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Flaubert & friends

Estava eu tentando entrar num estado de purificação pré-quaresmal, virado para as minhas coisinhas, afastado dos pecados da provocação, da especulação e da indecência, pensando até que o melhor que o homem tem a fazer com as mulheres é olhar para elas como o pescador olha para o seu peixe (imagem praticamente bíblica, atenção), procurando congelar rápido para não se estragar enquanto ainda abanam a cauda, eis que leio de forma, agora reparo, desprevenida – sim não estava preparado para um texto que não fosse em inglês e não tivesse pelo menos 367 linhas (mais que um ano bissexto, portanto) – que para uma mulher o ‘critério seguro para se acreditar num homem depende de ele lhe ter levado a comprar livros’. A amargura começou a apoderar-se da minha alma, céus, jamais tal tinha ocorrido na minha parca (diga-se) experiência com representantes desse género, valha-me Deus, nunca dei conta que alguma mulher tenha comprado, pela minha simples e desgarrada influência, a mais pequena brochura que fosse! E se o que ela diz é mesmo verdade, ó crueldade, e vir a sabê-lo assim de supetão, nem me dando capacidade de reacção, agora que se lixe a purificação, o corpo está continuamente sofrível, a alma a espaços sã e a Quaresma também só começa amanhã. Mas não pode ser, aquilo era certamente só uma figura de estilo, aquilo era só para deixar o pessoal nervoso, assim como eu fiquei, está conseguido, siga, agora vamos é arrepiar caminho, a rapariga é que precisa duma mão, e eu já não faço uma listazinha há uma porção de tempo, servirá como despedida temporária dos pecados do verbo.

Os 10 critérios para aferir se um homem é de confiança:

Primeiro. Homem de confiança desconfia do verso livre. Só descansa a alma na rima e apenas encontra verdadeiramente a paz com o 4 x 4 x 3 x 3 do soneto. E algum cuidado na métrica, sim a métrica pode ter alguma importância, mas parece-me definitivo, homem que mulher queira prezar, ou até amar ainda por cima, tem de saber adormecer no balanço duma rima.

Segundo. Condição essencial para um homem em quem se possa acreditar é ele apreciar com gáudio um valente frango do Baía. Pode ser por entre as pernas, pode ser na sequência dum pontapé na camada de ozono, pode ser na sequência duma bola telecomandada, dum ressalto na nuca do Nuno Gomes, pode ser de qualquer maneira mais ou menos telegénica, mas sempre preferindo que o dito Baía fique com aquele ar de carneiro entre o matadouro e a panela de pressão e já com uma coentradazinha a sair-lhe pela boca. Pode parecer uma condição absurda, mas vão por mim, se Darwin visse a Sport TV nunca tinha ido atrás das tartarugas, por causa da selecção natural bastava-lhe a chamada prova dos frangos do Baía.

Terceiro. Desprezar Proust. Ter escarnecido de Proust em público é verdadeira condição sine qua non para que um homem apresente uma credibilidade decente face a uma mulher. Não basta a displicência, nem a fleuma do alheamento, é preciso um ostensivo sarcasmo mesmo que decorado aqui e acolá com alguma impertinência de erudição envergonhada. Homem com adoração floreada pela memória deve ser sempre evitado por uma mulher.

Quarto. Um homem para ser da máxima credibilidade tem de saber utilizar jaculatórias de pendor religioso como coadjuvantes do discurso. A noção de tempo e cadência certa associada a uma bucha tipo ‘valha-me Deus’, ou mesmo um mais rico e expressivo ‘valha-me Nª Senhora da Agrela’ pode fazer toda a diferença quer num momento de aflição quer de excitação afectiva. Parece-me elementar para quem sabe a via-sacra que lhe tem para propor.

Quinto. Não gostar de pintura abstracta afigura-se-me como um outro conselho básico neste contexto. O homem que nalgum momento veja virtude – mesmo estética - naquilo que se afaste do que a mãe natureza nos brindou poderá a qualquer momento trocar uma humidade (mesmo sem efervescência) ou um pêlo mais eriçado por uma mera combinação mais ou menos colorida de rectas e pontos e curvas. A adesão à desconstrução pictórica do real conduz inevitavelmente à quebra duma ligação ancestral promovida por uma costela, uma maçã e uma serpente.

