Flaubert & friends

Estava eu tentando entrar num estado de purificação pré-quaresmal, virado para as minhas coisinhas, afastado dos pecados da provocação, da especulação e da indecência, pensando até que o melhor que o homem tem a fazer com as mulheres é olhar para elas como o pescador olha para o seu peixe (imagem praticamente bíblica, atenção), procurando congelar rápido para não se estragar enquanto ainda abanam a cauda, eis que leio de forma, agora reparo, desprevenida – sim não estava preparado para um texto que não fosse em inglês e não tivesse pelo menos 367 linhas (mais que um ano bissexto, portanto) – que para uma mulher o ‘critério seguro para se acreditar num homem depende de ele lhe ter levado a comprar livros’. A amargura começou a apoderar-se da minha alma, céus, jamais tal tinha ocorrido na minha parca (diga-se) experiência com representantes desse género, valha-me Deus, nunca dei conta que alguma mulher tenha comprado, pela minha simples e desgarrada influência, a mais pequena brochura que fosse! E se o que ela diz é mesmo verdade, ó crueldade, e vir a sabê-lo assim de supetão, nem me dando capacidade de reacção, agora que se lixe a purificação, o corpo está continuamente sofrível, a alma a espaços sã e a Quaresma também só começa amanhã. Mas não pode ser, aquilo era certamente só uma figura de estilo, aquilo era só para deixar o pessoal nervoso, assim como eu fiquei, está conseguido, siga, agora vamos é arrepiar caminho, a rapariga é que precisa duma mão, e eu já não faço uma listazinha há uma porção de tempo, servirá como despedida temporária dos pecados do verbo.

Os 10 critérios para aferir se um homem é de confiança:

Primeiro. Homem de confiança desconfia do verso livre. Só descansa a alma na rima e apenas encontra verdadeiramente a paz com o 4 x 4 x 3 x 3 do soneto. E algum cuidado na métrica, sim a métrica pode ter alguma importância, mas parece-me definitivo, homem que mulher queira prezar, ou até amar ainda por cima, tem de saber adormecer no balanço duma rima.

Segundo. Condição essencial para um homem em quem se possa acreditar é ele apreciar com gáudio um valente frango do Baía. Pode ser por entre as pernas, pode ser na sequência dum pontapé na camada de ozono, pode ser na sequência duma bola telecomandada, dum ressalto na nuca do Nuno Gomes, pode ser de qualquer maneira mais ou menos telegénica, mas sempre preferindo que o dito Baía fique com aquele ar de carneiro entre o matadouro e a panela de pressão e já com uma coentradazinha a sair-lhe pela boca. Pode parecer uma condição absurda, mas vão por mim, se Darwin visse a Sport TV nunca tinha ido atrás das tartarugas, por causa da selecção natural bastava-lhe a chamada prova dos frangos do Baía.

Terceiro. Desprezar Proust. Ter escarnecido de Proust em público é verdadeira condição sine qua non para que um homem apresente uma credibilidade decente face a uma mulher. Não basta a displicência, nem a fleuma do alheamento, é preciso um ostensivo sarcasmo mesmo que decorado aqui e acolá com alguma impertinência de erudição envergonhada. Homem com adoração floreada pela memória deve ser sempre evitado por uma mulher.

Quarto. Um homem para ser da máxima credibilidade tem de saber utilizar jaculatórias de pendor religioso como coadjuvantes do discurso. A noção de tempo e cadência certa associada a uma bucha tipo ‘valha-me Deus’, ou mesmo um mais rico e expressivo ‘valha-me Nª Senhora da Agrela’ pode fazer toda a diferença quer num momento de aflição quer de excitação afectiva. Parece-me elementar para quem sabe a via-sacra que lhe tem para propor.

Quinto. Não gostar de pintura abstracta afigura-se-me como um outro conselho básico neste contexto. O homem que nalgum momento veja virtude – mesmo estética - naquilo que se afaste do que a mãe natureza nos brindou poderá a qualquer momento trocar uma humidade (mesmo sem efervescência) ou um pêlo mais eriçado por uma mera combinação mais ou menos colorida de rectas e pontos e curvas. A adesão à desconstrução pictórica do real conduz inevitavelmente à quebra duma ligação ancestral promovida por uma costela, uma maçã e uma serpente.

Sexto. Um das provas eliminatórias para que homem seja reconhecido com fonte de segurança é saber assumir que já cantarolou em tempos músicas do Paul Simon. É um momento difícil neste campeonato da confiança, mas é decisivo. Mas ao chegar ao clímax da pungência penitencial poderá todavia ser dispensado de confessar que chegou a imitar a Art Gargunkel num momento de maior fraqueza. Uma coisa é demonstrar confiança, outra é rastejá-la.

Sétimo. Mas a questão literária parece de qualquer modo fazer bastante diferença em certos gineceus mais sensíveis. Por isso parece-me de elementar bom senso alertar para a questão dos clássicos. Homem que esteja sempre a referir, a conceptualizar, a contextualizar ou mesmo apenas a pontilhar com ténues nuances a realidade socorrendo-se de sujeitos que viveram antes das guerras púnicas e que não chegaram a dar um beijo encostados à torre Eiffel, nem leram a Luxwoman, um homem destes corre sempre o risco de ir para uma sauna e apanhar micoses nas mãos. Eu cá aconselharia a níveis de desconfiança acima da média nestas circunstâncias de apego exagerado a estes tipos que falavam dos Deuses como se estivessem a falar com o Goucha e a Teresa Guilherme.

Oitavo. Aproximo-me agora da delicada questão política e dificilmente me consigo abstrair da elevada instabilidade que pode estar associada às tendências liberais. O liberal vive em constante preocupação: precisa de referências, ora de plateia, ora de palco, precisa de outros que pensem como ele, precisa de rebanho, um liberal isolado é um ser desconsolado. Ora daqui até à revelação de obsessões exibicionistas é um curtíssimo passo. Homem que não sinta aconchego num estado maternal, ou terá sempre saudades da mãe, ou se amantizará com a sogra (mesmo que seja bom a aconselhar livros). É a tal coisa do liberaldinoso.

Nono. Há depois a questão gastronómica. Sendo que se deve manter o bom critério de estar sempre de pé atrás em relação a homens que não tenham gelo em casa, parece-me mais decisiva a situação do sal. Um homem capaz, digno, fiel aos seus princípios, respeitador dos seus fins, que inspire a tal de confiança, que nunca se tenha deixado envolver pelos insondáveis mistérios da alma russa, nem tenha ouvido os Génesis de forma exaustiva, um homem assim com essas prerrogativas jamais, repito, jamais sabe a quantidade certa de sal que deve levar qualquer cozinhado. Ter a chamada ‘percepção do salgado’ é inevitavelmente um sinal de decadência da carne no género masculino.

