Consegue-o a espaços; durante o sono.

Ao exigir a Deus que fique de braços cruzados depois de tanto esforço (criação, apaparicanço de povo eleito, redenção sem acompanhamento das televisões, cismas na igreja, etc etc) pede-se-lhe uma perfeição só ao alcance dos deuses menores. Ou seja, basicamente ninguém acredita que não ande aí a Sua Mãozinha. Não sabemos se anda, mas o pessoal não pára de desconfiar.

É então aqui que entra aquela noção de intocabilidade ontológica que a fé fornece. Ali a meio caminho entre o misticismo e as drogas leves, esta espiritualidade da ‘entrega nas mãos de Deus’, essa confiança no seu tripé providência-misericórdia-protecção, são marcas distintivas do catolicismo, (e cristianismo, vá) e são algo que irrita imenso quem esteja ao lado e veja em Deus apenas uma boa cabala manipulatória para deficitários de boa hormona.

Nunca terá irritado tanto como hoje a visão católica do mundo. Nós, os católicos, mais baralhados que nunca, buscamos e damos agora as respostas mais simples, num back in basics fodido de acompanhar: amai-vos, respeitai-vos, cuidai dos mais necessitados, e não vos deixeis levar pelo barco dum progresso que parece não fazer questão de ter alguém ao leme.

O cristão cola o optimismo com o pessimismo numa união verdadeiramente de facto: nenhuma espiritualidade consegue esse pleno de juntar a morte à vida, de fazer conviver o aqui com o aquém, a falha com a graça. Nada como o catolicismo consegue pôr as duas dimensões (que sto agostinho ‘inventou’) a rodarem num mesmo carrossel. Como o Par e o Ímpar a beijarem-se na roleta.

Antes um incómodo sinal de Deus na mão que dois livres arbítrios a voar.

(*) note-se, por exemplo, num post recente do ‘natureza do mal’ em que - de forma até engraçada - ele ironiza sobre as contingências higiénicas no culto religioso da Igreja, apenas um comentário se regozija com a graçola ( e é dum gajo de Penacova), o resto da sua vasta audiência acagaçou-se um pouco de se meter com o Deus da água benta, num post que até pedia mais comentários, designadamente as luvas Jodarte serem uma merda.

O Epigrafómano

«Ora vamos lá! Usemos da imaginação e passemos uma hora bem passada a contar histórias, que as nossas histórias servirão para educar os nossos heróis» Platão, A Republica, Livro II.

Epigrafe in ‘A História Secreta’ de Donna Tartt.

Penso que, se no tempo de Platão existisse televisão, ele seria a Júlia Pinheiro de Atenas.

2999 Odisseia no Erospaço

(e este blog associa-se assim às comemorações da chegada do homem à Lua)

O astronauta John Capuchini mais do que pisar novos planetas gostava de treinar acoplagens com a sua nave ‘Little Apricot’. Saía pela tardinha, enquanto toda a galáxia estava na matiné, e entranhava-se pelo espaço na busca da acoplagem perfeita, a last frontier das acoplagens, mesmo que efectuada em condições de grande adversidade, inclusive chuvas de cometas ou de mary’s poppins.
Naquele dia ‘Little Apricot’ tinha-lhe solenemente comunicado que não estava disposta a ir para perto de planetas com muito arvoredo, pois os radares eram muito sensíveis, e não estava para ficar emaranhada nalgumas moitas. Foram assim para a órbita do planeta Berardo (tinha o nome do antigo empresário português, numa homenagem à doação da sua colecção de cuecas de renda pintadas de luas por Joana Vasconcelos) uma espécie de Saturno mas com anéis em forma de arco-íris.
Uma das coisas que costumava deixar John Capuchini um bocado sensível durante as acoplagens era uma astronauta russa que se costumava passear com a sua nave levando um casal de clones de tigres da Sibéria a mijar no espaço porque achava que lhes fazia bem à pele. Quando isso acontecia geralmente John falhava a acoplagem, e por brincadeira ‘Little Apricot’ até o provocava perguntando-lhe se tinha de ir tratar do assunto com o modo de astronauta automático.
Mas naquele dia John enchera-se de brios e até comprara um kit de capacete e chave de fendas novos num Pingo Doce de Vénus que dizia nas instruções: «Pensa e acoplarás». Inesperadamente, um revolucionário acabamento em estrias helicoidais revelou-se problemático tendo inclusive deixado por duas vezes John com a chave na mão a olhar para o capacete e para uma ‘Little Apricot’ incrédula e quase que suspirando pelos tempos em que apenas se dedicavam a brincar à batalha de coordenadas de GPS, ou a fazer as palavras cruzadas do Ypsilon.
Mas John não desistia; e se não tinha obtido sucesso com a clássica técnica de acoplagem central iria arriscar com a alternativa acoplagem de perfil, sabendo de antemão que o espaço era exíguo derivado à proximidade dum satélite paquistanês que se instalara nas proximidades, e que se dedicava a fazer downloads ilegais de música cósmica para depois vender como imitação dos Pink Floyd. ‘Little Apricot’ enchera-se de boa vontade e até adornara a zona de acesso ao tanques de propulsão para que John não se pudesse desculpar com a astronauta russa, nem com o capacete novo de estrias que lhe estava sempre a cair para a testa, dando até um certo ar de ciclista, o que também, convenhamos, não ajudava a dar um ar profissional e convincente à acoplagem.
Estava no entanto tudo a correr às mil maravilhas, tirando um ou outro toque de John no satélite paquistanês, com os tanques de Hélio de ‘Little Apricot’ a entrarem em módulo de lubrificação acelerada, e eis senão quando, John, inesperadamente, alegando que o capacete lhe estava a cair para os olhos, interrompe a acoplagem e se põe a rogar pragas ao Pingo Doce. ‘Litte Apricot ‘ nem acreditava no que lhe estava a acontecer, e quase com vontade de pegar à força na merda da chave de fendas de John, pega no capacete, atira-o para o espaço sideral e declara: ‘tenho de ser eu a acabar esta porra sozinha’. ‘Tens de compreender que isto, nestas circunstâncias, não é fácil’ foi a única saída semi-airosa de John, que ia propondo colocar uma música dos Red House Painters para tentar desanuviar o ambiente tenso do cosmos. ‘Acho que senti falta das moitas de Jupiter’ foram as suas últimas, mas hesitantes, palavras que, no entanto, não o dispensaram de ouvir que se tivesse uma chave de fendas em condições, e não uma merdinha que mais parecia um isqueiro bic dos pequeninos, nada daquilo aconteceria e se calhar até a astronauta da nave dos tigres da Sibéria quereria ter experimentado. Mas fazia-se tarde, os sóis começavam todos a pôr-se pela galáxia, e ainda havia que ir comprar fruta e hidratar a fuselagem para não fazer má figura no hangar. Nem deu para comer umas línguas de gato.