Sexto. Um das provas eliminatórias para que homem seja reconhecido com fonte de segurança é saber assumir que já cantarolou em tempos músicas do Paul Simon. É um momento difícil neste campeonato da confiança, mas é decisivo. Mas ao chegar ao clímax da pungência penitencial poderá todavia ser dispensado de confessar que chegou a imitar a Art Gargunkel num momento de maior fraqueza. Uma coisa é demonstrar confiança, outra é rastejá-la.

Sétimo. Mas a questão literária parece de qualquer modo fazer bastante diferença em certos gineceus mais sensíveis. Por isso parece-me de elementar bom senso alertar para a questão dos clássicos. Homem que esteja sempre a referir, a conceptualizar, a contextualizar ou mesmo apenas a pontilhar com ténues nuances a realidade socorrendo-se de sujeitos que viveram antes das guerras púnicas e que não chegaram a dar um beijo encostados à torre Eiffel, nem leram a Luxwoman, um homem destes corre sempre o risco de ir para uma sauna e apanhar micoses nas mãos. Eu cá aconselharia a níveis de desconfiança acima da média nestas circunstâncias de apego exagerado a estes tipos que falavam dos Deuses como se estivessem a falar com o Goucha e a Teresa Guilherme.

Oitavo. Aproximo-me agora da delicada questão política e dificilmente me consigo abstrair da elevada instabilidade que pode estar associada às tendências liberais. O liberal vive em constante preocupação: precisa de referências, ora de plateia, ora de palco, precisa de outros que pensem como ele, precisa de rebanho, um liberal isolado é um ser desconsolado. Ora daqui até à revelação de obsessões exibicionistas é um curtíssimo passo. Homem que não sinta aconchego num estado maternal, ou terá sempre saudades da mãe, ou se amantizará com a sogra (mesmo que seja bom a aconselhar livros). É a tal coisa do liberaldinoso.

Nono. Há depois a questão gastronómica. Sendo que se deve manter o bom critério de estar sempre de pé atrás em relação a homens que não tenham gelo em casa, parece-me mais decisiva a situação do sal. Um homem capaz, digno, fiel aos seus princípios, respeitador dos seus fins, que inspire a tal de confiança, que nunca se tenha deixado envolver pelos insondáveis mistérios da alma russa, nem tenha ouvido os Génesis de forma exaustiva, um homem assim com essas prerrogativas jamais, repito, jamais sabe a quantidade certa de sal que deve levar qualquer cozinhado. Ter a chamada ‘percepção do salgado’ é inevitavelmente um sinal de decadência da carne no género masculino.

Décimo. Aqui, e como estou a encerrar a lista, hesito entre dois temas clássicos: entre a importância do uso do vernáculo e a impossibilidade dum homem dançarino ser de confiança. São mais duas questões fracturantes mas como não é a polémica que pretendo alcançar, fixar-me-ei assim numa outra questão: a tendência para fazer listas. Absolutamente a evitar homens com esta tendência, então se forem de paleio com fácil arrastamento para patati-patata-ismo é imprescindível que se acautelem; mesmo que as arrastem para livrarias em convulsões peri-orgásmicas.

Isto já são onze horas, era hoje que me tinha proposto ver decentemente pela primeira vez aquela coisa do CSI, falhei mais uma vez, os gajos já descobriram aquela merda toda sem eu ter percebido, e continuo sem conseguir acompanhar metade das conversas cá em casa. Mas foi por uma boa causa. É sempre bom entrar na Quarema deixando uma causa justa cumprida, mesmo que seja roçando o pecadilho da alarvidade de expressão.
The house of the setting sun

(Em memória de um muito 'teu' poema de Blake, a (des)propósito de uma canção dos 'Animals' e acerca do cumprimento das promessas que não fiz)

Habituado a ganhar, um hábil manipulador abrigado na fatiota 'griffée' da perfeição do seu curso (ou será percurso?) de condução defensiva e evasiva, espanta-se, nos jogos que lhe propõe, com o absurdo da submissão que ela ostenta como um troféu de perda. E persiste em ignorar o óbvio naquela aparente ausência das vértebras moralistas e anquilosantes susceptíveis de provocar torcicolos nas escolhas. Tão diversos os seus diplomas de vida quantas as regras do jogo, vê-a largar sobre o pano verde dos dias cartas sem nexo. Não se defende das (ou nas) suas mãos, enfrenta-as. Não se defende da (ou na) sua boca, enfrenta-a. Não se evade das suas palavras, fica. Não se evade dos seus esquissos, fica. Lendo-o, escutando-o, sentindo-o, enfrenta-o e fica. Em paz na teia cujo fio dúctil ele vai desenrolando até ao dia em que, se ao pedir-lho, muda, souber chamar-lhe puta como se a amasse, ela lhe dê, na troca final de naipes, "o fim de um cordão de ouro" (*) guardado na manga. Para que o "enrole numa bola apenas e o conduza às portas do céu" (*), "como um testemunho de profundo e afectuoso reconhecimento" (**).

