Tina & Pita


É com satisfação que os grupos editorais Mosca Morta e Choco com Tinta vêm comunicar o lançamento do projecto comum de uma revista de crítica e fofoca literária liderado pela escritora hermafrodita e polemista Bernarda Leonarda, que se tornou célebre por ter escrito uma história da literatura alternativa apenas com escritores e livros inventados. Este projecto, denominado 'Tina & Pita', será dominado pelas incursões na literatura wonderstream, um conceito que funde o mainstream com o underground sem esquecer o stevie wonder, e que reflecte a ambiguidade dos tempos modernos, designadamente no que diz respeito ao texto literário que é muito permeável às influências mais diversas, venham elas da alta costura ou do baixo ventre. Será uma revista onde poderemos encontrar plots, romans à clef e inclusivamente coup de foudres nos seus melhores dias, sem nunca esquecer os famosos bildungsromans com creme de pistaccio para desenjoar dos tours d'horizon. Em todos os números será eleita a sinopse do mês que permitirá ao leitor escolhido um lanche ajantarado com a escritora Simone Bolina, que aparecerá com uma peça da colecção de lingerie da saudosa Custódia Passos autografada pelo cunhado de Humboldt, algo só ao alcance, já se sabe, apenas de happy few, também conhecidos como os Fewzas.

Excerto duma notícia não assinada da Revista Mel & Fel de Março de 2013.

O Depoimento [V]


Inspector Álvaro Simões - Há algum aspecto da vida ou personalidade da Custódia Passos que entenda se deva ter em especial conta?

Viviane Lopes - humm...sabe que ela nos últimos tempos se andava a aproximar daquilo a que eu chamaria...o fenómeno religioso

A.S. - Estava a converter-se!?...

V.L. - Também não é bem isso...isso passou-se foi comigo...

A.S. - Não me diga?...

V.L. - Olhe...há coisa de dois anos parece que me passou um furacão pela alma dentro e de repente exigi da vida mais explicações do que aquelas com que tinha vivido até ali

A.S. - Mas para se viver a vida ela precisa de ser explicada, é?

V.L. - Não propriamente, mas precisa de ser... vá, abordada com alguma afã de compreensão...de exigência, algum esforço de separação das essências das aparências

A.S. - E acha que precisa de Deus para isso?

V.L. - Se Deus existir, obviamente!

A.S. - Mas não lhe bastava o encanto do mistério, teve logo que avançar para a crença?

V.L. - Ao principio também pensei que sim, que bastaria, que me bastaria...mas depois verifiquei que só mistério sem crença era um agnosticimo da preguiça, uma cobardia de bancada

A.S. - Então a crença passou a ser algo...instrumental, como direi... acreditar como um mero método para compreender.

V.L. - Não...o método está na dúvida, a crença é uma das filhas da dúvida, creio duvidando, está a perceber?

A.S. - E isso não lhe dá cólicas, nem espasmos?

V.L. - Daria se eu não soubesse ao que ia, mas preparei-me

A.S. - Como é que uma pessoa se prepara para isso de acreditar sem deixar de duvidar?

V.L. - Então... como o inspector...começa por definir uma explicação para um caso, um móbil do crime, os álibis, os verdadeiros e os falsos, e depois vai avançando...tacteando, descartando hipóteses, agarrando outras...

A.S. - Vive assim a sua fé como se fosse um romance policial, é isso?

V.L. - Seria assim se de repente não tivesse descoberto uma dimensão diferente nesta crença...

A.S. - E essa dimensão, é mesmo...

V.L. - Uma coisa curiosa, o Acreditado, Aquele em quem acreditamos, vai-nos deixando pistas e nós vamos ficando como que...apaixonados pelas pistas

A.S. - Como se o policia se apaixonasse pelas armas do crime?

V.L. - E pense lá se isso não é verdade...um investigador como não tem acesso à vitima - viva, presente - acaba por se ir ligando afectivamente aos indícios do crime

A.S. - Vejo que foi conduzindo a nossa conversa para uma clareira qualquer que lhe interessava e que a fé apenas lhe serviu de marcador seguro de trilho...

V.L. - Eu não sou uma pessoas intuitiva, sabe...,ou melhor, tenho intuições apenas medíocres, as intuições mínimas, básicas, nunca as consegui fortalecer com a experiência e por isso acabei por encontrar na crença, na fé, a melhor compensação para essa fraqueza...

A.S. - Ah, a fé funciona-lhe então como uma bomba de intuições, é isso?

V.L. - Soa a artificial, eu sei...soa até a algo assim como uma produção artística, não é?

A.S. - Eu também se sinto assim quando estou numa investigação, principalmente nesta...

V.L. - Olhe que esta analogia entre a descoberta da fé e a descoberta dum assassino nem deve ser muito original (ahahah) e quanto a si, inspector, deverá ter as suas intuições muito muito trabalhadas!

A.S. - Estou a pensar em tudo o que me disse e fui desembocar nesta pergunta: o que vale aquele bilhete de suicídio...se ao menos conhecêssemos já o testamento...

V.L. - Olha, outra analogia...com a fé passa-se o mesmo: temos uns evangelhos, mas ainda não abrimos o livro do juízo final.

A.S. - hum.... a Viviane deve andar aí às voltas com um processo de plágio , não anda?

V.L. - Ai que o inspector é mesmo mesmo muito intuitivo, credo! (ahahah)

Transcrição do depoimento de Viviane Lopes, recolhido pelo inspector Álvaro Simões, um mês depois da morte de Custódia Passos, e publicado no Boletim Mensal do Investigador

Fado [IV]


Barba rala
olhar deposto
neura de gala
engolido desgosto.

Desisti da minha causa
sem glória nem fado
por uma guerra falsa
de inimigo inventado

Refrão do fado Arménia Longínqua da autoria de Custódia Passos e imortalizado na voz de Mafalda Arneiro.