Luna Park

«But I swear I’ll never kiss anyone / Who doesn’t burn me like the sun / and I’ll cherish every kiss like my first kiss »

Jens Lekman, ‘And I Remember Every Kiss’ in ‘Night Falls Over Kortedala’

O epigrafómano

«Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto» S. João, XII, 24. In ‘Os Irmãos Karamazov’, F.M. Dostoievski

Perto do ano 22 a.b. (ou seja, 22 anos antes da bloga), quando se juntava uma adolescência arrastada a uma maturidade enfiada a ferros, tive o entretenimento de ir ‘coleccionando’ as epígrafes dos livros que lia. Escrevia-as num livro de quadriculado comprado numa papelaria ali na Rua Poiais de S.Bento, antes de se entrar na Calçada do Combro, e depositava nelas imensa esperança, pois considerava que condensariam toda a mensagem da obra, eram, por assim dizer, um núcleo de sabedoria, uma fusão de estudo e inspiração. Nas voltas da vida o caderninho perdeu-se. Noutro dia, ao trazer uma epígrafe (dum livro de P. Roth) aqui para um post lembrei-me do caderninho e desse costume. Recuperar essa memorabilice é o renascimento possivel que vou arriscar. Oscilarei entre livros antigos e novos. Com ou sem comentários. Aqui.

A série começa com um clássico. Dos primeiros do caderninho. Para os tempos que correm parece uma frase de manicómio.

Container Age

Os tempos mais recentes ficaram marcados por duas polémicas sobre contentores: a das aulas para os ciganos em Barcelos, e a sempre-eterna do terminal de contentores do porto de Lisboa. Em qualquer dos casos transparece alguma sub-valorização da figura do contentor, que já não tinha boa fama desde que Melanie Klein se lembrou de lhe sacar o poder metafórico para as suas teorias de alavanca infanto-mamária, se me é permitido assim expressar. Ora o contentor – como se pode observar aqui, ou aqui, ou aqui, a mero título de exemplo (há milhares de merdas destas) – não merece. Para além de vos puder contar dezenas de coisas que se podem fazer num contentor – como se constatar aqui, ou aqui, ainda também apenas a título de exemplo – julgo ser importante voltar a dignificar o contentor e jamais deixar que ele fique ligado a este período de tanga da nossa história. O contentor é inequivocamente uma marca da nossa civilização e, para além disso, assume-se como o parente pobre do novo demo que é a globalização. Nem sei inclusive como é que ele escapou a uma referência critica na nova encíclica, que a Santa Madre Igreja me desculpe esta pequena graçola. Parece-me assim um desafio para todos nós trazer o contentor para o lugar que ele merece, recuperar de novo o contentor para o coração de todos nós. Esta situação tem-me deixado inclusive desgostoso, pois tudo indica que estamos à espera que haja um escândalo dentro dum contentor (género apanhar dentro dum a dupla Sanfona & Melo a fazerem aviõezinhos de papel como a fotografia de Constâncio) para que este ainda sirva de agente sublimador dos nossos complexos.
No entanto, interpreto estes acontecimentos como um sinal. Um sinal da história do nosso imaginário. Afinal a tanga não passava dum fase passageira, duma espécie de antecâmara da verdadeira viragem histórica. A nação-contentor, o país que nunca teve infância, nunca teve sequer a idade do armário, entrou definitivamente na fase terminal : queremos que alguém nos leve e guarde, nos deixe sossegadinhos uns ao pé dos outros, sem nos pedir para mexer muito e, e se quiserem alguma coisa de nós, encham-nos de mimos e peguem-nos ao colinho. Estamos feitos para guardar recordações, - somos afinal um país com história - e, se pedirem com jeitinho, podemos distribui-las pelo mundo fora a preço de chinês. Com ou sem corninhos.

O Aperitivo Categórico

É conhecido o fraquinho que Kant tinha por amendoins salgados. No entanto, o que é menos conhecido é que ele viveu atormentado toda a sua vida porque pensava que o pistachio era um aperitivo de categoria superior e, muito provavelmente, seria o próprio aperitivo universal que, no fundo, explicaria e daria sentido a todos os outros aperitivos. Atormentado por saber nunca vir a conseguir atingir o amendoim em si, desforrava-se comendo altas barrigadas do dito, endereçando ao aparelho intestinal os problemas que o seu idealismo em busca de almanaque não lograva descortinar, chegando mesmo a dizer: o amendoim sem o pistachio é um conceito cego.
Os últimos anos da sua vida foram dedicados a uma experiência de teor pragmático-metafísico: comer amendoim mas procurando ter a experiência do pistachio; tratava-se pura e simplesmente de pôr de mãos dadas o empirismo e o racionalismo, deixando a intuição beijar na boca a experiência.
Sabendo ter sido injusto para muitos outros aperitivos, deixou inacabada uma obra de carácter esotérico, mas visionário, em que pretendia demonstrar que o pistachio mais não era que um caju embrulhado numa casca de pevide, e que a verdadeira fonte de conhecimentos apriori se encontrava no céu da boca, o topos de toda a transcendência. Daí se dizer que quando morreu parecia estar com os topos.

«When I said I wanted to be your dog»

Jens Lekman vem (cantar) a Portugal. No artigo da Ípsilon de hoje, o Bonifácio de turno refere que os amigos de Lekman dizem das suas canções «isto não aconteceu assim», desconfiando de tanto sofrimento, de tanta, soit disant, ingenuidade sentimental. Eu gosto imenso de Lekman. Da voz, das melodias, dos textos, é isso mesmo: há ali um grau de pureza que desmancha as defesas, que mina a casca. E acho que se devemos investir em algo ‘ingenuamente’ é no sentimento. Se há algo que a experiência humana nos oferece de brinde é sentirmos ingenuamente; é esse sentimento que vai polindo por dentro a nossa redoma. Polir por dentro. Pura seiva dentro da mais dura casca. Mas temos de tratar bem da casca para preservarmos a seiva.
As modernas teorias da neurosentimentologia gostam de compartimentar e catalogar os sentimentos, (ou emoções, como se queira chamar) procurando caminhos, bifurcações, crochets e viadutos na mente. Especulando sobre as estratégias da nanoquímica. O mundo das canções (de Lekman) mostra que existe apenas um sentimento, uma seiva, e eu acrescentaria: o que existem são muitas cascas.