Décimo. Aqui, e como estou a encerrar a lista, hesito entre dois temas clássicos: entre a importância do uso do vernáculo e a impossibilidade dum homem dançarino ser de confiança. São mais duas questões fracturantes mas como não é a polémica que pretendo alcançar, fixar-me-ei assim numa outra questão: a tendência para fazer listas. Absolutamente a evitar homens com esta tendência, então se forem de paleio com fácil arrastamento para patati-patata-ismo é imprescindível que se acautelem; mesmo que as arrastem para livrarias em convulsões peri-orgásmicas.

Isto já são onze horas, era hoje que me tinha proposto ver decentemente pela primeira vez aquela coisa do CSI, falhei mais uma vez, os gajos já descobriram aquela merda toda sem eu ter percebido, e continuo sem conseguir acompanhar metade das conversas cá em casa. Mas foi por uma boa causa. É sempre bom entrar na Quarema deixando uma causa justa cumprida, mesmo que seja roçando o pecadilho da alarvidade de expressão.
The wonderful world of the unconscious

‘Quanto mais civilizado é o país mais fundo é o recalque’

de Arnaldo Jabor ( lido hoje, em citação, no jornal ‘A BOLA’ a propósito do Carnaval brasileiro)
upgrade com ®

Patati-patata-ismo – Estilo próprio de gajos que, não sabendo nem valendo nada de nada, vivem da força inesperada do atrevimento e da sinuosidade dos jogos de palavras para disfarçar a sua incompetência como verdadeiros encantadores de serpentes.
(e agora um hors-série)

Sobre o 'patafisiquismo

Com ortografia recomendada pelo autor, ie, precedida de apóstrofo, a fim de evitar o trocadilho fácil:

A 'patafísica é a ciência das soluções imaginárias que confere simbolicamente aos contornos as propriedades dos objectos descritas pela sua virtualidade.

Alfred Jarry, "Gestos e Opiniões do Dr. Faustroll, Patafísico" in "Eflúvio Magnético", 1/3 de João Maria Gusmão e Pedro Paiva, 2005 (Galeria Zé dos Bois)
Atormentam-me os grandes problemas do nosso tempo, os realmente fracturantes; hoje o dicionário não ilustrado vem com o gesso para segurar os conceitos mais galdérios. ( entradas 1162 a 1172 )

O Negacionismo – Género literário que só se afasta do lirismo porque continua limitado por alguns tiques de causalidade. Metodologicamente apresenta vantagens em relação às tradicionais lavagens ao cérebro porque se poupa em detergente e alucinogénios.

O Brokenbackianismo – Quando as malucas saem da gaiola e caem de chofre na pradaria fica demonstrado que já nem a ganga, nem os cavalos, nem as pernas arqueadas dão a garantia de antigamente.

O Escarletejohanssonismo – Registo de estética pré-decadente, que antecipa certamente o aparecimento de novos maneirismos, por forma a reformar este renascimento das gajas labialmente carnudas, sorriso xanaxizado e curvas nabokovizadas.

O Afirmacionismo – Corrente histórico-filosófica que substancia a compatibilização perimetafísica do ‘melhor isto que nada’ com o ‘que tem que ser tem muita força’. Os defensores do ‘antes isto que sermos enrabados’ pertencem a uma dissidência homofóbica.

O nuclearismo – Técnica que se baseia em cozinhar átomos sem lhes fazer primeiro uma vinha de alhos e acaba a valorizar o café sem querer ficar refém das borras.

O goldensharismo – Técnica do regulacionismo que actua no mercado como a cartelização ou publicidade enganosa: é preciso ir primeiro alguém para o hospital com uma intoxicação para que outro alguém se lembre de pôr umas letrinhas pequeninas no rodapé. É o sonho de midas de qualquer capitalista em crise minoritária.

O crítico-literarismo – Actividade de registo circular e psicopático que apenas difere dos carroceis de miúdos porque nela coabitam os coices com as lambidelas ao rabo do cavalo da frente.

O estou-me-a-cagar-para-istismo – Método instrumental da filosofia política, em que a sociedade faz de loja de brinquedos e o indivíduo de elefante. As instituições fazem sempre de caixa registadora.

O Jornalismismo – Movimento pós-psicanalítico que valoriza a livre associação de notícia como forma de gerir a realização do desejo fora do ambiente onírico.

O Sambismo – Corrente política que defende uma democracia representativa em que todos podem saracotear o rabo, mas delegam nalguns o movimento dos pés.

O digest-ionismo – Face à realidade se nos apresentar como a comida num prato raso à cegonha, são por isso abençoados os que no-la descodificam num condensado servido nas jarras cristalinas dos lugares comuns.
smsantologia

‘A primavera vem. E tudo, à sua maneira,
Floresce. Mas ele está longe; não presente.
Enlouqueceu; pois são bons demais
Os génios; é dele agora celestial colóquio’

Holderlin, ‘Ganymed’ ( trad. P. Quintela, 1947)
Conto com teoria para dar algum desconto
Entretanto, como quem não quer a coisa, ele amava-a, e ela sucumbia àquele sentimento de aparência superficial.

A concentração no acto de amar é de lesa magestade, só os amores desfocados sobrevivem, só os amores que não querem ver tudo têm possibilidade de sucesso. Conhecer quem se ama é uma leviandade.

Ele abraçava-a sempre despreocupadamente, parecia não precisar de demonstrar força nem segurança no seu amor, corria esse risco porque ela só fazia fé de amores desprendidos.

Os amores são essencialmente utópicos, precisam de viver em lugares que não existem, só se alimentam verdadeiramente de pequenas contradições, e quando as coisas começam a fazer sentido é porque a posse começou a ser mais importante que o usufruto, aparentando o contrário.

Ela só se sentia verdadeiramente livre se houvesse a suspeita de que ele a enganava. Mas ele jamais a enganaria porque só nessa prisão encontrava o gozo do amor. A liberdade atrapalhava-o.

Havendo equilíbrio não há amor, há jogo. Havendo virtude não há amor, há negócio. Havendo sinceridade não há amor, há sentimentos nobres. O amor é um sentimento plebeu e é sempre subsidio-dependente.

Eles amavam-se que nem filme. Torturavam-se naquela conta certa que não levava à insanidade, provocavam-se na medida dos seus fragéis poderes de encaixe. Por isso nunca encaixavam: deixariam os legos para as crianças.

O amor é um tema estúpido se não estiver ligado ao desejo. Mas o desejo não é um tema, é um pretexto para uma excitação. Por isso não se deve falar de amor se não lhe chamarmos outra coisa qualquer. O melhor amor é o camuflado.

Ela entrincheirava-se na ilusão de que ele um dia a deixaria. Só a efemeridade lhe alimentava a alma. Ele sabia que lhe seria impossível deixá-la; mas unia-os uma convicção anti-consumatória. Neles tudo era simbólico e tudo era realização.

