Danças sem véus
"Quem és?"
A esta pergunta fundadora, que sintetiza o desejo de conhecimento de todos os amantes e para que a Psique de Apuleio procurou resposta, pagaram-lhe os deuses com vulnerabilidade e efémero. Há uma diferença, subtil é certo, entre o reino do desejo e o do amor: o primeiro pôe ênfase no sujeito que deseja, o segundo no objecto desejado. Ao invés do desejo, o amor, sendo o esforço de igualdade entre os que são diferentes, só se pode dar entre iguais. E ao acarretar a necessidade de protecção do que nos é infinitamente valioso, força-nos a abandonar o reino do desejo para entrar no do amor.
Quando, para entreter as criancinhas, Madame de Beaumont recriou a versão água-açucarada, recorrentemente adaptada ao cinema nos nossos tempos, do mito grego chamou-lhe 'A Bela e o Monstro'. À semelhança do mito grego, também no provérbio árabe sobre o efeito da visão que trava a mão da Besta em jeito de prenúncio da sua morte após olhar a Bela, nenhum dos dois deve tentar saber quem é o outro. E se como dizia Chesterton, que acreditava tornar-se 'amável' o ser humano que é amado, a forma de amarmos alguma coisa é compreendermos que podemos perdê-la, então a desocultação integra desde logo o duplo risco do castigo da posse e, nessa medida, a incorporação da resposta seria a expressão última da impossibilidade do amor.
Um paradoxo, uma duplicidade, um véu que oculta sem cobrir? Como nos teus contos, em que nada é o que parece e nos forças a determo-nos para que escutemos para além de ti, no reino do amor tudo se passa como se houvesse alguma coisa intocável nos seres que amamos, alguma coisa de que não devemos apropriarmo-nos. E o amor fosse aceitar essa restrição alimentada por igual de presença e de renúncia e fazê-la conviver com a brevidade de um olhar capaz de, resolvendo a desigualdade, impôr a semelhança. Para restituir a igualdade impossível, nas histórias infantis o príncipe tem de mudar - como se morresse - antes que a última pétala caia e nos mitos Zeus dá a Psique o dom da imortalidade para que ao mudar se iguale.
E se a força igualadora fosse capaz de transformar a tranquila aridez do testemunho da vontade na inquietante doçura sob que se oculta a renúncia? Talvez ficasses a olhar para o fundo do cálice onde se projecta uma das mais amargas e doces verdades com que te confrontarás enquanto Homem: a que te ensina ser o amor um bem que não poderás obter em vida e a mesma que te pergunta, ao fundir fracasso e tortura no instante de vitória, se não me tendo serás grande suficiente a ponto de fazeres caber o meu coração na palma da tua mão. E 'ter' é um dos conceitos mais representativos da nossa débil condição e ao mesmo tempo um dos seus conceitos mais fortes e mobilizadores.
E apesar de nada ter a ver directamente com este post, ele fica bem dedicado à MC do Jardim de Luz
"Quem és?"
A esta pergunta fundadora, que sintetiza o desejo de conhecimento de todos os amantes e para que a Psique de Apuleio procurou resposta, pagaram-lhe os deuses com vulnerabilidade e efémero. Há uma diferença, subtil é certo, entre o reino do desejo e o do amor: o primeiro pôe ênfase no sujeito que deseja, o segundo no objecto desejado. Ao invés do desejo, o amor, sendo o esforço de igualdade entre os que são diferentes, só se pode dar entre iguais. E ao acarretar a necessidade de protecção do que nos é infinitamente valioso, força-nos a abandonar o reino do desejo para entrar no do amor.
Quando, para entreter as criancinhas, Madame de Beaumont recriou a versão água-açucarada, recorrentemente adaptada ao cinema nos nossos tempos, do mito grego chamou-lhe 'A Bela e o Monstro'. À semelhança do mito grego, também no provérbio árabe sobre o efeito da visão que trava a mão da Besta em jeito de prenúncio da sua morte após olhar a Bela, nenhum dos dois deve tentar saber quem é o outro. E se como dizia Chesterton, que acreditava tornar-se 'amável' o ser humano que é amado, a forma de amarmos alguma coisa é compreendermos que podemos perdê-la, então a desocultação integra desde logo o duplo risco do castigo da posse e, nessa medida, a incorporação da resposta seria a expressão última da impossibilidade do amor.
Um paradoxo, uma duplicidade, um véu que oculta sem cobrir? Como nos teus contos, em que nada é o que parece e nos forças a determo-nos para que escutemos para além de ti, no reino do amor tudo se passa como se houvesse alguma coisa intocável nos seres que amamos, alguma coisa de que não devemos apropriarmo-nos. E o amor fosse aceitar essa restrição alimentada por igual de presença e de renúncia e fazê-la conviver com a brevidade de um olhar capaz de, resolvendo a desigualdade, impôr a semelhança. Para restituir a igualdade impossível, nas histórias infantis o príncipe tem de mudar - como se morresse - antes que a última pétala caia e nos mitos Zeus dá a Psique o dom da imortalidade para que ao mudar se iguale.
E se a força igualadora fosse capaz de transformar a tranquila aridez do testemunho da vontade na inquietante doçura sob que se oculta a renúncia? Talvez ficasses a olhar para o fundo do cálice onde se projecta uma das mais amargas e doces verdades com que te confrontarás enquanto Homem: a que te ensina ser o amor um bem que não poderás obter em vida e a mesma que te pergunta, ao fundir fracasso e tortura no instante de vitória, se não me tendo serás grande suficiente a ponto de fazeres caber o meu coração na palma da tua mão. E 'ter' é um dos conceitos mais representativos da nossa débil condição e ao mesmo tempo um dos seus conceitos mais fortes e mobilizadores.
E apesar de nada ter a ver directamente com este post, ele fica bem dedicado à MC do Jardim de Luz
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