Ex-combatente


A liga dos ex-combatentes da política declara para os devidos efeitos que aceitou como sócia honorária a ex-combatente Roseta, que depois duma vida de entrega às mais diversas e nobres causas, ficou ferida em dívidas. Foi-lhe assim atribuída uma suite com vista para Monsanto num lar da Misericosta, com serventia de contabilista, cozinheira e motorista. Poderá doravante dedicar-se ao tricot anti-santana e à inauguração de estátuas da Natália Correia, declamando o seu verso: «Confia. Eu sou romântica. Não falto.» Corando um pouco, claro.

Entalhes Felizes. #6 A Providência

Era o dia da inauguração da exposição de Pierre Soulages. Muita excitação na sala. Ela andava sem eira nem beira; com um copo de martini na mão, só para ter as mãos ocupadas. Tinha saído dum grupo que falava de férias na Martinica e passara de raspão por um outro que falava da fotogenia de Leonardo de Caprio. Nada a satisfazia. Ainda só passara pelas pinturas ao de leve. Ele estava bloqueado num quadro das séries mais traçadas, mais ‘caligráficas’. Via-se que não arranjava a posição certa para ver os quadros, parecia que tinha até de fazer alguma ginástica para os apanhar. Dava um bocado nas vistas. Ela não resistiu e pôs-se ao lado dele. Sem saber porquê, poisou o copo e começou a imitar-lhe os gestos, as coreografias do corpo. Inesperadamente confirmou que certos quadros se viam melhor de esguelha. Ele reparou. Chamou-a. Abraçou-a. Inclinou-a. Pôs-lhe a mão entre as pernas. Levantou-lhe os pés do chão. E voaram só com o olhar. Dizia-se que pareceram anjos. Pouco mais sei.

Entalhes Felizes #5 A Fortuna

A papelaria chamava-se ‘Sonho de Luz’ e estava a abrir. Era muito cedo e a sua clientela fixa ainda não começara a chegar. Ele foi o primeiro cliente. Vinha com um papel dobrado na mão com três números escritos. Abria-o e voltava a dobrá-lo. Intercalava com mordidelas de lábio cada vez mais prolongadas. Via-se que olhava para as capas das revistas e para os títulos sem os fixar, ou melhor, sabendo que não encontraria lá o que queria. Parecia preocupado, quase perdido. Mas também não encontrava tudo o que precisava naquele papel. Ela entrou pouco tempo depois. Dum envelope tirou um cartão. Mais números. Ela nem para os jornais olhava, mas a sua mão tremia enquanto segurava no cartão. O dono da papelaria estava atarefado e não dava conta, ia apenas pedindo-lhes delicadamente para não o atrapalharem no meio da loja. Encostaram-se os dois no balcão ao mesmo tempo, apoiando apenas os punhos e como que à espera que um raio lhes abanasse o corpo. Cada um com o seu berço de números na mão. A certa altura os papéis juntaram-se. Magnetismo na papelaria. E revelou-se uma série de 6 números. Já tudo fazia sentido. Chamaram rapidamente o dono da loja. Ele deu-lhes os parabéns e perguntou o que iriam fazer a tanto dinheiro. Pouco mais sei.

Entalhes Felizes. #4 A Sina

Da tenda das farturas fumegava a nuvem com o melhor cheiro do mundo. Mas a feira estava ainda nas suas horas mortas. Numa roullote ao lado, onde a porcaria e a ferrugem eram rauchenberguinamente promovidas, prometiam-se leituras de mãos. Ela tinha acabado de se sentar junto da cigana quando Ele se começou a aproximar. Abrandou então progressivamente o passo, mas com a sua bomba cardíaca já ligada no máximo e o sonar em posição de combate; - «a menina hoje vai apaixonar-se», arrancou logo a cigana - o seu andar revelava a hesitação da alta espionagem, - «por um homem que nunca viu antes» - serpenteando entre os poucos e tímidos comedores de algodão doce fora d’horas, - «e não vai perceber porquê» - mas de repente o corpo autonomizou-se, - «nem vai conseguir resistir-lhe» - avançou movido a pólvora fresca, - «pela primeira e última vez na vida vai ter uma certeza absoluta» - com o olhar feito culatra, - «mas vai ser ele a agarrá-la» - e engatilhou-a. A cigana não teve tempo de passar recibo, nem de desejar felicidades. Pouco mais sei.

Entalhes Felizes. #3 A Predestinação

A lavandaria chamava-se ‘Alfazema ao luar’, um nome romântico mas dalguma forma ridículo para uma lavandaria a seco. Ela esperava duas calças pretas, uma de linho e outra de algodão, e ele esperava duas calças cinzentas escuras de lã. Era uma espera que parecia mesmo pedir alguma impaciência, mas ambos se mostravam calmos e sem pressas. Nenhum bufava, nenhum tamborilava dedos no balcão, nenhum fingia ler mensagens no telemóvel, nenhum fingia fazer contas de cabeça, nenhum coçava nada que fosse para além do óbvio. As calças chegaram, foram entregues, e recepcionadas, com uma destreza mecânica e profissional. Encaminharam-se juntos para o elevador que levava ao estacionamento, mostrando apenas aquela proximidade que une dois seres do mesmo sistema solar e que controlam mutuamente as rotas de translação. Mas as calças estavam trocadas e repararam nisso em simultâneo. Previsivelmente dariam um sorriso, uma gargalhada até. Mas não. Fizeram apenas aquele levantar de sobrancelhas que ilustra o espanto e, como que tivessem ambos a chave de todas as decifrações, e já o soubessem de antemão, puseram tudo num mesmo saco, alugaram uma furgoneta e foram treinar pores-do-sol para uma praia de nudistas. Pouco mais sei.

Entalhes Felizes. #2 A Coincidência

A música que arejava o ambiente parecia ser da Lisa Germano, mas na prateleira as mãos buscavam material mais electrónico. Ele vinha da letra L, tinha passado com calma pelo Lindstrom, arrepiou caminho depois pelos Lambshop sem parar, e agora parecia fazer uma pausa nos óbvios Knife. Ela, que partira da outra ponta, mais lenta, tinha olhado com a candura obrigatória para os Air, rira-se nos Arquitecture in Helsínquia, mas parecia torcer o nariz nos Atlas Sound. Os dedos indicadores de ambos acabaram por se encontrar num inesperado ‘The moon and the melodies’ dos Cocteau Twins & Harold Budd. Ele fez aquele gesto reflexivo e defensivo de empinamento dos dedos, mas ela pareceu não se incomodar. De repente os braços estavam cruzados. Ela espreitava um David Sylvian e ele não resistira aos Calexico. Deram o primeiro beijo mesmo em cima do Moon Pix da Cat Power. Pouco mais sei.