O finito é o que mais se aproxima do infinito. O amor é uma aberração geométrica pois tende para finito vindo com promessas de infinito. No entanto, é na sua suposta finitude que está a sua grandeza, o seu valor. Nada é mais irrelevante do que aquilo que está feito para durar para sempre. Só dura o que parece feito para se acabar.

Escolheram para eles não viver cada dia como se fosse o último, nem como se fosse o primeiro. Queriam viver sempre nos dias do meio. Mas não por serem os dias da virtude. Nem os do pecado. Eram sim os dias onde a saudade se encontrava serenamente com a esperança.
Fim.
“Há um balanço físico inalterável que se cola ao corpo”

Quando eu andava com aquela tara de desescrever as críticas musicais que por aí ia lendo, (sou tenuemente viciado em ler críticas musicais de gajos que não faço a mínima ideia quem sejam) fiquei com uma frase de alguém pendurada numas aspas que nunca cheguei a usar (e agora já nem sei a que propósito vinha): «graves generosos, linhas de baixo azedas, dinâmicas rítmicas progressivas, vozes cavernosas». Isto tudo apenas para vos dizer que há dias em que gostaria de ficar retido na «transcendência de longas suites nascidas nas margens dum jazz eléctrico de quietude ascética» o que basicamente significa: estou deveras inebriado mas mobilizado com o investimento da Portucel, porque vai assegurar a nossa liderança europeia nos papéis finos. E a música assim, faz-se luz, já é outra coisa para os meus ouvidos: somos de facto um país que se transcende nas dinâmicas rítmicas progressivas nascidas nas linhas de baixo azedas e na margem da quietude ascética dos graves generosos. Isto já não é Fátima, Fado e Futebol, agora, como se diz hoje numa crítica no Público, somos todos ‘Funk, Funk, Funk!’; e arreda para lá com as vozes cavernosas, que nós temos um papel fino a desempenhar no mundo. Mas, como acrescenta o crítico, agora somos um país ‘que se cola ao corpo, (…) no final toda a gente escorre suor’. A ONU também deveria criar uma agência para os países em auto-motivação (com departamento para depressões pós funk).
O título era ricamente sexualizável, sim, mas temos de nos ir poupando nos pecados da carne, e nem sempre chega enfrascarmo-nos em pistachios.
Like sex & drugs

Ouvi o nosso presidente charneira (fez a ligação de Soares e Cavaco) dizer que «Em política tudo se faz por aproximações sucessivas»
À medida se disse, aliás cediço, perdão cedido:

Tema: nenhum de princípio, algo irá aparecendo

Apenas reprimindo a ansiedade de comer uns cacahuetes, chamando à colação monstros sagrados da arte e da história e procurando produzir ténues piadolas (rima com gansos patolas, pró caso de alguém querer aproveitar) matricialmente encadeadas e tudo sem passar as 25 linhas

Neste momento fala Nelo Vingada na televisão, o que é praticamente o cruzamento poético ente um Vitalino Canas e um Narciso Miranda, e isso leva-me a constatar uma progressiva despavesização e consequente larkinização da vida intelectual. Apesar de ir remexendo e reciclando ser em geral bom, este movimento denota uma certa degradação da entranha pensante. Larkin é um poeta banalíssimo, uma espécie de Victor Constâncio das letras que usa o artifício inerente à língua dos gajos de Liverpool que é menos apaneleirada e dá logo um ar mais metafísico e ilusoriamente menos enconado à coisa poética. Não sei se repararam bem nesta expressão: ‘coisa poética’; é praticamente um pathos (mas não infectado com a gripe) a roçar num nostós. Arrepiando caminho, no essencial trata-se de trocar um gajo que escreve ‘molte volte ritorna nel lento risveglio/quel disfatto sapore di fiore lontani’ por outro que (e note-se, sem que ninguém lhe fosse ao trombil) escreve arrogantemente ‘ what are the days for?/ Days are where we live.’ (são os únicos versos que sei, graças a Deus). Ora basicamente, isto é passar de Caravagio a Kandinski sem passar pela casa da partida, ou seja sem apreciar um rabo boticceliano. Mas a história ensina-nos, sim a história ensina-nos a espaços, que, tal como Gabriel Alves bem notou, o factor surpresa é essencial nas bolas paradas, mas lá está, um tipo com as bolas paradas tem tendência para acumular demasiada hermenêutica nos canais peri-prostáticos, e por isso eu se tivesse frangos para criar neste momento, vendia-os já pequeninos como codornizes e dedicava-me a recitar Larkin, enquanto petiscava uns jacobinos fritos ao jantar, até porque, já se sabe, todos podemos um dia ser vítimas dum qualquer robespierre se não estivermos atentos ao factor surpresa, claro. Não se esqueçam do Pavese pela vossa rica saúde.
Conto da escritora careca

Era rica de verborreia colorida mas sabia-se falha de génio e deficitária de experiências; fez então um pacto vampírico com a vida dos outros, iria sacar-lhes tudo o que pudesse, iria consumir as alegrias e as tristezas alheias no fogo na sua imaginação de mulher-a-dias que trata das unhas em salões concorridos, com tudo programado em frases entrelaçadas por trejeitos literários de fácil corrimento. Tornou-se especialista em escutar conversas mais ou menos amorosas, ganhou torcicolos a ouvir telefonemas em surdina, pagou fortunas por desabafos de traições choradas e chegou a oferecer o corpo para provocar uma infidelidade apanhada em flagrante, precisava do que os outros viviam como do pão para a boca, como a frigidez de alma precisa dum falo sebastiânico; mas ela estava sempre na trincheira da sua escrita, ora medíocre, ora sofrível, ora empolgante, conforme a fome de curiosidade da sua clientela de cordel, conforme o cio das suas gatas de estimação, mas sempre uma sanguessuga do que os outros sentiam, ou do que julgava, do que elucubrava que sentiam. Chegou a ter fornecedores especializados em vidas de faz-de-conta só para ela se inspirar, chegou a tentar o disfarce pela via do cruzamento com as grandes epopeias clássicas, chegou a tentar o cruzamento com as letras de grandes canções, mas acabou por descobrir que o seu caminho era mesmo o escrevinhar compulsivo de palavras espoliadas que iam ganhado o efeito desejado à medida que a humidade lhe arrepanhava os pêlos encaracolados do desejo que nunca se cumpria; viciou-se no roubo de dramas, no roubo de amizades, no roubo de vidas, de maternidades, de paternidades, e sobrevivia nesse entretenimento de palhaço pobre enxertada em mulher de esquina, que fornicam com o riso dos homens que passam. Mas eram estratégias fatais, e um dia foi apanhada numa ratoeira, o tiro foi forte demais, e no recuo voou-lhe a cabeleira com o cuspo a inundar-lhe a mioleira.
Profeta sem povo

VPV, historiador e portanto adivinho escreve:

"A fortuna posterior de Fátima deve muito à sobrevivência do regime até 1926 e à visão moderna da Virgem, que apareceu perto do Entroncamento, isto é, na confluência da vias férreas do centro e do norte do país. Tivesse ela aparecido em Tavira ou Bragança, dez anos mais tarde, nunca se teria sabido."