(*) Excertos de "Jerusalem", William Blake em "The Complete Poetry & Prose of William Blake" (trad. e adaptação pessoal)
(**) Da dedicatória de Marcel Proust a Gaston Calmette em "Du côté de chez Swann" (trad. pessoal)
Apenas Paneleirices. Para desenjoar.



Eu tenho de reconhecer que já li esse panasca do Proust. Não o devia ter feito, mas sucumbi à força da curiosidade juvenil. Ora o que se passa é que eu li aquilo quando era puto, e estava-se mesmo a ver, o gajo não tinha quaisquer hipóteses, eu tinha acabado de sair da Enid Blyton e estava a entremear o Júlio Verne com a Agatha Christie. O “florzinhas” caiu ali como uma andorinha de pena mordiscada, a bater asas que nem um colibri! Só me ria, entre sandes de mortadela manhosa que era o castigo que a minha avó me dava por eu lhe ter mentido em relação à catequese.

E sabem como é que eu caí naquilo? Foi mesmo coisa de puto (ou de cinquentão, vendo bem...). Estava numa livraria, peguei no livro por engano pensando que eram as “Viagens com Charley” do Steinbeck, e eis senão quando vejo uma miúda toda engraçadinha a olhar para mim embasbacada. Foda-se, comprei logo o 1º e o 2º volume! Claro, ia dando aquele ar de que tinha perdido os meus e que não podia passar sem eles, representavam muito no meu imaginário e assim. Mas o pior estava para vir, o meu pai deu-se conta de que eu tinha comprado aquela trampa! Começaram-se-lhe a meter macaquinhos na cabeça, pôs-se a dizer à minha mãezinha que eu andava de rédea muito solta, quem eram os meus amigos, e que as desgraças se dão em qualquer família, e que ela ainda havia de se arrepender de me ter tirado dos escuteiros quando cai desamparado duma gruta ali para os lados da praia da Adraga. Mas eu pensava, o meu pai não deve estar bem a ver a coisa, se calhar estava era com inveja por nunca se ter lembrado daquilo com a minha mãe, e se só de pegar no livro tinha dado aquele efeito na miúda, então se eu o lesse mesmo caíam eram todas que nem tordas! Vai daí, bem escondidinho entre as páginas ora do Blake & Mortimer, ora do Príncipe Valente lá fui lendo aquela xaropada enjoativa, verborosa, cheia de salamaleques amaneirados e que mostra o lado mau da alma: ou seja o seu lado ajardinado e inconsequente. Mas porra, eu por um lado não me esquecia dos olhos da gajita, mas por outro lado o medo de ficar apanascado começava a assolar-me o espírito. Não podia dizer a ninguém que andava a ler aquilo, porque os cabrões – que eram mais velhos - punham-me logo a jogar à baliza, e eu sabia que só me realizava como homem na posição de extremo esquerdo. Mas repentinamente começou a passar-se uma coisa: aquela merda dava-me para rir! No fundo aquilo era uma brincadeira de rodriguinhos com sensibilidades paridas ao ritmo dos nasceres do sol, que dão sempre no que dão ( hegelianismos vendo bem), e nem faziam sangue, nem doer, nem nada; só que as palavras que eu não sabia o que queriam dizer eram aos magotes, e se me vissem em casa a ir consultar um dicionário, então é que era colégio interno directamente! E depois ainda tive o desgosto de vir a saber que a miúda da livraria já tinha namorado! Já nada fazia sentido. Acabei por cagar naquilo. Mantive-me muito homem, e fui beber umas cervejolas com o meu pai que se sentiu bem mais reconfortado.

Quem procura o tempo que perdeu acaba sempre por pisar caca. Mas quem não procura o tempo que perdeu ficará sempre com um sabor amargo na boca. Ir e vir, eis a nossa condição.