Entalhes Felizes. #1 O Acaso

Era uma daquelas esquinas que se dobravam com dificuldade: angulosa, na encruzilhada de duas zebras para peões, com uma loja de cafés dum lado e uma de produtos eléctricos do outro. Ela desfez-se apressadamente do táxi, cumpriu o ritual obrigatório de esticamento de saia e puxou pelos galões do perfume; ele saía da loja com um pacote de café, ‘moagem grossa’, ‘selecção da Colômbia’, e ainda o cheirava numa pose semi-religiosa. Os olhares chocaram antes dos odores, já se sabe que a velocidade da luz não tem concorrência, e a natureza tem destinado um pequeno sorriso especial para essas situações abençoadas. Foram unidos por uma súbita necessidade de comprar um ficha tripla. Saíram de mão dada. Pouco mais sei.

Cajuda

Os charutos e o whisky que estiveram na origem do post anterior [eu sei que não leram] acabaram, e pensei em voltar aos jornais para chocalhar as ideias. Mas os jornais apresentaram-se fracos, tirando o facto de Cajuda dizer no Público ser ‘mais inteligente do que aquilo que parece’. Ora quando há muitos anos eu tive de escolher uma pessoa para me irritar: escolhi Cajuda. Estive indeciso entre ele e o Martelinho, um cabrão dum jogador do Boavista que entrava sempre no final dos jogos contra os lagartos para nos marcar um golo. É evidente que apenas o futebol nos cria genuínas urticárias (a politica, a literatura, e as vizinhas dos lado apenas dão azo à comichão ou ao prurido) e Cajuda foi a que me calhou; mesmo que ele apresente nome de aperitivo efeminizado , o que, por si, até podia levar-me a criar alguma empatia, pois a minha paixão por aperitivos – não confundir com preliminares – é uma das marcas mais estáveis da minha personalidade, tirando um sofisticado estado de incompreensão que me acompanha intermitentemente desde o berço. Nesta entrevista absolutamente desinteressante e que apenas eu, o jornalista que o entrevistou, (um tal Paulo Curado – que Deus nosso Senhor o preserve em boa saúde) e o próprio Cajuda leram, este diz que recusou uma proposta milionária para treinar um clube no Qatar. Começo a ter pena de Cajuda, a síndrome de ‘o-Pinho-afinal-era-bom’ está também a tomar conta de mim. Penso agora até que ‘Cajuda no Qatar’ era um óptimo mote para um romance de teor naturalista, logo seguido em regime de sequela com ‘Pistacha no Bahrein’, para terminar a saga com ‘Tremoça no Dubai’. Uma espécie de 'Arábia Minha' em três actos. Eu sei que me estou a desviar do meu importantíssimo desígnio, inclusive de forma oficiosa e trocadilhosamente parva, mas, têm de me compreender, o meu secreto sonho era escrever mesmo uma saga no deserto. Escorpiões, beduínas e tapetes voadores, o que pode um homem pedir mais à sua lamparina mágica. E se pudesse lá ter o Cajuda, tanto melhor. São as pequeninas irritações que nos irrigam o oásis. Tenho mesmo imensa pena de neste momento não ter mais nada para vos contar, ou melhor, tinha, tinha algo sobre a dignidade da pessoa humana, o vazio de valores e o pessimismo antropológico, mas devem compreender, não posso escrever como quem mete uma bucha, e nem todos somos especialistas em entalhe. Mas, atenção, sou muito mais carpinteiro do que aquilo que parece. Cajuda, fica, pela tua rica saúde.

Um autor [e dois emplastros] à procura dum personagem

Lobo Antunes anda completamente em brasa. Sousa Tavares e Pulido Valente elegeram-no como espécie de subject of understanding e declararam que ALA nunca tinha criado um único personagem de jeito em toda a sua obra, sendo assim um escritor falhado. (*) Ora ALA não se conforma, e há mais de um mês que se fechou num rés-do-chão ali para os lados da Póvoa de Stº Adrião procurando uma personagem que seja definitiva e que, pelo menos, cale aqueles dois invejosos (entre os mais de dois milhões que nunca conseguiram acabar um livro dele) e autênticas línguas de trapos. ALA, que depois de ‘ter lido um fellatio fabulosamente descrito por Jackie Collins’, ficou incapaz de escrever sobre sexo, e que certamente não esquece que o seu querido Conrad escreveu que ‘as mulheres são alheadas da verdade e vivem num mundo próprio’, pensa estar agora destinado a criar uma singular personagem feminina, uma mulher de excepção que faça esquecer Kareninas e Bovaries, Salomés e Penélopes, mas que ao mesmo tempo saiba fazer um bom lombo de porco assado para o marido quando este chega cansadinho a casa depois de ter pilotado um caça bombardeiro entre Peniche e Tavira, sobrevoando a costa à descoberta de manchas cardúmicas de rodovalho.Quer uma ‘mulher que nunca nos canse’, que nos prenda, ora como uma grande obra de arte, ora como uma obsessão, uma mulher que deixe os leitores furiosos se qualquer outro personagem a beijar. ALA sabia, pelas suas investigações literárias aos mundo das sub-caves da psique, que as mulheres podem ter um fascínio estúpido por homens maus, mas a sua editora tinha-o avisado que no Natal as mulheres perturbadas vendem mal, e ALA suspeitava que o seu sucesso dependia muitos dos Natais. ALA sabia que desta vez tinha de conseguir uma mulher gasta pelo homem, mas verosímil, uma ‘personagem eficaz’ e que não podia sacrificá-la às piruetas quase tipográficas do estilo. Exigia-se agora algum respeito pelos tais ‘leitores preguiçosos’ que precisam de personagenzinhos, como pickles e azeitonas no bitoque. Lá teria outra vez de ir ‘escrever para a mesa da cozinha’. Mesmo sentindo-se incapaz de descrever orgasmos de mulher, evitando-se assim os corpos arqueados, os tremores, e os dedos dos pés retorcidos, iria criar uma daquelas mulheres em ‘que o nosso corpo começa a ir para elas’ quase como que se um homem ‘não tenha medo de ser mulher’. Impossível, todas as mulheres metem medo. Mas só o que mete medo nos pode salvar; só o que arde cura. ALA escrevinha. Escarafuncha. Onde outros apenas veriam um picotado ele vê a carne furada por um cromeleque. No fundo, só uma mulher poderá ser verdadeiramente personagem, um homem nas mãos de um homem seria sempre meio espelho, meio biombo. ALA há um mês que suspira por essa sua mulher-personagem, a tal que terá ali a ‘sensualidade no intervalo entre a luva e o começo da manga’ deixando o leitor sempre no gume e o escritor com o cabo a deslizar-lhe nas mãos. O seu querido subúrbio dá-lhe uma guerra vista pelo lado duns peitos descaídos e dumas unhas mal pintadas. Sobre as mulheres pode-se escrever tudo porque ninguém sabe nada. Nem elas. Leitoras, ALA, pensa sempre nas suas queridas leitoras. ‘Esquecer uma mulher inteligente custa um número incalculável de mulheres estúpidas’ é a frase que lhe lubrifica sempre a imaginação e lhe vai iluminando o caminho. Este caminho arrancado agora a ferros pela dupla: inspirador de telenovelas / historiador de graças de paróquia. Mas a sua mulher não ia ser apenas uma personagem, ia ser um género inteiro, cada minuto seu no enredo seria uma vida completa. Uma história universal da gaja. Ou vos entrará pela mona ou pela antecâmara das tripas. Quando a acabasse, ALA diria nas entrevistas: quase morri para escrever aquilo. No rescaldo, ALA não apresentaria rancores e ainda sobejariam restos de lírica que dariam para 2 personagens de MST no seu próximo romance sobre uma quase-índia que quase-casou com um quase-padre quase-amaro, e mais duas para VPV fazer de amantes de Robespierre na sua história da revolução francesa em cuecas. Depois, já esgotado e saciado, abriria uma banquinha de personagens na feira do relógio com a lacaniana inscrição: Vendo o que não tenho a alguém que não precise.