As Gaspadinhas

Na passada semana, quando Portugal se preparava para finalmente voltar aos mercados, inesperadamente eles já não se encontravam lá. O ministro das finanças ainda esperou uma meia hora, mas depois, face às evidências, recolheu à sua viatura de serviço (um Kangoo patrocinado pelo Vallium Injectável), e após dois ou três telefonemas (pagos no destinatário) confirmou que os mercados aparentemente tinham mudado de local. Uma senhora que estava a passar informou mesmo que desde o verão já não se viam as tendas por aquelas bandas e sugeriu que procurassem mais na zona de Bucelas onde o seu genro chegou a conseguir trocar uma mula cega por dois cabazes de morangos sem spread. Convocou-se a devida reunião de emergência com os ministros, juntamente com os secretários de estado, pois a situação era grave e quanto mais olhos estivessem atentos mais probabilidades haveria de encontrar os mercados, mas ninguém tinha dado conta de que os mercados pudessem ter mudado de sítio, se bem que o seu facebook tinha sido atacado há semanas por um vírus de nome nicles. Foi alvitrado pelo secretário de estado dos doces e guloseimas tradicionais que isso era um trocadilho com nicles name, e que tinha ouvido dizer que face à deslocação dos centros do poder para oriente que talvez fosse mais susceptível de encontrar os mercados junto da estação de comboios com esse nome, e para o efeito deslocou-se para o local uma delegação que, pelo sim pelo não, já ia aviada com um pack de tortas de azeitão, devidamente etiquetada de Pec 5. Informados de que a estação estava às moscas, contactaram com o próprio FMI que por sinal também já não via os mercados ia para dois meses, mas que não tinham dito nada para não enervar o Sr. Gaspar que ultimamente já estava a ultrapassar o ritmo máximo de três frases por minuto, desrespeitando uma das cláusulas mais rígidas do último mou, que era conhecido como o émióu das gaspadinhas, numa alusão aos novos certificados de aforro através dos quais cada contribuinte compra umas rifas que lhe podem dar direito a um subsidio de natal no ano de 2023, pago em pastéis de Tentúgal. À hora de fecho desta edição os mercados ainda não apareceram e julga-se poderem estar no mesmo local da pilinha de Flávio Cossaco que, como sabemos, anda a monte desde o trágico falecimento de Custódia Passos, a escritora na qual se inspirou o novo busto da República depois da reforma constitucional de 2014, em que se deliberou que o orçamento de estado passaria a ser escrito em verso alexandrino, votado em rima cruzada e cumprido em metáfora pífia.

Excerto da Crónica Mensal de Julio Paisana (sob o pseudónimo de Bernardo Marujo Cidreira), Essa é que é essa, publicada no número especial de Pentecostes de 2014, de  O Badanal.

O Diário [V]


Cheguei agora do teatro. Foi - finalmente - a estreia da Viviane. Depois de ter metido na cabeça que um dia seria actriz, e representaria a Fedra, lá perseguiu esse seu desejo - capricho - com uma persistência só dela. Permanece ainda a minha grande dúvida: qual a razão desta sua escolha, a tragédia não casa com ela e muito menos esta onde os remorsos são os reis da parada. Nunca mo explicou e as suas saídas enigmáticas ainda me têm posto mais curioso. Hoje foi outra: «nada acontece por acaso e a morte é o mais causal dos acontecimentos». Fomos cear juntos com o rapaz que faz de Hipólito, por sinal um tipo bem disposto e que está claramente apanhadinho pela Viviane. Não sei o que ela lhe disse sobre mim, o que mais me irrita é que se calhar nem lhe disse nada, ou disse-lhe praí o clássico de que sou amigo de infância e pouco mais fiz que figura de croupier de estimação, ali a servir-lhes vinho e uma deixa ou outra para eles brincarem com as minhas palavras como se fossem copas a dançar com paus. O desinteresse - desprezo - que a Viviane tem por mim está a atingir um requinte só ao alcance dos grandes vingativos e é isso que ainda me deixa mais confuso porque nunca lhe fiz qualquer dano, a não ser gostar dela...talvez seja isso, isso incomoda-a, como incomoda que nos ame alguém a quem não amamos. No camarim o encenador estava deliciado com ela, dizia que a Viviane trazia uma raiva misturada de encanto que só actores de excepção conseguem comunicar no palco. Mais outro apanhadinho por ela, certamente, ou então está a confundir mamas e manha com talento. Mas uma coisa é certa, nunca uma Fedra apresentou um rabo assim, e a qualquer momento parecia que o Hipólito ia fugir ao argumento, borrifar-se para o pai e fugir com ela para uma praia nas Caraíbas. E eu ali, feito parvo, sem poder adormecer na plateia, sem poder dizer a ninguém que ela é, foi ou será minha, e com aquela vontade ruinosa de ser ninguém. Espero que uns lençóis lavados e a cheirar a campo consigam tratar disto.  

Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, entrada de Junho de 2013, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma

O Debate


O grupo de pressão dos homens de cultura sentiu que tinha chegado a sua vez de chegar ao poder. Procurando filtrar duma imensidade granolométrica de putativos candidatos chegou-se ao consenso de efectuar uma espécie de primárias entre intelectuais. Finalmente chegou-se a um ponto em que se perfilaram como os dois candidatos com mais potencial os escritores Flaubert Queirós (presidente da Ordem dos Epigrafistas) e Julio Paisana (Editor-chefe da Revista O Badanal). Eis um excerto do debate final com moderação de Simone Bolina.


Flaubert Queirós - Julgo poder trazer ao País aquele esclarecimento e serenidade de quem consegue olhar para os problemas com um perspectiva mais ampla

Julio Paisana - Como devia saber, caro Queirós, não basta perspectiva, é também necessário, unhas, senão a viola não toca. Eu saberei juntamente com a perspectiva trazer um outro jeito de pegar nos problemas

F. Q. - Caro Paisana, a realidade não precisa de voluntaristas, não precisa que andemos a mexer-lhe com experiências vibratórias, como devia saber não basta juntar sons para termos uma boa melodia

J. P. - Eu sei que o meu amigo se dedica a frases de belo efeito, mas eu estou habituado a levar projectos para a frente, mobilizar pessoas, eu sei que isto não vai lá apenas com calculismos epigráficos, é necessário meter a mão

F. Q. - O meu amigo está a referir-se certamente àquela revista que dirige e que tenta fazer as pessoas rir, ou seja, que tenta afastar as pessoas da realidade e depois montar-lhes um joguinho para elas se entreterem e agora chama a isso mobilizá-las, é?