Não sei porque não foi mais longe:

A fortuna posterior de Cristianismo deve muito à sobrevivência das termas no império romano e à visão moderna dum tipo meio hippie que apareceu ali prós lados das ilhas gregas, isto é, na confluência entre as monções e a máfia siciliana, tivesse ele aparecido no Seixal ou em Esposende, uns 20 séculos mais tarde, nunca se teria sabido porque o VPV não o citava nas crónicas.
O sagrado bagaço

Por muito que nos custe reconhecer todos temos um pouco de Inês Pedrosa dentro de nós. É aquela coisa que irremediavelmente nos faz querer tudo e nada ao mesmo tempo. Gostamos de saber que obtivemos as coisas com esforço, mas também gostaríamos de lá ter chegado sem que nos custasse nada, gostamos de apreciar a diferença nos outros mas gostamos que os outros sejam iguais a nós, não sei se estão a ver, espero bem que sim porque agora já sou eu que nem estou a ver nada, lá está, é aquela tal coisa, um tipo vai atrás duma ideia mas depois começa é a gostar das ideias todas, ora temos valores a mais ora temos valores a menos, ora somos todos cartoonáveis, ora afinal somos todos descartáveis, ora já somos todos filhos amados de Deus e do direito natural e sem nós e os batráquios o mundo nunca seria possível, esbatidas as derivas marialvas e renovadas as louças das Caldas, eu bem queria levar isto a bom porto mas não consigo, foge-me logo a imaginação para todas as injustiças que se estão a cometer no mundo, e isso enerva-me e tomo logo de ponta a globalização, mas depois, e isto sim é da ordem do caraças mesmo, globalizados é que é normal, então isto foi feito mesmo assim, nem plana é esta merda, palavra d’honra que se ainda fores a tempo, vê lá ó Altíssimo, ainda fazias isto uma grande lezíria, plano, planinho mesmo, todos numa grande corrente de mãos dadas, touros e forcados, em estilo cercadura, mas bolas só essa ideia já me arrepia, é melhor manteres mesmo tudo redondinho, assim, quando pensamos que já se lá chegou afinal reparamos que isto nunca mais acaba, mais uma volta mais uma corrida, mas se calhar um dia acabará, é a tal coisa, a gente não sabe ao certo as linhas com que se cose e depois ou é a dúvida ou é o marasmo, não há meios termos, isto não está nada bem feito, temos de dar as mãos, espera, esta imagem já usei, não há volta a dar, é o que eu digo, quanto mais se nos fugimos mais se nos encontramos, toca de beber mais um copinho, peço deferimento.
smsantologia

«Filho de Zeus! Junto a ti
Me vou pôr, afogueado,
O Olimpo é a tua presa,
Vem reparti-la comigo!»

‘An Herkules’, Holderlin, trad. de Paulo Quintela (1947)
O exemplo dum blog que acrescenta: de visita às prateleiras esquecidas IX

Do subcapitulo : ‘Haréns; outras condições e possibilidades’

‘Um homem tem direito a ter mais de uma mulher desde que os seus recursos financeiros lhe permitem dar esse passo. (...) A capacidade física e o vigor são também, por si mesmos, uma outra condição que o homem deve possuir.(...) «Se o homem reunir à sua volta um número de mulheres e , em consequência disso, for incapaz de lhes dar plena satisfação sexual, e se resultado disso essas mulheres forem levadas ao adultério e à promiscuidade, esse homem é responsável pelo pecado desses actos ilícitos»’

in ‘Os direitos das mulheres no Islão’ de Murtadã Mutahhari , ed Islâmica ALQALAM, 1988, nas pg 381/382
O exemplo dum blog que acrescenta: de visita às prateleiras esquecidas VIII

Do subcapitulo : ‘Uma vantagem para as mulheres em matéria de finanças’

‘ Para uma mulher permanecer mulher, isto é, para manter a sua beleza, a sua elegância e orgulho, necessita de uma vida mais confortável, pacífica e descuidada, com menos preocupações materiais. (...) É evidente que uma mulher que não tem paz de espírito e que não arranja tempo para cuidar de si, também não será uma fonte de encanto e felicidade para o marido’

in ‘Os direitos das mulheres no Islão’ de Murtadã Mutahhari , ed Islâmica ALQALAM, 1988, na pg 218
O exemplo dum blog que acrescenta: de visita às prateleiras esquecidas VII

Do subcapitulo: ‘O direito da mulher na poliginia’

‘ Se um homem abandonar a vida conjugal pode satisfazer pelo menos metade das suas necessidades, mas para uma mulher, a vida de família representa mais do que essas coisas. Se uma mulher deixa o ambiente familiar, não consegue, entregando-se à promiscuidade ou ligações amorosas, satisfazer minimamente as suas necessidades materiais e espirituais (...) E após estas duas observações: 1. excesso do número de mulheres; 2. o direito ao casamento é um direito natural, poderemos concluir que (...) só através da lei da poligamia este direito natural é assegurado’


in ‘Os direitos das mulheres no Islão’ de Murtadã Mutahhari , ed Islâmica ALQALAM, 1988, na pg 348
O exemplo dum blog que acrescenta: de visita às prateleiras esquecidas VI

Do subcapitulo : ‘Regra da natureza’

‘O amor de uma mulher é bom quando é reacção ao amor de um homem, mas não quando é instigador desse amor. Um amor incitante por parte de uma mulher, isto é um amor que começa na mulher sem o homem a ter desejado, está destinado a soçobrar, e é causa da diminuição de dignidade da mulher.’

in ‘Os direitos das mulheres no Islão’ de Murtadã Mutahhari , ed Islâmica ALQALAM, 1988, na pg 197
O exemplo dum blog que acrescenta: de visita às prateleiras esquecidas V

Do subcapitulo ‘Sentimentos mútuos’

‘O homem quer tomar posse da pessoa da mulher, e exercer o domínio sobre ela, e a mulher quer influenciar o homem através do coração dele. O homem sente desejo de abraçar a mulher e a mulher tem o desejo de ser abraçada’

in ‘Os direitos das mulheres no Islão’ de Murtadã Mutahhari , ed Islâmica ALQALAM, 1988, na pg 166
O exemplo dum blog que acrescenta: de visita às prateleiras esquecidas IV

Do subcapitulo: ‘Faz parte do instinto do homem tomar a iniciativa e requestar e faz parte do instinto da mulher ser fonte de atracção e agir com auto-disciplina’