(*) No entanto ALA já tinha dito numa entrevista a MST há muitos anos que não lhe interessam as personagens, e podem avisar o VPV que as entrevistas do ALA são praticamente o meu Eça de Queirós. O material entre aspas foi precisamente retirado dessas entrevistas.

Luna Park

I wish you were here, dear,
I wish you were here.
I wish I knew no astronomy
When stars appear,
When the moon skims the water
That sighs and shifts in its slumber.
I wish it were still a quarter
To dial your number

Iosif Brodskii

Fisioterapia

É a melhor profissão ao cimo da terra, não tenho hoje qualquer dúvida. Grandes filhos da puta. Recuperam lesões, diz-se, dizem. À base das aparentemente inocentes repetição, tensão e alongamento, forçando uns movimentos, evitando outros. Ligam e desligam a seu bel prazer, como se fossem os deuses da prisão e do alívio. Ora vão aplicando cirurgicamente o gelo, ora sabem ir distraindo com os ultra-sons, insatisfeitos em dominar a carne querem dominar o tempo também, fazendo a perseverança trilhar os mesmos caminhos do deboche.
Estão quase sempre muito próximos da paciente (‘da’, sim, é o caso que aqui mais me interessaria discorrer) para que os movimentos possam ser, por si, totalmente controlados, para que quando o músculo, ou o tendão, ou o ligamento estiver a responder, eles possam ouvir e traduzir à paciente, ávida da sua descodificação, ávida do seu olhar e da sua mão. Sacam gemidos como um padre saca salvé-rainhas. As pacientes entregam-lhe por várias semanas ou meses partes importantes do seu corpo - que, como se sabe, levam sempre bocados de alma atrás – e criam uma rara intimidade que se baseia naquela merda de mistura alquímica de paciência, conhecimento e confiança. Há apenas curiosidade quanto baste, os movimentos bruscos estão afastados do contrato, e a união física é absolutamente essencial: o corpo da paciente pertence-lhes tal como um piano pertence ao pianista, num comodato mais forte que a posse.
É oficial: invejo os fisioterapeutas. Parece que estão constantemente a foder sem precisarem de exibir o mais pequeno sinal exterior de luxúria; podem inclusivamente manter aquele clássico ar de carneiro mal morto enquanto seguram no joelho da menina como quem lhe abre as pernas para ver a inflamação na garganta.
Inesperadamente o acto fisioterapeutico nunca foi muito explorado pelos pintores (também eles invejosos com toda a certeza), nem a literatura lhes sugou as metáforas, nem Rodin alguma vez se lembrou de deixar na posteridade da pedra um alongamento de coxa, e isto apenas reforça uma das chaves do seu inigualável poder: passam despercebidos. Colados ao corpo dela, mas despercebidos. Sussurrando. Exigindo correspondência. E obtendo sempre mais. Mas como quem já sabe até onde se chega. Sabendo qual é o ponto de riso e o ponto de choro. Vicioterapeutas. Cabrões.

Ponto 68

(Não tarda eu era o único gajo que não citava a encíclica do Papa)

«Por sua natureza, a pessoa humana está dinamicamente orientada para o próprio desenvolvimento. Não se trata de um desenvolvimento garantido por mecanismos naturais, porque cada um de nós sabe que é capaz de realizar opções livres e responsáveis.
(…)
Ninguém plasma arbitrariamente a própria consciência, mas todos formam a própria personalidade sobre a base duma natureza que lhes foi dada.
(…)
É preciso que o homem reentre em si mesmo, para reconhecer as normas fundamentais da lei moral natural que Deus inscreveu no seu coração.»


Mas, foda-se, no ponto 65 também se pode ler isto:

«Se o amor é inteligente, sabe encontrar também os modos para agir segundo uma previdente e justa conveniência»


Calma que eu comecei a ler do fim para o princípio, fazendo jus ao sábio princípio de que são os fins que justificam os meios. Mas até é no início que é logo tudo dito: «A caridade na verdade (…) é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira». Parece uma banalidade mas se há uma síntese da mensagem cristã: é esta. A merda desponta é quando se tem encontrar o ‘como’ em 'cada momento’.

Mas ora se «por sua natureza a pessoa humana está dinamicamente orientada para o próprio desenvolvimento» e se «a caridade na verdade é a força principal para o verdadeiro desenvolvimento»... afinal isto pode ser ginja.

Brush Tango

colecção Berardo, pormenor de

'the road not taken'

Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that, the passing there
Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
two roads diverged in a wood, and I --
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.