J. P. - A sarcasmo fica-lhe mal, ó Queirós, e assim os ouvintes vão pensar que deixar-lhe o país nas mão é a mesma coisa que pô-lo nas mãos dum malabarista...

F. Q. - A minha politica é a de mostrar as coisas como elas são, sem subterfúgios, mas com uma linha de rumo, com ideias por detrás, foram as ideias que moveram a história, não foram os somatórios de vontades individuais, não quero fazer do país uma montagem de secretaria e muito menos um somatório de opiniões.

J. P. - Você quer fazer do país um exercício de estilo, esqueça isso, assim ninguém vai acreditar em nós, ó Queirós, é preciso mostrar às pessoas que ao dinheiro e à iniciativa dos tecnocratas tem faltado visão, luminosidade, energia, e somos nós, eu, no caso, que vamos fazer essa diferença

F. Q. - Você deve estar transtornado da badana, ó Paisana, então não vê que o País dispensa esses iluminismos de pacote, para entreter audiências! O que a cultura tem para dar é outra dimensão, para entretenimento já chegam os que lá estão

J. P. - E acha que a dimensão é dada consigo que anda há anos a brincar às casinhas com as frases soltas dos outros!?

F. Q. - Mais respeito, é por essas e por outras que ninguém nos leva a sério. Saberei estar à altura, com os dossiers estudados, os temas referenciados e as soluções e alternativas equacionadas, vocês os badanistas é que se limitam a andar pela rama dos acontecimentos!

J. P. - Temos de começar pela rama, para depois ir ao tronco e de seguida às raízes, vocês é que julgam que tudo se pode reduzir a tubérculos!

F. Q. - Queremos acabar com espiral do complicadismo, queremos mostrar o lado simples da realidade, apenas descompondo, perdão, decompondo a realidade nos seus elementos mais puros a poderemos compreender, não é ridicularizando-a

J. P. - Não se trata de a decompor, ai estará mais um dos seus erros, temos sim de a moldar, de a aproximar mais do coração das pessoas, juntá-las, só nós, a nova geração de intelectuais, estamos aptos para juntar o real ao sentimental.

F. Q. - E depois, quando quisermos um estado social forte, o que propões, amor e fraternidade ao jantar, o rabo dos velhinhos lavado com emoções fortes em vez de emulsões?

J. P. - Vai abrir uma vaga para distribuidor de piadas no Badanal, pode aproveitar, mas por agora julgo que temos de mostrar às pessoas que podem confiar em nós, e aqui eu digo: renascer é comigo.

F. Q. -  Ok, para tratar do problema dos cemitérios é contigo, mas quando for para tratar das finanças públicas é com quem? Com o cartoonista das sextas?

J. P. - Venha a crise que vier, ó Flaubert, aqui estaremos para fazer com que todos juntemos as mãos!

F. Q. - Então e depois com as mãos juntas quem é que vai tocar na tais cordas da viola?

J. P. - Sim, tu não poderás ser porque estás a brincar aos wildes contra rochefoucauldes!

F. Q. - Antes isso que andar sempre com um Kraus às costas.

Simone Bolina - Continuem agora vocês os dois um bocadinho que eu vou ali fazer uma nietschezinha e volto já.


Excerto do debate transmitido na estação de rádio Efezierres e mais ou menos moderado por Simone Bolina, realizado em finais de 2014.

O Depoimento [IV]


Inspector Álvaro Simões - O que me tem a contar sobre o Ernesto Mourão?

Viviane Lopes - Um homem estranho, não sei o que a Custódia viu nele...

A.S. - Mas pelos vistos não é só a Custódia...

V.L. - Sim...ah a Simone, claro...mas a Simone consegue descobrir encantos em qualquer homem.

A.S. - Mas isso pode considerar-se um talento.

V.L. - Sim...talentos não lhe faltam...

A.S. - Noto uma pontinha de ciúme.

V.L. - Olha, olha, um policia psicólogo! Isto é um luxo! Também fornecem divã aqui na esquadra ou isso é só para as testemunhas especiais?

A.S. - Todas as testemunhas são especiais porque nenhuma faceta da realidade é mais importante que as outras.

V.L. - O cubismo investigatório, o Inspector é um teórico...ainda não o convidaram para a televisão?

A.S. - É muito simpática, mas agora interessar-me-ia mais a sua opinião sobre o Ernesto Mourão. Consegue dizer-me que tipo de pessoa é e qual era a relação que ele tinha com a Custódia?

V.L. -  O Ernesto não tem relações em sentido estrito, ele faz contratos. Algo a dar por contrapartida de algo a receber, percebe?

A.S. - Se me concretizar ainda iria perceber melhor.

V.L. - O Ernesto acha-se o supra-sumo da paróquia...e acha que já não se faz mais daquilo. Pensa-se como um eleito, e há uns tempos para cá meteu na cabeça que tem de deixar descendentes, ora vai daí encetou um processo de escolha e no seu caminho apareceram a Custódia e a Simone...

A.S. - e a Viviane, não?

V.L. - Não , não... eu tenho ovários de bruxa! (ahahah)

A.S. - Continuando...

V.L. - Curiosamente, enquanto a Simone é destravada a Custódia ficou a magicar no assunto, ela acha, achava..., o Ernesto uma espécie de cérebro singular mas a quem falta... carne, hormona, viço, sei lá, tudo coisas que ela possuía juntamente com um charme e encanto inegável...não sei se está a ver, soma um mais um e...obtém a equação do darwinismo custodiano

A.S. - Conduz-me agora à Simone...