‘A natureza impregnou a mulher com a disposição de uma flor e fez do homem o rouxinol, e como a luz atrai os insectos assim a mulher atrai os homens.(...) a mulher está instintivamente predisposta a exibir-se (...) e é contra a honra e respeito de uma mulher correr atrás de um homem e cortejá-lo. (...) A função confiada à fêmea é solicitar a atenção com o devido auto-domínio e reserva, e assim capturar o coração do sexo forte e aceitar o macho pelo terno consentimento do seu coração, e desta forma levá-lo a submeter-se de boa vontade às ordens dela’

in ‘Os direitos das mulheres no Islão’ de Murtadã Mutahhari , ed Islâmica ALQALAM, 1988, nas pg 15/16
O exemplo dum blog que acrescenta: de visita às prateleiras esquecidas III

Do subcapitulo: ‘O estatuto natural do homem na vida de família’

‘A diferença entre homem e mulher reside no facto do homem necessitar da presença da mulher, ao passo que a mulher precisa do coração do marido’

in ‘Os direitos das mulheres no Islão’ de Murtadã Mutahhari , ed Islâmica ALQALAM, 1988, na pg 266
O exemplo dum ‘blog que acrescenta’: de visita às prateleiras esquecidas II

Do subcapítulo: ‘O harém no mundo actual’

‘Se o herói das «Mil e uma noites» erguesse a cabeça da sepultura e visse como é possível toda a espécie de divertimentos e futilidades e como as mulheres hoje custam pouco, nem sonharia em fundar um harém, com todas as despesas e desvantagens inerentes. Agradeceria ao ocidente ter-lhe poupado todos os incómodos de manter um harém.’

in ‘Os direitos das mulheres no Islão’ de Murtadã Mutahhari , ed Islâmica ALQALAM, 1988, nas pg 47/48
O exemplo dum blog que acrescenta: de visita às prateleiras esquecidas I

Do subcapitulo: ‘Um homem é escravo da sua paixão e uma mulher é cativa do seu afecto’

‘O profeta, o divino psicologista, expressou claramente esta verdade há catorze séculos. Disse ele: «Uma mulher jamais deixará que se apaguem no seu coração as palavras de um homem que lhe disse :’amo-te’»

in ‘Os direitos das mulheres no Islão’ de Murtadã Mutahhari , ed Islâmica ALQALAM, 1988, na pg 63
Danças sem véus

"Quem és?"

A esta pergunta fundadora, que sintetiza o desejo de conhecimento de todos os amantes e para que a Psique de Apuleio procurou resposta, pagaram-lhe os deuses com vulnerabilidade e efémero. Há uma diferença, subtil é certo, entre o reino do desejo e o do amor: o primeiro pôe ênfase no sujeito que deseja, o segundo no objecto desejado. Ao invés do desejo, o amor, sendo o esforço de igualdade entre os que são diferentes, só se pode dar entre iguais. E ao acarretar a necessidade de protecção do que nos é infinitamente valioso, força-nos a abandonar o reino do desejo para entrar no do amor.

Quando, para entreter as criancinhas, Madame de Beaumont recriou a versão água-açucarada, recorrentemente adaptada ao cinema nos nossos tempos, do mito grego chamou-lhe 'A Bela e o Monstro'. À semelhança do mito grego, também no provérbio árabe sobre o efeito da visão que trava a mão da Besta em jeito de prenúncio da sua morte após olhar a Bela, nenhum dos dois deve tentar saber quem é o outro. E se como dizia Chesterton, que acreditava tornar-se 'amável' o ser humano que é amado, a forma de amarmos alguma coisa é compreendermos que podemos perdê-la, então a desocultação integra desde logo o duplo risco do castigo da posse e, nessa medida, a incorporação da resposta seria a expressão última da impossibilidade do amor.

Um paradoxo, uma duplicidade, um véu que oculta sem cobrir? Como nos teus contos, em que nada é o que parece e nos forças a determo-nos para que escutemos para além de ti, no reino do amor tudo se passa como se houvesse alguma coisa intocável nos seres que amamos, alguma coisa de que não devemos apropriarmo-nos. E o amor fosse aceitar essa restrição alimentada por igual de presença e de renúncia e fazê-la conviver com a brevidade de um olhar capaz de, resolvendo a desigualdade, impôr a semelhança. Para restituir a igualdade impossível, nas histórias infantis o príncipe tem de mudar - como se morresse - antes que a última pétala caia e nos mitos Zeus dá a Psique o dom da imortalidade para que ao mudar se iguale.

E se a força igualadora fosse capaz de transformar a tranquila aridez do testemunho da vontade na inquietante doçura sob que se oculta a renúncia? Talvez ficasses a olhar para o fundo do cálice onde se projecta uma das mais amargas e doces verdades com que te confrontarás enquanto Homem: a que te ensina ser o amor um bem que não poderás obter em vida e a mesma que te pergunta, ao fundir fracasso e tortura no instante de vitória, se não me tendo serás grande suficiente a ponto de fazeres caber o meu coração na palma da tua mão. E 'ter' é um dos conceitos mais representativos da nossa débil condição e ao mesmo tempo um dos seus conceitos mais fortes e mobilizadores.

E apesar de nada ter a ver directamente com este post, ele fica bem dedicado à MC do Jardim de Luz
Comam fibras, muitas fibras.


É interessante verificar ( analisar é já enfadonho) algum ‘fascínio’ que o novo Papa exerce em não-crentes-de-matriz-intelectual-conservadora ( foi assim a definição mais jeitosa que encontrei). Eu tenho poucas declarações de interesses a revelar aqui: sou apenas católico apostólico romano, leio o que o cardeal Ratzinguer escreve há carradas de anos, sempre preferi a Sta Teresa, o Dostoievski e o Hamlet, e gosto mais de uma patuscada de pasteis de bacalhau com arroz de tomate do que da reflexão (cristã ou não) em torno da história cultural da Europa e do cálculo matricial judaico-cristão do nosso totoloto civilizacional.

Antes de tudo note-se: o Catolicismo sempre se ‘fundou’, ‘aprofundou’ e ‘evoluiu’ no equilíbrio entre um debate doutrinal forte, uma espiritualidade rica e plural, e uma economia de incertezas e mistérios.