Robert Frost

Moonwalk

«Cada terceiro pensamento será a minha sepultura» (*)

A nossa cartomante Miriam a certa altura, - todas as mulheres têm, por assim dizer, certas alturas - teve a tentação de se lançar na assessoria à elaboração de listas eleitorais. A política era algo que lhe surgia muito ligado às forças do cosmos e à ocultação, e onde as cartas poderiam ajudar a desembaraçar certos novelos que, por exemplo, a ambição, o oportunismo, ou a simples burrice acabam por criar. Sabedora de que a arte da política vive muito de momentos e de circunstâncias, Miriam tentou desenvolver um modelo que pudesse ver interagir as pessoas com os lugares, numa espécie de inclusão cruzada de cartomancia toponímica; ou seja, para candidatos de litoral haveria que testar as cartas essencialmente em signos como peixe e caranguejo, em terras lezíricas touros e carneiros, em zonas de estepe leões, nas zonas desertas escorpiões e virgens, e por aí fora. A ideia foi muito bem vendida e praticamente todos os partidos aderiram, mesmo que apresentassem alguma, natural, desconfiança, e receio que o pessoal concorrente das sondagens e do spin-docagem se susceptibilizasse, se bem que a susceptibilidade esteja para a ciência politica como a barba de três dias está para o engate: são facas de dois gumes. Ciente de que estava a pisar terreno minado, Miriam decidiu testar as suas teorias numas eleições locais na Polónia, onde conseguiu que duas balanças protestantes e coxas fossem eleitas para presidentes de junta de freguesia dumas terreolas nos arredores de Katowice, e sem recurso a pagelas de N. Sª do Amparo, apenas com a técnica das tiradas intercaladas de ternos d’oiros. Mas faltava ainda testar os dois elos teóricos que lhe faltavam: se a expectativa de alguma supremacia de signos como balança (o equilíbrio) e carneiro (o rebanho) se confirmava, e se a tendência para a gaffe, a nova estrela da estação, apresentava maior incidência nalgum signo em especial. Neste último caso, o estudo das situações mais evidentes não teria revelado um padrão de sustentada previsibilidade (ex: Pinho – escorpião, Lino – gémeos, Ana Gomes – aquário, José Lello – touro, Carlos Borrego – caranguejo, Braga de Macedo – sagitário, Macário Correia – carneiro) e antes bastante pulverização no espectro zodiacal, - Deus Nosso Senhor terá deixado a coisa bem distribuida - pelo que foi afastada qualquer injunção teórica.
Iniciada a primeira sessão de lançamento de cartas, o caso do PS apontou para caranguejos no litoral e virgens no interior, matizado com gémeos a norte e peixes a sul, capricórnios acima dos 500 m de altitude e carneiros na planície; sendo o PS muito sensível ultimamente a sequências com damas d’oiros, recomendou-se-lhe que evitasse candidaturas femininas em zonas de muita propensão para teias de aranha. Quanto ao PSD as recomendações foram mais simples, evitar, em qualquer situação, os capricórnios (paira a influência de JPPereira, e há os casos paradigmáticos de Valentim e Isaltino), e muito menos listas que os misturasse com escorpiões do norte (como se sabe, os capricórnios são as loiras dos escorpiões), para além disso a sensibilidade do PSD está ultimamente muito acossada nas séries com valetes de paus, que podem fazer alguma sombra à dama de copas, o que será de evitar a todo o custo. Miriam foi convincente a expôr as suas linhas programáticas de escolha de candidatos, e se as cartas lhe serviam para escolher aos seus clientes os melhores dia para foder, ou inclusive para ir jantar a casa dos sogros, a elaboração de listas eleitorais num país de eucaliptos à beira mar plantado parecia-lhe uma brincadeira paras ciganas vesgas em festa de bairro. Mesmo o Bloco de esquerda, que desde o início se mostrou muito renitente com o método da nossa Miriam, não resistiu ao seu encanto quando esta lhes demonstrou que a aposta em Sá Fernandes estava obviamente destinada ao fracasso, face à sua condição de carneiro, que, mais tarde ou mais cedo, encaixaria num rebanho que lhe desse uma guarida mais tranquila. O escorpião Louçã, praticamente de cérebro lavado e transformado num sagitário de cultura, chamou Miriam à parte e disse-lhe: «querida, nas próximas entrego a virgem Drago nas suas mãos e atacamos a presidência à base de carreirinhas com duques d’oiros e quinas de paus».

(*) Shakespeare, em 'A tempestade' (e que também serve de epígrafe ao 'Teatro de Sabbath' de Philip Roth).