V.L. - Ah, a certa altura a Simone achou engraçada a competição, foi à luta, e ficaram duas galinhas parideiras e um galo cheio de crista mas com pouca chicha  (ahahah)

A.S. - Então...e acha que foi uma que desistiu, a outra que deu uma bicada mais forte, ou foi o galo que decidiu fazer cocorocógenia pelas próprias mãos?

V.L- Ó inspector, você é tão engraçado....mas o meu galinheiro é outro! (ahaha)


Transcrição do depoimento de Viviane Lopes, recolhido pelo inspector Álvaro Simões, um mês depois da morte de Custódia Passos, e publicado no Boletim Mensal do Investigador

Fado [III]


Soube-me a pouco
o teu eternamente,
esse momento louco
a que foste chamando presente,

mas que por obra duma memória avara
se transformou em passado,
como ferida que nunca sara
vestida de luto carregado.

Refrão do fado Louca Memória da autoria de Custódia Passos e imortalizado na voz de Lariza

O Prémio


Sempre me considerei um assassino de palavras. Vejo-as a nascerem na minha cabeça, viçosas, cheias de esperanças, e de repente puxo pela caneta e zás! rebento com elas, entalando-as umas nas outras como numa vala comum. Depois, ainda não contente com isso, lanço-lhes combustível, e quando acho que já estão bem regadinhas, zás! largo o fósforo em chama e transformo-as em obras de literatura, o equivalente a um jazigo nesta grande hierarquia da vida que são os símbolos mortuários. Olho para o que escrevo como múmias de miniatura  que fui juntando, num coleccionismo mórbido de ideias que nunca mais verão a luz do dia, pois uma palavra escrita, uma frase, um capítulo, tudo isso são restos mortais daquilo que nos passa pela cabeça; escrevo para matar, não tenho qualquer dúvida disso, treino homicídios com palavras escritas, crimes impossíveis de deslindar, é essa a minha felicidade, a felicidade mesquinha do assassino que sabe nunca será descoberto. Lerem-me faz-vos cúmplices, não são testemunhas, não, vocês são aqueles que ficam à esquina a dar-me o sinal de que posso continuar a matar à vontade, torcendo ainda mais e mais o pescoço das vítimas, essas pobrezinhas, que um dia se lembraram de passear incautas pela minha cabeça.

excerto do discurso proferido pelo escritor Dário Carneiro aquando da atribuição do prémio Pingo Doce das Letras, em Dezembro de 2013

O Diário [IV]


Sobram-me sentimentos, sobram-me inseguranças, sobram-me falsas esperanças, faltam-me dúvidas, faltam-me penas, faltam-me injustiças. Vivo no equilíbrio estável que fornece aquela mediocridade tão própria de quem sabe que teve uma vida banal, das que não chegam a produzir revoltas nem depressões e que se consegue arrumar num cantinho cheio de melancolias estéreis mas que aconchegam. A Viviane hoje não pode vir cá jantar, e inesperadamente ligou-me a Simone a dizer que me queria ver. Apareceu-me logo cinco minutos depois, com um ar atrevido, insinuante, como que disposta a ocupar um espaço que ela sabia estar vazio. Fez-me uma festa, deu-me um beijo, mostrou-me um colar novo que tinha comprado, dois poemas que tinha escrito para uma cantor qualquer e pediu-me atenção, não sem antes ter dito que eu era o melhor atencioso do mundo, que conseguia ouvi-la e vê-la sem ser com olhos de comer, infelizmente para ela, disse também com aquele sorriso que leva qualquer homem para entre as suas pernas em menos de 15 segundos. Queria falar-me da Custódia e queria saber se ela alguma vez se tinha apaixonado por mim. Não me conhece, devia saber que nunca ninguém se poderá apaixonar por mim e que eu, além disso, jamais poderia dar o que quer que fosse à Custódia que ela não conseguisse alcançar de forma superlativa com qualquer outro homem. Ela percebeu os meus pensamentos e atalhou que há regras da atracção que eu desconheço, que as mulheres não seguem certas lógicas de capitalismo erótico que estão imbuídas no inconsciente masculino, e continuou, continuou, continuou, até que sem pré-aviso adormeceu nos meus braços, já meio dormentes com essa fantástica sensação de que 'sou uma merda mas elas há certos merdas de quem gostam' . Entretanto, como num filme de terceira categoria, apareceu a Viviane, fresca como uma alface, para uma ceia de gula e outros pecados avulsos. Felizmente eu tenho aquele cantinho das melancolias estéreis mas que aconchegam e fui para lá, sozinho, abracei a minha mediocridade, e só acordei a meio da noite com a casa vazia e com um bilhetinho: «Amanhã vamos almoçar com a Custódia, queres aparecer? Prometemos novidades. S & V».

Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, entrada de Janeiro de 2013, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma

O Mirone


«...estava uma mesa animada, a menina que depois acabou por morrer vinha cá quase todas as quartas feiras porque o nosso prato do dia era sempre arroz de polvo, e as outras acabaram por pedir frango da guia que também sai muito bem. Beberam todas cerveja e a menina Viviane até pediu outra quando chegaram à sobremesa. Não dava ideia de que alguma deles fosse morrer durante a digestão, e muito menos a menina Custódia que é, era vá, um pisco a comer. Mas nunca se sabe qual é a nossa hora, não é...às vezes assim de repente, e o polvo estava tão bom, até o doutor Gomes Farinha, que é sempre tão esquisito, nesse dia lambuzava-se todo, até acabou por fazer uma nódoa naquela gravata azul marinho que ele costuma trazer quando depois tem uma reunião com a menina Neide. Aí irritou-se, sim, e percebe-se, o mundo dos negócios é muito sensível aos pormenores; dizem, que eu não sei. E estava um dia tão bonito, até abrimos as persianas para entrar o sol, aqui a churrasqueira às vezes fica muito escura e é preciso valorizar o espaço, se bem que agora tivemos publicidade grátis...não é bonito dizer-se mas a morte da menina até deu um certo ânimo aqui ao negócio, que Deus me perdoe, mas já há quem chame ao prato de polvo, 'arrozinho à custódia', e no final até me dizem: «hoje soube-me a veneno, ó Sereno».

excerto do relato do almoço entre Viviane, Simone e Custódia, por Gervásio Sereno, gerente da Churrasqueira Meireles em Loures

História Mundial do Enriquecimento


{texto dedicado à C. do Malone & o caneco}

1. introdução

A riqueza é um fenómeno muito estudado em várias das suas vertentes e inclusivamente encostas - há até fenómenos de enriquecimento baseado em encostarmo-nos a alguém já de si rico. No entanto, faltava uma análise não só mais cirúrgica e que entrasse realmente naquela brecha da realidade que surge quando ela leva um traumatismo, mas também que soubesse separar o trigo do joio, principalmente nestes momentos em que já se tem de fazer muito papo-seco com grande percentagem de joio.