Apelar às bondades culturais da profundidade teológica é uma moda intelectual recorrente e muitas vezes vem associada à tentativa de ‘menorizar’ o valor cultural da crença não racionalmente estruturada (não estou a dizer justificada); agora já nem me lembro bem o que queria vir para aqui dizer, certamente irritado por qualquer coisa que li ou ouvi no intervalo entre dois yogurtes de fibras, mas eu adoro sentir-me irritado, se calhar vou beber mais um, e de caminho cito uma passagem da 1ª encíclica de Bento XVI, sobre a qual até já estava a parecer mal não dizer nada (ainda o patriarcado me tirava o patrocínio): «A força divina que Aristóteles, no auge da filosofia grega, procurou individualizar mediante a reflexão, é certamente para cada ser objecto do desejo e da paixão (...) mas ela mesma não necessita de nada e não ama, é somente amada. Pelo contrário, o único Deus em que Israel crê, ama pessoalmente. Além disso o seu amor é um amor de eleição: entre todos os povos, Ele escolhe Israel e ama-o – mas com a finalidade de curar, precisamente deste modo, a humanidade inteira. Ele ama, e este seu amor pode ser qualificado, sem dúvida, como eros, que no entanto, é totalmente ágape também». Não sei se estão bem a ver. Isto é forte (ou fraco) demais para quem quer encontrar principalmente um denominador cultural ou fideista no cristianismo, e ainda mais para quem nem toma atenção a que a Igreja foi edificada sobre a cabecita dum dos apóstolos que aparentava menores capacidades para ser modelo ou cátedra do que quer que fosse, o tal Pedro que O havia de negar três vezes. Uma doutrina firme e dura e ‘fechada’ tanto pode funcionar como arma de arremesso como de escudo para uma alma. Tudo depende da sua predisposição e da elasticidade dos movimentos das fibras intestinais. Acreditar é uma mucosidade e amar é um espasmo.

O passado, o presente e o futuro do Cristianismo, do Catolicismo, será sempre essa misteriosa Odisseia de reciprocidade de amor entre dois seres desiguais. Demasiado viscoso para as novas sociologias comparadas. E a Igreja será sempre ¼ perturbação ¼ consolo ¼ empolgamento e ¼ organização tanto para quem está aparentemente dentro como para quem está aparentemente fora.
O bate-chapas de civilizações

As civilizações chegavam-lhe num mísero estado a reboque da empresa ‘das clivagens culturais’; os pneus apresentavam-se meramente recauchutados por uma tal de ‘diálogos inter religiosos’, franchisada à pressa da casa mãe ‘La ecuménica’, (em pré falência por estar sempre a mudar de colecções à pressa) e com tanto airbag informativo activado nem se conseguia olhar bem lá para dentro.
Não se lhes poderia rebarbar muito, há ligas muito sensíveis, e como a clientela também já desconfia de tudo não se deveria abusar dos polimentos; mas o importante era manter o chassi com o menor empeno possível para não ir parar tudo ao ferro-velho. Os gajos das seguradoras não largam a porta da oficina, chiça, tanto interesse por chapa de civilização amolgada. Por isso é que ele tinha sempre este desabafo: tanto trabalho a orçamentar e acabam quase sempre a vender isto às peças porque assim ainda lhes rende mais; e quem se safa em qualquer ocasião são os tipos dos reboques, vão tagarelando, andando e cobrando.
Mas bom, bom, são os choques em cadeia; bloqueiam logo a estrada e há muita civilização mirone que vai levando uns toques ligeiros por tabela. O centro do negócio está na neblina, o óleo na estrada não chega para montar uma estratégia. E ele há modelos, valha-me Deus, parece que foram feitos para bater. Mas enquanto aquelas civilizações desenhadas a cad-cam só com uma batidelazinha até dá gosto ir-lhes alisar a chapa, há outras que já andam batidas há tanto tempo que nem se sabe por que ponta lhes pegar.
smsantologia

"Never seek to tell thy love,
Love that never told can be;
For the gentle wind doth move
Silently, invisibly. "

William Blake, Love's Secret
The house of the setting sun

(Em memória de um muito 'teu' poema de Blake, a (des)propósito de uma canção dos 'Animals' e acerca do cumprimento das promessas que não fiz)

Habituado a ganhar, um hábil manipulador abrigado na fatiota 'griffée' da perfeição do seu curso (ou será percurso?) de condução defensiva e evasiva, espanta-se, nos jogos que lhe propõe, com o absurdo da submissão que ela ostenta como um troféu de perda. E persiste em ignorar o óbvio naquela aparente ausência das vértebras moralistas e anquilosantes susceptíveis de provocar torcicolos nas escolhas. Tão diversos os seus diplomas de vida quantas as regras do jogo, vê-a largar sobre o pano verde dos dias cartas sem nexo. Não se defende das (ou nas) suas mãos, enfrenta-as. Não se defende da (ou na) sua boca, enfrenta-a. Não se evade das suas palavras, fica. Não se evade dos seus esquissos, fica. Lendo-o, escutando-o, sentindo-o, enfrenta-o e fica. Em paz na teia cujo fio dúctil ele vai desenrolando até ao dia em que, se ao pedir-lho, muda, souber chamar-lhe puta como se a amasse, ela lhe dê, na troca final de naipes, "o fim de um cordão de ouro" (*) guardado na manga. Para que o "enrole numa bola apenas e o conduza às portas do céu" (*), "como um testemunho de profundo e afectuoso reconhecimento" (**).

(*) Excertos de "Jerusalem", William Blake em "The Complete Poetry & Prose of William Blake" (trad. e adaptação pessoal)
(**) Da dedicatória de Marcel Proust a Gaston Calmette em "Du côté de chez Swann" (trad. pessoal)
smsantologia

“Orgulho e disputa, hei-los destruídos.
Mudos o logro e a mentira cega,
Bem separadas a luz e a treva,
Puro o santuário calmo da Verdade»

Holderlin, trad. de Paulo Quintela (1947)
The anatomy of human destructiveness (*)

(*) É o titulo do livro do psicanalista americano ( nascido na Alemanha) Eric Fromm, (livro esse que nunca li, aliás coisa normal para um tipo preguiçoso que jamais aguentaria um livro com carradas de páginas a explicar exaustivamente os males do mundo e do homem, nessa sua peculiar combinação freudomarxista - half biological/half cultural)

No entanto, este expressivo titulo coloca-nos praticamente no mesmo estado de espírito que as entranhas sob a presença do clister, e reflecte a nossa tendência, tão humana, que nos leva tanto a fazer concursos de construções na areia como a deixar obras para a posteridade.
Ora o que é que tem de especial essa nossa capacidade de combinar energias de sobrevivência com energias de autodestruição. Não sei, claro. Mas fugindo da versão eros-thanatofilica acolho com especial simpatia uma versão mais tipo homem-animal-batoteiro. Como se sabe o batoteiro é o que encarna melhor a fusão manipulador-manipulado: precisa de regras para as subverter, precisa da confiança para sobreviver mas precisa que desconfiem dele para se motivar, é como o predador que precisa de presa e precisa de caçador.