Moonfolk

Margot era uma aquariana, guitarrista duma banda do chamado pop alternativo, mas onde o alternativo significava que alternava entre um estilo durutti column e um estilo arcade fire (um ex-namorado caranguejo era violinista), ou seja, como pura aquariana, tentava disfarçar a sua férrea vontade de tudo controlar sem que ninguém desse conta, com uma – totalmente planeada – pendular variação de estilos.
Certo dia, um baterista capricórnio, de seu nome Henri, - mas um Capricórnio de fim de fase, a acenar a aquário - apresentou-se querendo integrar a banda, trazendo no seu curriculum dois solos num concerto de Beck em Birmingam. Margot, justificadamente à defesa – a forma aquarianamente mitigada de calculismo -, levou à consideração da nossa cartomante Miriam a hipótese de integração de Henri. Aliás, acabou mesmo por ficar conhecido como ‘A hipótese Henri’ o estudo que Miriam desenvolveu para analisar os processos de passagem de Capricórnio para Aquário. Miriam começou a lançar cartas numa sexta-feira de lua quase cheia e, pode dizer-se, - ainda estava nos seus anos de graça - com elevadas esperanças que se vieram a confirmar. Inesperadamente saem de seguida dois noves de paus. Ora o nove de paus significava, no elaboradíssimo sistema de Miriam, uma forte tendência para a fusão de elementos, ou seja, Margot se aceitasse Henri como baterista poderia ter de colocá-lo a cantar ou a tocar saxofone pouco tempo depois, ou seja, a perder o controlo. Margot aceitou o desafio, dando um irritante sinal de resignação, outra marca aquariana e toda ela uma pura mutação da obstinação capricorniana.
Margot e Henri arrancaram então com uma série de concertos (entretanto o ex-namorado caranguejo, previsivelmente, foi incapaz de aceitar um novo membro na banda e recolheu para um convento em Waterford, na Irlanda) e no final da tournée casaram-se pelo ritual ortodoxo por questões meramente estéticas. Miriam foi a madrinha e nesse dia escreveu no seu diário: ‘meu Deus, dai-me mais noves de paus e eu transformarei o mundo’.
Depois do casamento, Margot, tentando explorar ao máximo a voz de encantador de serpentes de Henri, – os aquarianos usam a voz como elemento estruturalmente erótico, uma espécie de preliminar permanente – procurou encostar-se mais ao registo divine comedy, o que a levou a começar a sentir falta dum piano. Miriam, depois de lhe terem saído dois valetes de copas, recomendou-lhe, contra todas as expectativas, um pianista leão. Ora todo o aquariano tem uma exacerbada obsessão pela fenilidade, e Margot até disse para consigo, mais arrepiante que isto que isto só sair-me outro caranguejo (signo para o qual Miriam lhe tinha até recomendado uma pomada repelente muito boa, à base de extractos de cactos do Egipto). Mas Margot, com a sua medula aquariana, não queria arriscar e entregou o piano a um belga simpático, que acabou por nunca lhe dar problemas, de tal forma que até teve de lhe arranjar alguns defeitos artificiais, não fora Henri ainda ser tomado por ataques de ciúmes.
Tudo corria bem até que um dia Henri, esticando a corda, declara solenemente: isto está a tomar os caminhos bolorentos da folk. Como já todos deviam saber – mas Miriam não tinha estudado o caso com a profundidade necessária - os aquarianos cansam-se com o som da guitarra e deslumbram-se com o som do piano. Henri já não podia com o dedilhar incansável de Margot, fazendo a guitarra parecer-se com um xilofone, se fosse para aquilo mais valia ter casado com uma baladeira acústica. Margot, indignada, o aquariano indigna-se sempre com algum estilo, não suportou a desconsideração de Henri, despediu-o – nunca tinha perdido o controlo do grupo, mesmo parecendo ter dado a liderança a Henri - e foi para a Irlanda no primeiro ferry-boat. At the end of the day, apenas um eterno incompreendido sabe compreender.

Moontalk

Miriam era uma astróloga-cartomante especializada em Capricórnios. A especialização em determinados signos era uma tendência recente no mundo da astrologia e das cartomancias avulsas, tendo começado por ser, logicamente, olhada com bastante desconfiança, tanto mais que, para além disso, não parecia ser uma opção sensata ao reduzir dessa forma o espectro da clientela. No entanto Miriam apostava numa estratégia: toda a gente que se preze, e mesmo não preze, tem um problema real (fora os imaginados) e específico (fora os gerais) com um Capricórnio. Chegou a pensar também no caso dos Caranguejos, mas verificou que os exemplares deste signo, em muitos casos, são apenas incompreendidos e bastaria um pouco de paciência e finca-pé para se levarem as questões a bom porto, não sendo necessário entrar por vias que impliquem mais despesa com tal desígnio horoscopolar.
Mas o caso dos Capricórnios era bem diferente, tanto mais que não poucas vezes assumiam uma combinação explosiva: teimosos (que nem uns Capricórnios) e instáveis. As primeiras consultas foram destinadas a puros casos de sobrevivência: como resistir à convivência com Capricórnios sem que nenhuma das partes fosse levada a testar a lei da gravidade acima dum 4º andar. O seu prestígio ficou definitivamente cimentado quando apenas com duas tiradas de cartas conseguiu juntar dois Capricórnios numa mesa de snooker e eles acabaram a petiscar umas navalheiras com cerveja de trigo preta. Inaugurou inclusive a técnica dos case-study cartomâncios, tendo este ficado conhecido, dalguma forma previsivelmente, como o ‘caso da dama de copas, do snooker e das navalheiras’. Miriam tinha então, por essa altura, descoberto que os Capricórnios encontravam o seu ponto ideal de entendimento quando do baralho se sacavam consecutivamente duas damas de copas. Depois de algumas experiências falhadas (três divórcios, duas crises de nervos e um escamamento de pele) com valetes de espadas, a dama de copas revelou-se inequivocamente certeira no turbulento domínio dos Capricórnios; aparentemente lá perto só tinha chegado com uma sequência de biscas d’ouros, mas que se descobriu, por mero acaso, ser apenas eficaz a 100% entre peixes e leões, e em semanas ímpares de quarto crescente, tendo Miriam acabado por praticamente oferecer as respectivas royalties a uma colega cartomante de Beja especializada nesta combinação de signos e que já não comia uma refeição decente desde o natal de 83. No entanto, inesperadamente, Miriam começou a ser temida dentro da confraria dos capricórnios por, dalguma forma, lhes esbater a fama e reduzir o efeito aterrador que já se acostumavam a criar e manter à sua volta.
Num certo dia de lua cheia, uma capricórnia bem pura, de seu nome Elvira, convenceu um peixinho ingénuo, de seu nome Rogério, a fazerem uma sessão de cartomancia recreativa com Miriam, a fim de estabelecerem uma agenda de encontros no âmbito da alimentação e bebidas, mas sem descurar, copulativa e concomitantemente, o departamento mais hormonal. Depois de lançadas as cartas, Miriam aconselhou-lhes as quartas-feiras de quarto minguante em meses pares, desde que Júpiter não estivesse a fazer cavalinho com Vénus. Tal iria acontecer no verão de 2058, e até lá a dupla Elvira e Ricardo deveria abster-se de consumir álcool em conjunto e os contactos físicos deveriam limitar-se às zonas anatomicamente temperadas, jamais aventurarem-se pelas zonas tropicais, sob pena de esgotarem o plafond da Médis. Uma tamanha receita de abstinência foi fatal para a fama de Miriam, que rapidamente ficou conotada com uma seita de castradores da Birmânia, e viu a clientela reduzir-se a um casal de lésbicas frígidas, nascidas na noite de natal, e que nunca tinham superado o trauma infantil de verem esfumar-se anualmente uma sessão de presentes, pelo capricho do calendário, ou do Zodíaco, ou das fases da lua, ou o caralho.
Miriam acabou por perceber desta forma que os capricórnios, ao contrário de tudo o que levava a crer, não permitiam estabelecer-se um plano de negócios estável para a cartomancia, e acabou por dedicar-se aos aquários, que vêm logo a seguir, e que, já se sabe, filtraram criteriosamente a teimosia e fazem-na parecer-se a uma sofisticada mistura de convicção e bom senso.