2. causas

Sem prejuízo de estarmos a cometer o pecado de excesso de simplificação poderemos dizer que a causa do enriquecimento é a vontade de agradar. Em geral, e em primeiro lugar, o enriquecimento surge do movimento de confluência de duas pulsões: a pulsão em satisfazer e a pulsão de necessitar: geralmente o primeiro a chegar à necessidade fica insatisfeito, e vai enriquecer quem aparece a satisfazê-lo. Ou seja, a riqueza está em relação directa com a contenção da necessidade.

Mas tal processo não explica tudo, ou seja, quem nada necessita não fica obrigatoriamente enriquecido, pode até desvanecer; surge então a segunda causa: o enriquecimento como selecção. Explico, há que saber escolher qual a necessidade que se quer satisfazer, pois sempre houve por aí muita necessidade que não rende quase nada, ou seja, a melhor necessidade é aquela que cruza com o capricho, pois assim torna-se mais exigente e remunera melhor a satisfação; trata-se do mecanismo da 'falsa gratificação': paga-se julgando que se está a agradecer.

Por último, o ciclo do enriquecimento fecha-se com o fenómeno da acumulação. A acumulação é o climax da repetição. Explico: a mera repetição origina o desgaste, a repetição com acamamento, a acumulação, origina riqueza.

Síntese: O enriquecimento é causado por três factores: a) confluência de necessidade com satisfação; b) selecção das melhores necessidades; c) acamamento de satisfações


3. consequências

A principal consequência do enriquecimento é o enriquecimento. Trata-se do conhecido fenómeno da auto-suficiência, que na filosofia económica se chama de sustentação e na carpintaria se chama de assentamento. Explico: o enriquecimento produz ricos, os ricos produzem riqueza, a riqueza produz enriquecimento: estamos na presença duma ejaculação auto-sustentada.

Ora, todos os metabolismos auto-sustentados produzem - pelo efeito da força centrifuga de autosustentação - um vácuo na periferia; a esse vácuo, no caso em análise, geralmente chama-se pobreza, ou miséria, também vulgarmente conhecidas por «situação de merda» e referidas nalguma literatura técnica como shit happens. introduzindo assim de caminho a noção de efeito colateral. O que distingue o 'efeito colateral' da 'consequência' é que geralmente o efeito colateral não cheira tanto.

Síntese: o enriquecimento é auto-suficiente mas gosta de ter room service ao dispôr.

4. factos

O enriquecimento é em si um facto, ou seja, como ideia o enriquecimento não surte especial interesse, e é substituído com evidente vantagem por ideias melhores como a sublimação, a cristalização, ou mesmo o próprio chantilly.

A História do enriquecimento é pontificada por vários sinais concretos que, mesmo evoluindo ao longo dos tempos, fornecem um padrão bem definido, com o famoso triângulo egocêntrico: corte, bajulação & felacio.

Há ainda que referir o fenómeno do falso enriquecimento. Esta corruptela do enriquecimento caracteriza-se pela quebra de um elemento essencial: privilegia a bajulação em detrimento do êxtase. Foram inclusive registadas ocorrências em que 'o enriquecido' prefere um lagostim mal cozido em detrimento dum linguado bem grelhado.

Síntese: A energia mais ligada ao enriquecimento é o calor humano que ele atrai.


5. reviravoltas

Este capítulo poderia também chamar-se os 'Senãos das Belas', mas impunha-se seguir a apuradíssima caracteriologia utilizada por C. Todo o enriquecimento que se preze tem o seu momento de inversão. Retomando a metáfora mecânica da centrifugação, observamos ciclicamente que dentro das zonas de shit happens, que rodeiam as de enriquecimento, se vão formando pequenas bolsas de bedum que, ao se despegarem, provocam deslizamento nas bordinhas das zonas de enriquecimento de tal forma que estas começam a patinar e a inverter o movimento. Chama-se a este processo o 'retrodriving', também conhecido na gíria da ergonomia económica como o 'torcicolo de budget' que geralmente resulta nos famosos thermidores de consciência, ou brumários de pescoço. Qualquer fenómeno de enriquecimento que se preze deve ter associado momentos de retrodriving que servem para filtrar impurezas nuns casos, para dar balanço noutros ou, finalmente, para dar tempo às moscas para escolherem melhor em que bosta vão poisar.


Síntese: o maior inimigo do enriquecimento é o enriquecimento; o maior amigo também.

6. conclusões

Antes de concluir propriamente, importa precisar alguns conceitos, designadamente aqueles que podem introduzir confusão, como os dos mecanismos do poder, distintos dos do enriquecimento. O poder leva ao saque (geralmente praticado por entidades públicas ou parapúblicas), e o saque diferencia-se do enriquecimento pois conduz a um mero processo de acumulação, não possuindo as componentes essenciais da dupla necessidade-satisfação, nem muitas vezes da própria selecção, pois com frequência vai tudo a eito.

Feita esta pequena derivação explicativa, imposta deixar claro que a história mundial do enriquecimento tem um claro fio condutor, por um lado: o binómio mar-rocha exige mexilhão; por outro lado: o ensopado de enguias exige enguias. A História do Enriquecimento faz-se das enguias que melhor se ajeitaram ao ensopado e dos mexilhões que estavam agarrados à rocha no pior momento da maré. Circunstância, Destino, Vontade e Inveja, compõem a quadriga (as troikas estão muito batidas) peri-existencialista do enriquecimento, são estes os pistons do motor da sua história. A embraiagem é a Angústia da Pelintrice. Como em qualquer combustão, só será verdadeiramente rico quem souber destruir para enriquecer.