Deus acaba geralmente por aparecer sempre no espirito de alguém de forma pouco ‘sofisticada’, mas ‘surge’ geralmente a fornecer algum equilíbrio a este arrepiante dualismo. É também por isso que a religiosidade da alma é o principal local de todas as batotas. E assim, acreditar em Deus será sempre mais arriscado para a alma do que não acreditar. Porque lhe exige sempre abertura de espírito mas simultaneamente, dalguma maneira, lhe cria barreiras implícitas. Mas também poucas situações apresentam mais abertura que os labirintos ou os abismos. Nem devo ir mais longe, até porque isto agora era mesmo uma mera nota a explicar um post que queria ser só um título. Mas um título dos nossos tempos.
Contos do fiel papeleiro

Todos os dias punha o balcão a brilhar, alguma freguesa haveria de entrar. Passavam-se os dias e o seu olhar empalidecia, o seu papel já a ninguém satisfazia, ora não vincava ora não absorvia, ora rasgava ora entesava, mas ele teimava, tinha uma fé que não acabava, seria o cheiro, pensava, seria o cheiro que iria mudar tudo, um cheiro de comer, carnudo, haviam de ver. Pensou na baunilha, pensou no anis, coçou a virilha, coçou o nariz (não resisti, pronto) e decidiu-se pela maçã; rimava com elan, era o que ele precisava, ele não queria uma multidão, queria apenas uma freguesa que viesse com um bocadinho de tristeza e um olhar de mel, embeiçada no papel, e com alguma devoção, mas com a aquela tristeza viniciousiana do ‘samba da benção’, rezou as suas orações na prevista dose, pôs a tocar os ‘everything but a girl’ , emproou a pose, sacudiu mais uma vez a flanela e sonhou com a entrada dela; a imaginação voou e ela entrou. Era a sua primeira vez, apresentava um andar decidido a disfarçar uma vontade combalida, tipo animal ferido mas com vergonha da ferida. Não seria papel o que precisava, mas dum balcão onde se apoiar, no máximo algo para cheirar, fugia de ombros e de palavras, tinha a alma a decorar escombros e as entranhas enlatadas. Mas ele conhecia as freguesas, as suas fraquezas, o papel que se lixasse, aproveitava-se o cheiro, a música, limava-se assim o receio sem sequer tocar na zona púbica, e agarrou-a nos braços, ela então rasgou um envelope em pedaços e fugiu. Mas já fugiu feliz; ele pensou: chiça, não me apaixonei por um triz; aquele cheiro, aquela música, aquele papel, podia ser miragem, mas era o que lhe aguentava a cartilagem, não conseguia mudar de ramo, precisava daquele balcão, precisava daquela eterna espera, tinha transformado o coração numa esfera, e agora tinha mesmo era de rolar, rolar, rolar, até outra freguesa entrar, e ele finalmente um dia conseguir gritar, abrindo as guelras que nem um pulmão: compras-me uma filha da puta duma resma de papel, ou não?
Na busca do sublinhado perdido

Utilizar a história para descobrir os matizes do presente sempre foi um risco e eu nunca me sensibilizei especialmente por esses métodos de ‘memórias comparadas’. Já quase tudo serviu para explicar e para provocar quase tudo; de Tamerlão a madre Teresa, dum príncipe da renascença a um ditador sul-americano a alma humana já oscilou entre as maiores desordens e as maiores pungências, e as massas humanas já se movimentaram ou já se acomodaram pelas mesmíssimas razões mesmo comendo todos pãozinho de centeio ao pequeno-almoço. Mas de vez em quando faz bem ler o que outros escreveram sobre a maneira deles verem um passado que, no fundo, não é de ninguém porque é de todos. Aqui vai um sublinhado perdido e reencontrado nos ácaros, mas daqueles 'livros de história' que sabem sempre bem ler muitas vezes, nem que seja à toa.

«A energia de um espírito incessantemente absorto num mesmo assunto pôde converter uma obrigação geral numa missão particular; as ardentes sugestões do intelecto ou da imaginação seriam então sentidas como inspirações do céu; o trabalho do pensamento desembocava num deslumbramento e numa visão; e as sensações interiores, o guia invisível, eram descritos sob a forma e os atributos de um anjo de Deus. O passo que leva do entusiasmo à impostura é perigoso e escorregadio; o demónio de Sócrates dá-nos uma lição memorável de como um homem sábio pode enganar-se, de como um homem virtuoso pode enganar os outros, e de como a consciência pode adormecer num estado misto e intermédio entre a ilusão pessoal e a fraude voluntária»

in ‘Declínio e Queda do Império Romano’, de Edward Gibbon, retirado da versão da ‘Difusão Cultural’ de 1995 , II vol, pg 275, no Capítulo dedicado ao ‘Advento do Islão’, e mais propriamente referindo-se a Maomé. Um livro onde os avanços nos primórdios do Cristianismo também são tratados com imensa ‘habilidade’...literária.

Fonte: perso.wanadoo.fr
Todos enfiamos uma burka de vez em quando

“Atentai nos Francos. Vede com que afinco eles se batem pela sua religião, ao passo que nós, os muçulmanos, não demonstramos o mínimo ardor em travar a guerra santa”

É com esta citação de Saladino que Amin Maalouf inicia o primeiro capítulo do seu ‘As cruzadas vistas pelos Árabes’ de 1983 (editado em português pela Difel). E pensava eu quase letargicamente que a história só nos baralha, tanto mais que a nossa condição acaba por estar marcada pelo facto de serem os nossos sentimentos profundos os mais manipuláveis de todos, quando entro pelo badalado programa ‘Prós e Contras’, felizmente já na sua parte final.

Dou de caras com o nosso enciclopédico Ângelo esclarecendo que tudo praticamente se explicaria por um cruzamento mal feito entre fatímidas, seljúcidas, gahznividas e outros mamelucos afins, vai daí o cartoonista António recorda então que uma vez também já tinha usado umas sulfamidas por causa duma ferida e se tinha dado mal, «bem lembrado» diz o Sheik Munir ou Munir Sheik ou Freak Menir agora já me baralho, o profeta sempre disse que se têm de curar as feridas da incompreensão, e uma boa razia tem de ser feita num ambiente de descontracção, vai daí Vasco Rato afirma que ofendermo-nos uns aos outros faz parte das regras do jogo, Ângelo não se fica e chama-o pantomineiro, ao que Rato, Vasco, aproveitando a deixa, riposta dizendo que efectivamente quem apresentasse uma cor de pele entre o Pantone 486C e o 384B deveria ser preso e sujeito aos trabalhos forçados de colorir as pranchas de um tal de Afonso, que, mesmo segurando mal o predicado com o sujeito, lá ia dizendo que se soubesse destas cegadas todas se tinha mas era dedicado a ilustrar livros de dinossauros ou dos descobrimentos, coisa que o bispo D. Clemente (reparem como eu lhe chamei Don, senão as vincentinas ainda me incendiavam o blogue) aproveita para dizer que a nossa civilização, seguindo o seu aperfeiçoamento, se deve construir na base de darmos as mãos na cidade num empenho de corações em dádiva, reconhecimento e tolerância, enquanto isso o cartoonista António ia desenhando preservativos a esferográfica (o nariz era desconhecido, mas já foi desmentido pelo Expresso a hipótese de ser de Júlio Isidro) e agora a minha mulher meteu aqui o bedelho a ler isto e disse-me que não se brinca com estas coisas, eu respondi-lhe que era a liberdade de expressão e então ela respondeu-me que sendo assim a partir de agora os jantares cá em casa às terças e às quintas são por minha conta, ela vai para o cinema com as amigas. Olha, fodi-me.
Memórias de u’ madeixa