Corn Flakes

A secção de gaffes do think tank de Sócrates reune de emergência este fim de semana a fim de discutir a política de gaffes para o exigente período eleitoral que se aproxima. Tendo perdido Pinho, o principal fornecedor de material de primeira, com o crescente apagamento de Lino e face à entrega da alma ao criador de Candal, o PS terá de encontrar sangue novo para renovar o seu capital de gaffes, não podendo deixar todo o orçamento entregue a José Lello e Ana Gomes. A gaffe assume crescentemente na política uma posição de relevo, e todos sabemos que muito do futuro se pode jogar numa gaffe certeira. O PS sabe o quão arriscado poderá ser deixar gaffes nas mãos de arrivistas, amadores, ou de meros curiosos em lapsos, ou mesmo biscateiros de calinadas.

A fim de precisar os conceitos, hoje o dicionário não ilustrado, nas suas entradas nºs 1311 a 1314, dá um primeiro passo, que, sendo um pequeno passo para este blog, será um grande passo para todos vós.

Gaffe – É o instrumento mais nobre da actividade política. Reflecte um estado de espírito total, e consegue condensar numa sofisticada mistura de simbologias um pensamento global sobre a realidade. Articulando o inesperado com o inadequado, nas porções certas, permitem ao político fazer da sua mensagem uma autêntica lufada de ar fresco no monolitismo ideológico dos tempos que correm, e transportam-no para o patamar dos grandes arquitectos de imaginários colectivos, que num toque de midas podem transformar o que poderia não passar duma mera atitude polémica numa verdadeira catedral de catalizadores patrióticos.

Lapso – Aqui estamos perante o clássico jogo entre o consciente previsível e o inconsciente aleatório. Deste encontro podem surgir alegorias de valor incomensurável que permitem revelar muito mais que uma mera história de recalcamentos de poder ou submissão. O imaginário nacional constrói-se precisamente destas pérolas do deslize, e podemos mesmo dizer que são o adereço que dá o brilho a um país que possa viver em estado de tanga há muitos anos. É sempre no enfiligranamento de uma cadeia histórica de lapsos que se projecta a imagem do verdadeiro homem novo, aquele que se alimenta apenas da imagem que quer para si próprio - o cidadão do futuro. O lapso será sempre a pedra de toque do político, para demonstrar que pode ter um pé no seu jacuzzi, mas as suas preocupações estão sempre no bem estar diário de todas e todos, incluindo coçarem-lhe as costas.

Fífia – É nesta categoria dos instrumentos de intervenção cívica encontramos muitas vezes aqueles pequenos toques que podem fazer toda a diferença. Este tipo de escorregadelas cirúrgicas deve ser utilizado nos momentos em que a atenção popular é levada a concentrar-se em fenómenos que a apoquentariam, e a função aliviadora de todo e qualquer politico muito lhes deve. O poder da fífia joga-se essencialmente nos momentos que se lhe seguem e pode assistir-se perfeitamente ao seu esvaziamento se não lhe for imediatamente atribuída uma semiótica autónoma. Nenhuma fífia vive apenas por si e precisa de toda uma máquina de suporte por detrás para que se possa tornar num instrumento eficaz de mobilização, sensibilização e, se necessário for, inebriamento colectivo. No entanto, o encadeamento de fífias, ao constituir-se como fio condutor de qualquer politica estruturante, nunca poderá ser encarada como uma sucessão de acasos, e deverá sempre garantir-se que é percepcionada como um elemento de voluntarismo e entrega ao bem comum.

Calinada – Todo o sistema organizado de elaboração de imaginários colectivos necessita de algumas manifestações mais pirotécnicas de significados coloridos, da mesma forma que um empirista precisa duma aberração, ou um idealista precisa duma contradição. Muitas vezes a calinada é a antecâmara duma politica de fífias mais elaborada, e abre o caminho para a eficácia destas. Tida muitas vezes como o parente pobre da gaffística, a calinada tem uma energia que vai muito para além do mero desequilíbrio da plausibilidade e constitui-se muitas vezes como elemento estruturante na personalidade do homo-politicus, e essencial para a sua correcta assimilação pela comunidade. Não existiria verdade sem o conceito de calinada, tal como não existiria Sumol sem o conceito de laranjada.

Nails R Us

Uns dos recantos mais pitorescos da paisagística feminina são as unhas exuberantemente pintadas. Para além das evidentes funções para as quais a morfologia aponta, parece claro que as forças dirigentes da criação (leia-se Deus ou o pirilampo mágico evolucionista) destinaram a estas queratinizadas extremidades um papel singularmente decorativo. Algo a que a mulher chamou imediatamente um figo, e que, depois da orelhinha, se assumiu como o suporte mais procurado para as suas fantasias de cor e luz, e a tornam num autêntico fogo de artifício com pernas, deixando para trás muita passarada tropical, ou peixinho de águas quentes.
No entanto, afigura-se-me que a pintura decorativa de unhas desempenha no universo feminino também uma dupla missão: ajuda a controlar o impulso exibicionista e a manipular a orientação do interesse masculino, que são, como sabemos, os dois calcanhares de Aquiles da feminilidade: gerir simultaneamente a auto-imagem, e o efeito dela em terceiros; a mulher é um puro ser de múltiplas fusões.
Por outro lado, a técnica das unhas pintadas ao conseguir, numa só penada, cumprir um desiderato lúdico e um efeito diversivo – e subversivo - na atenção alheia, permitem à mulher gerir o seu universo fantasioso que tem tudo para a trair, ou pelo menos, para a deixar sem referenciais seguros e previsíveis.
Mas sendo o interesse estético masculino um bem escasso, e muitas vezes algo de natureza quase mineral, a mulher é levada a empolgar-se e a pensar que tem de fauvizar a sua existência, e transformar as pontas dos dedos numa arena portátil sacudida por um paso doble de falangetas. E assim surgem as famosas unhas pintadas de encarnado, um clássico da civilização ocidental, ao nível das colunas dóricas ou das abóbadas góticas, para já não falar nos famosos azulejos em vivendas da beira interior.
As unhas pintadas de encarnado (seja qual for o seu formato) revelam sempre uma mulher em fase de ‘necessidade de domínio’. É aquele momento em que as eventuais inseguranças exigem um acto veemente de tomada de posição; a simbologia é evidente: o sangue acorre às pontas, o coração ficou livre de emoções limitadoras, a melhor defesa é o ataque; o ser objecto confunde-se com o ser sujeito. Uma mulher com unhas pintadas de encarnado é sempre um brinquedo perigoso.
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imagem: capa do último cd dos suecos Hello Saferide