Resumo do trabalho de fundo de Ernesto Mourão, 'História Mundial do Enriquecimento', publicado no número especial de Natal da Revista O Badanal em 2015

O Depoimento [III]


(continuação)

 Inspector Álvaro Simões - Concentremo-nos agora em Raimundo Múrcia...

Viviane Lopes - Humm...em que parte dele?

A.S. - Naquela que pode estar ligada à morte de Custódia Passos..

V. L. - O Raimundo é um homem muito...físico, digamos assim, se fosse ele a matá-la teria deixado mais marcas visíveis.

A.S. - É um homem violento, portanto.

V.L. - Sim, também se pode colocar a coisa assim, mas eu seria mais rigorosa: é um homem para quem as palavras não bastam.

A.S. - Mas sendo escritor..deveriam bastar, ou não?

V.L. - Sabia que ele tinha sido ( e praticado) ortopedista antes de se dedicar à escrita?

A.S. - Bem...sabia que era médico de formação, mas daí a...

V.L. - Uma falha imperdoável sua, deveria saber que os ortopedistas são uns brutos insensíveis! Essa brutalidade está entranhada no Raimundo.

A.S. - Tem então um currículo de agressões é?...

V.L. - Não... não... que eu saiba não...julgo apenas que se ele quisesse matar alguém partiria qualquer coisa, ou ossito, ou assim...há vocações que nunca desaparecem (ahah)

A.S. - Você está a divertir-se à brava com isto...também não é normal, não acha?

V.L. - Nada mesmo...

A.S. - Mas voltemos, por enquanto, ao Raimundo Múrcia, ele já tinha sido amante da Custódia, porque acabaram?

V.L. - Simone is the woman, claro!

A.S. - Seria por essa via mais normal que fosse a Simone a morrer, certo?

V.L. - «Normal»!?...Olha, olha e a brincalhona sou eu...

A.S. - Ou então a Custódia estaria a fazer alguma chantagem com qualquer um dos dois...

V.L. - São todos demasiado orgulhosos para entrarem em chantagens... e para além disso, tem de perceber isto: estamos perante pessoas que conseguem ferir de forma muito mais eficaz do que tirando a vida uns aos outros.

A.S. - Como assim?

V.L. - Sabe uma coisa, acho que está demasiado centrado na coisa passional e nem sequer ainda abordou uma outra questão básica: sabia que a Custódia era riquíssima? e, melhor ainda, era uma rica em segredo, uma rica que poucos sabiam ser rica.

A.S. - Quem sabia?

V.L. - Bem...que eu tenha conhecimento: eu, o Dário, o Salvador Arinto e, julgo... o Flávio Cossaco. Mas todos sob pacto de sangue...

A.S. - Mas todos sem motivo para a matar, suponho.

V.L. - Sou escritora, Inspector, falhada, mas escritora, não leio corações, nem mãos, nem mentes, e, o melhor de tudo: não tenho nenhum fetiche com a verdade, prefiro bons peitorais (ahahah)

A.S. - O testamento ainda não foi aberto, essa pista vai demorar a ser percorrida...Tinha alguma coisa para me dizer sobre isto?

V.L. - Acho apenas que não é do género da Custódia morrer de amores...mas tudo é possível quando se trata de morrer, até há quem morra de tédio e o tédio é das melhores coisas do mundo!

A.S. - Qual é o seu palpite sobre a morte da Custódia?

V.L. - Empate.

A.S. - Como assim...

V.L. - Alguma coisa a andava a empatar.

Transcrição do depoimento de Viviane Lopes, recolhido pelo inspector Álvaro Simões, um mês depois da morte de Custódia Passos, e publicado no Boletim Mensal do Investigador

O Testamento


«...a minha cabeleira azul fica para a Viviane Lopes, o meu recheado guarda-jóias fica para a Simone Bolina, as minhas acções na Mosca Morta ficam para o Salvador A. Arinto, o meus prédios no Campo Mártires da Pátria ficam para a filha da Simone e do Ernesto (que eu sei que um dia verá a luz), o meu vestido com uma mancha espermosa do Clinton ficam para um rapaz coleccionador de curiosidades chamado Elvis com quem dormi uma vez em Fevereiro no hotel do Buçaco, os meus títulos do tesouro ficam para o Dário (se ele sobreviver à minha morte), a minha vivenda em Torres Vedras fica para quem descobrir como morri, o meu serviço de porcelana Ming fica para a Viviane (na condição de ela o partir aos poucos nas trombas do Raimundo e do Ernesto), a minha colecção de lingerie usada fica para o Raimundo, o meu vibrador Yves Saint Laurent fica para o Ernesto, o meu soutien com marcas do polegar esquerdo do Marlon Brando fica para a Simone, as genuflexórios chippendale ficam para a Viviane, o silicone das minhas mamas fica para o rabo da Simone, a casa em St Tropez fica para quem encontrar a pilinha do Cossaco, e o resto fica para a casa-museu da Associação Portuguesa de Epigrafistas...»

excerto do testamento de Custódia Passos, aberto publicamente em Dezembro de 2014, e datado de Outubro de 2012, no Cartório Notarial da Malveira.

O Anúncio


Mulher culta, de uma beleza exótica, boa conversadora, arrojada mas enigmática, cintura bem definida e peito firme, apaixonável, livre, de figado frágil, vingativa, procura homem culto, com diplomas obtidos em qualquer dia da semana, bom conversador, persistente, propiciador e companheiro, e bom conhecedor de química alternativa, a fim de produzirem uma oração fúnebre conjunta, com ou sem epitáfio.

Anúncio dos Classificados, publicado vários dias seguidos em Dezembro de 2012 no Palmela Weekly e no Correio de Bucelas.

