Conto da escritora careca

Era rica de verborreia colorida mas sabia-se falha de génio e deficitária de experiências; fez então um pacto vampírico com a vida dos outros, iria sacar-lhes tudo o que pudesse, iria consumir as alegrias e as tristezas alheias no fogo na sua imaginação de mulher-a-dias que trata das unhas em salões concorridos, com tudo programado em frases entrelaçadas por trejeitos literários de fácil corrimento. Tornou-se especialista em escutar conversas mais ou menos amorosas, ganhou torcicolos a ouvir telefonemas em surdina, pagou fortunas por desabafos de traições choradas e chegou a oferecer o corpo para provocar uma infidelidade apanhada em flagrante, precisava do que os outros viviam como do pão para a boca, como a frigidez de alma precisa dum falo sebastiânico; mas ela estava sempre na trincheira da sua escrita, ora medíocre, ora sofrível, ora empolgante, conforme a fome de curiosidade da sua clientela de cordel, conforme o cio das suas gatas de estimação, mas sempre uma sanguessuga do que os outros sentiam, ou do que julgava, do que elucubrava que sentiam. Chegou a ter fornecedores especializados em vidas de faz-de-conta só para ela se inspirar, chegou a tentar o disfarce pela via do cruzamento com as grandes epopeias clássicas, chegou a tentar o cruzamento com as letras de grandes canções, mas acabou por descobrir que o seu caminho era mesmo o escrevinhar compulsivo de palavras espoliadas que iam ganhado o efeito desejado à medida que a humidade lhe arrepanhava os pêlos encaracolados do desejo que nunca se cumpria; viciou-se no roubo de dramas, no roubo de amizades, no roubo de vidas, de maternidades, de paternidades, e sobrevivia nesse entretenimento de palhaço pobre enxertada em mulher de esquina, que fornicam com o riso dos homens que passam. Mas eram estratégias fatais, e um dia foi apanhada numa ratoeira, o tiro foi forte demais, e no recuo voou-lhe a cabeleira com o cuspo a inundar-lhe a mioleira.

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