Alegrei-te o olhar, tornei-te o mundo indiferente, enchi-te do que não precisavas para que só assim pudesses ter um sufoco que valesse a pena, pequena, flor que nem palmilhaste um jardim, para ficares linda, assim, corrompida que nem um ai Jesus, aviada de dor, mas sem pus, amada, tão amada que nem a vista alcançava, treme, ferve, vá ama-me senão assim não serve, e eu continuarei a doirar-te, a estoirar-te, moira, reluzente, sopra-me essa franja prá frente, pede-me mais, mas pede-me só aquilo que eu não te possa dar, ser útil disfarça, ora um drama, ora uma farsa, ficarei então contigo, és minha e mais não digo.
The world as my bloody intestine know it

“m’espasmo às vezes, outras m’alivio”
de Intestino Grosso

Cézanne nem que vivesse mais cem anos descobriria uma vagina num quadro de Fontana. Mondrian em Veneza seria incapaz de se deslumbrar pela luz nos canais. De kooning jamais se inspiraria nas costas femininas espalhadas por um banho turco e Rubens tremeria de insegurança se lhe pedissem apenas para desenhar um quadrado sem lhe arredondar um dos vértices. Mas mal ficaria se não vos dissesse também que se Shakespeare tivesse lido Baudelaire outro galo cantaria entre Hamlet e Ophelia, que se Heidegger se visse fechado com Platão na caverna Lucky Luke teria passado o tempo a disparar contra a sua própria sombra, e se Churchill conhecesse a agência para o investimento teria antes escolhido Sines para o desembarque; mas não queria deixar também de vos dizer que se Einstein tivesse surgido dum plano tecnológico jamais a energia se daria ao trabalho de variar em função da massa e antes se entreteria a brincar com o molho. Tudo isto, evidentemente, sempre naquela base de que o Capitão Gancho teria sido óptima pessoa se tivesse conhecido o eng Guterres e nem o Roskolnikov teria matado a velha se tivesse lido antes o Amor de Perdição. Tanto mais que, vendo agora bem as coisas, o sonho de Oscar Wilde era ser conservador do registo civil em Lisboa para poder casar duas gajas vestidas de gola alta, dado que não tinha o jeito de Kierkegaard para fazer caricaturas, claro. Isto para não falar de bola: Caneira, remate seco, ligeiramente arqueado, em jeito, pé direito, anichado junto ao poste, se Peseiro estivesse na Guerra de Troia até o cavalo relinchava e aquela porra nem se consumava, mas não deixo de ter pena que o presidente da junta de Favões ainda não tenha tomado posse.
Anotações de Teodora no "sonoro"

[Boca de cena com rio ao fundo: Cofiando a barba de três dias, o Autor reclina-se na chaise-a-longada qual odalisco entre lençóis, à cabeceira há páginas geni(t)ais de cultura universal porque alguém na redacção da Sábado terá descoberto, sabe-se lá como, que a maior parte das mulheres anda insatisfeita com o desempenho dos respectivos parceiros sexuais. A juvenil loira Daisy Milho, de uniforme branco mail'os piercings para garantia do cliché completo, tenta distrair-lhe o olhar do banquete de "prazeres" que traz à mão. De óculos na ponta do nariz, Teodora senta-se, acariciando a Rotring preta entre os dedos, na beira de uma cadeira anónima forrada a azul renteza meia com a chaise; em estenografia saltitante regista, nas costas do programa amarrotado d'"A Colher de Samuel Beckett", o desempenho sussurrante, ou por outra, as palavras bebidas do Mestre de mais uns dias que de outros já que nem o tuteia nem lhe chama James todos os dias.]

Contributos para uma tipologia da cólica

Existem três tipos de cólicas intestinais que inesperadamente correspondem a três grandes tipos de pessoas:

1º tipo - cólicas de tipo tectónico - cada parte do intestino tenta encontrar o seu melhor lugar, o seu poiso mais sossegado, a sua esquina mais relaxada, o seu divertículo ao sol e isso faz parte da sobrevivência do intestino. Existem, por isso, também esses tipos de pessoas, são as que têm de existir, as que se encaixam na nossa vidinha para que as coisas funcionem, como o padeiro, o homem das finanças, o homem que arranja os electrodomésticos, o homem da loja de fotografias. Às vezes temos alguns dissabores com estas pessoas mas isso faz parte da vida em sociedade: uma fagulha no olho, um pingo de solda que acerta ao lado ou uma ligação à terra mal feita.

(emenda-se, não se emenda? bah, fica, com 38,5 saíam coisas mais giras, assim com 36,5 não dá para mais)

2º tipo - cólicas produtivas - são as que, essas sim, fazem com que efectivamente o corpo se dê ao manifesto, que algo se aproveite delas, de que o corpo tire partido da dor e que no fim algo de substancial fique. São as que se realizam pela evacuação. Da mesma maneira existem pessoas que, de facto, são as que trazem valor acrescentado à nossa vida, as pessoas que são família, os amigos, os que nos trazem bons negócios, as que fazem coro connosco a achincalhar lampiões depois de lhe dar três secos, as que nos animam uma viagem ou um bom jantar.

(ficou chocha esta, o que eu queria aqui era o meu pc e não uma marmanja de perna traçada armada em secretária)

Finalmente existe o

3º tipo - cólicas que só servem para nos foder (ora deixa-me lá ver se ela é capaz de escrever isto sem erros) - são o tipo de cólicas que um tipo realmente não sabe para que existem senão para o mero fenómeno de nos provocar uma dor do... do... catarino (não, minha senhora, não é a do feijão mas não adianta especificar mais). Da mesma maneira também existem este tipo de pessoas que não nos servem rigorosamente para nada, árbitros que marcam penalties contra lagartos, gajos que servem mal uma meia de leite, recepcionistas de trombas etc. e que, vai-se a ver, passam por nós sem qualquer outra utilidade que não seja a de nos terem causado um conjuntinho (inútil) de dissabores.

Mas todas são cólicas e todas são gente.

[Ao cair o pano na nódoa: Teodora, reparando melhor no comprimento da saia e inclinação de busto de uma Daisy Milho obviamente condoída com as contracções dolorosas que adivinha no Mestre, risca o nariz ao amparar com a Rotring 'uma furtiva lágrima' e descruza a perna entalando, em local seguro mas muito ao de leve, uma borboleta do cateter rastejante. O Autor agasta-se com um mundo de gente que não compreende a sua necessidade gonçalmtavariana de uma colher como a do Beckett para mexer o cházinho d'ervas anti-espasmódico e promete, como vingança, ir ao barbeiro.]