O Diário [III]


Hoje almocei com o Ernesto. É a mente mais brilhante que conheço. Dá quase raiva assistir aqueles momentos que se produzem na cabeça dele em que a intuição se abraça à dedução e saem ideias que flutuam que nem bolinhas de sabão, que nós, ao irmos para as agarrar, vemos desfazerem-se numa névoa fugaz e mágica. Inevitavelmente acabámos por falar da Simone e da Custódia. Há um incomodo profundo no seu interior, parece saber algo, ou pressentir algo, não sei, de repente fica bruto, radical, não foge ao tema mas torna-o tão desagradável que temos logo que o abandonar. Hoje disse-me que o Raimundo é um cabrão e que devia ter sido ele o envenenado, que a Custódia não sabia o que andava a fazer, que andava a brincar com o fogo, enfim, foi uma sucessão de observações básicas mas ou mesmo tempo sinuosas e atordoantes que me deixou incapaz de reagir. No final ainda perguntou se a Simone já me tinha falado sobre a morte da Custódia. Já nem me lembro o que respondi, e a última coisa que eu faria seria comentar o que quer que fosse sobre a Simone. Antes de se ir embora deixou-me esta bomba na mão: vou ter um filho da Simone. Só lhe respondi, - devia estar bêbedo - «bonito serviço». Riu-se, - com aquele sorriso típico dos vingativos profissionais e compulsivos - disse-me que iria ser entrevistado pela Mel & Fel, e foi-se.


Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, entrada de Maio de 2014, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma.

O Corrimão


A ideia de suspender a democracia durante vários meses era evidentemente exagerada. Julgo que o modelo adoptado desde 2012 é bastante mais acertado: suspendê-la dia sim dia não. Por um lado não nos viciamos nela, e por outro não nos afeiçoamos em demasiado, ou seja, as duas dependências mais nefastas da nossa espécie, o vicio e a carência, ficaram postas de lado. Se uns dias somos espoliados sem consulta prévia em algo que já nem sentíamos possuir de tão habituados que estávamos de usufruir, no dia seguinte voltamos a retomar a gloriosa sensação de que nos têm de prestar contas; a nuance é esta: os poderes têm cada vez menos coisas para nos prestar contas, nós temos cada vez menos contas para prestar ou exigir, e o equilíbrio vai-se assim produzindo plácida e comodamente como numa praia mar que se estende por um vasto areal de falso dourado. Hoje a sociedade inquieta-se à segunda, revolta-se à terça, acomoda-se à quarta, indigna-se à quinta e relaxa à sexta. O fim-de-semana fica reservado para aqueles que ainda tenham energias para a perplexidade, o desencanto, a preparação dos farnéis da semana, a oração, o sexo industrial ou o suicídio. Lembremo-nos da nossa Custódia, aparentemente morreu (suicidou-se?) numa segunda feira, ao almoço, seria o excesso de amor, seria a falta dele, seria a tal atroz indiferença olímpica, não sei, mas penso que nesta agenda semanal tão rica ela não encontrava espaço para a escravidão que todos merecemos. Já no romance seminal de Raimundo Múrcia ('Purificação'), por sinal um dos homens que passou pela vida (e se calhar pela morte) de Custódia, este nos tinha apresentado o papel redentor da perca de liberdade, hoje percebemos que o nosso maior luxo é termos voltado a uma espécie de nomadismo ético: o bem comum tem dias.

Excerto da Crónica de Carlos Corrimão, publicada no Benavente Weekly, em Outubro de 2013

O Depoimento [II]


(...)

Inspector Álvaro Simões - Falávamos de Simone Bolina...

Viviane Lopes - ...sim, um bom tema (ahaha)

A.S. - Continua bem disposta...Como caracteriza a D. Simone?

V.L. - Ora resumindo...uma machorrenga!

A.S. - Como assim...uma maria-rapaz?...

V.L. - nada disso, pretendia figurar o correspondente ao homem mulherengo, mas em gaja...

A.S. - ah.. e tem sucesso?

V.L. - Muitíssimo! Não me diga que ela ainda não se atirou a si?

A.S. - Eu imponho alguma distância...

V.L. - Ora ora...o que são dois ou três metros para a Simone (ahahah)

A.S. - Simone já tinha assediado alguém de quem Custódia Passos...vá... gostasse?

V.L. - Repare, inspector Simão, se todas a mulheres a quem Simone já tivesse cobiçado, assediado, flirtado, comido, insinuado, ou roubado os amantes, namorados, amigos ou até canalizadores, morressem envenenadas, as serpentes já se tinham tornado uma espécie em extinção!

A.S. - Consigo isso também já aconteceu?

V.L. - Isso é uma pergunta muito pessoal...acha que ajudará mesmo a explicar como morreu a Custódia Passos?

A.S. - Quer tomar alguma coisa?

V.L - Eh lá...isto está a ficar quase como nos filmes...

A.S. - É apenas para a compensar da minha...do meu excessivo zelo; uma cortesia merecida, entenda-a assim

V.L. - Eu estou habituada a ser bem tratada pelos homens, deixe lá...

A.S. - A propósito, acha que algum homem se poderia querer vingar dalguma infidelidade de Custódia?

V.L. - Por acaso acho...

A.S. - Quem!?

V.L. - O Dário, claro, mas esse nunca a mataria.

A.S.. - Porquê?

V.L. - Porque é muito egoísta, o homicídio implica sempre algum desprendimento.

A.S. - Hummm...uma especialista na coisa!

V.L. - Sabe bem que eu tenho razão.

A.S. - Generalizar, encontrar padrões é um risco que eu tenho de correr...mas confesso-lhe que não gosto...gosto de pensar que me movimento entre excepções à regra.

V.L. - Então está no caso certo! (ahaha)

A.S. - O que é que este caso tem de original?...cumpre os padrões do crime passional...

V.L. - Apenas com uma pilinha desaparecida de bónus, certo? (ahaha)

A.S. - Sim...é paixão com brinde (ahah)

V.L. - Viva, sabe fazer uma piada!

A.S. - A aparente loucura é quase sempre um véu, sabe disso?

V.L. - A Custódia era uma mulher apaixonante, isso sim posso-lhe confirmar, nem a Simone, nem eu lhe chegávamos aos calcanhares, e era uma mulher linda, julgo que conseguiu reparar  nisso...ou se calhar andou atarefado nas impressões digitais...olhe que nem queira saber o que já passou por aquelas defuntas mãos! (ahah)

A.S. - Que quer dizer com isso?

V.L. - Ai que me saiu um polícia curioso, credo! (ahahah)

 (...)

Transcrição do depoimento de Viviane Lopes, recolhido pelo inspector Álvaro Simões, um mês depois da morte de Custódia Passos, e publicado no Boletim Mensal do Investigador

O Discurso


Meus queridos amigos e companheiros nesta arte da busca do epigrama ideal, a História recente mostra-nos que nem sempre as frases sabem estar à altura dos acontecimentos e nem sempre os acontecimentos sabem estar à altura das frases. Não será novidade se vos disser que determinadas frases mudaram o curso da história, não será novidade se vos disser que ideias mal expressas transformaram-se inadvertidamente em novas ideias e não será novidade se vos disser que vivemos os tempos em que se matam as mensagens para poupar e manter os mensageiros.

Como trazer de novo as ideias para a frente da História? Só nós o saberemos fazer: cuidando do belo efeito. No Jardim do Tempo florescem pequenas pérolas floridas que escapam às multidões, seja por negligência, distracção, ignorância, insensibilidade, ou mesmo desprezo e só nós podemos cuidar desses canteiros, só nós poderemos dar ao mundo a cor e o cheiro que ele necessita neste momento.

Tem sido claro que a retórica moderna se concentrou em desviar a atenção das pessoas do essencial para o acessório, pois revelou-se mais rentável manipular o acessório, é mais fácil levar-nos a crer que a bondade é um subterfúgio da beleza do que o contrário, é mais fácil fazer-nos crer que a felicidade é uma filha dilecta da vontade do que mostrar-nos que a vontade é uma enteada das circunstâncias.

Temos de saber estar à altura do momento que a História nos entrega, e temos de saber lidar com os grandes sifões do Tempo. A partir de hoje está lançado o embrião para o movimento da nova demagogia, rumo ao Partido do Belo Efeito. Será a casa comum da frase ideal, da frase inspiradora, da frase que nos mostrará o caminho certo, num ambiente hegeliano de nova geração. 'A realidade terá de se juntar a nós', será este o nosso lema.


Excerto do Discurso de tomada de posse de Flaubert Queirós como 1º Bastonário da Ordem dos Epigrafistas, eleito em Outubro de 2012.

Fado [II]


Colo marcado pela dor
que me invadiu tão cedo,
inspirada naquele estupor
escondido em segredo

num lençol manchado
de suor sem sangue,
e das lágrimas resguardado
como um bandido sem gang.


Refrão do fado 'Sudação' da autoria de Custódia Passos e imortalizado na voz de Capilé

O Diário [II]


A Viviane acabou de sair daqui. Jantámos, ela estava de poucas falas, o que é normal, a condenação de plágio, por mais que ela desvalorize e até brinque com isso, acabou por lhe reduzir as possibilidades de ser nomeada comissária para a Grande Exposição da Rima Portuguesa. E é injusto, claro que é injusto, ninguém conhece os mecanismos e a história da rima portuguesa como ela.

Fui carinhoso com ela, sim, acho que fui, fui. Tendo em conta a minha insegurança em relação aos sentimentos dela, e àquele raio de sensação que tenho de que há qualquer coisa que me falta para que ela goste realmente de mim, até fui carinhoso. Vou morrer com esta sensação de merda. As sensações deitam-nos tudo a perder. Devia ter apostado mais nas ideias quando era novo, mas se calhar fui preguiçoso, ou as sensações começaram a render-me mais cedo e acomodei-me. Ainda me lembro da minha primeira sensação romântica: uma miúda gira, esperta, muito cobiçada, e eu a imaginá-la a reprimir a atracção que tinha por mim, se tivesse pensado melhor talvez a tivesse esquecido logo e pouparia a minha úlcera e aqueles contos todos que escrevi e de que agora me arrependo. Mas são estas Vivianes que lançam os homens nas mãos das Simones.

Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, entrada de Novembro de 2013, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma.

O Editorial


A notícia do encerramento da joint-venture para o mercado do Brasil entre as Editoras Mosca Morta e Choco com Tinta (denominada Mosca Choca) marca um revés importante não só na aposta de internacionalização de ambos os grupos mas igualmente na possibilidade de levar para mercados mais vastos da língua portuguesa escritores como Raimundo Múrcia, Ernesto Mourão ou Simone Bolina, entre outros. Queremos crer que este retrocesso nada teve a ver com as desavenças públicas entre alguns destes escritores, que têm na sua vida privada uma relação conturbada que muitas vezes é transportada para as editoras onde pertencem, se não mesmo para os próprios livros, mas é impossível não nos debruçarmos sobre este tema. Quando em Março passado Ernesto Mourão disse numa entrevista que «há situações que pedem rupturas e há rupturas que pedem destruição» o meio literário e editorial ficou estupefacto pois sabia-se da importância que revestia o projecto brasileiro para ambas as chancelas. Por outro lado, a morte da escritora Custódia Passos deixou um lastro de mistério e desconfiança no mundo editorial para o qual não ajudaram as informações que têm vindo a lume sobre o caso, e que se sucedem ao ritmo dum triller digno duma corrente paralela ao surrealismo. Custódia era uma mulher fascinante mas o seu fascínio radicava também numa total ausência de previsibilidade e estrutura; era uma mulher que se deixava levar mas consolidando sempre a sensação de que se mantinha ao comando dos acontecimentos. Sabe-se hoje que o projecto Mosca Choca tinha sido de inspiração sua e tudo leva a crer que a sua principal motivação era unir Raimundo e Ernesto num ringue em que pudesse ser ela a ditar as regras (era a principal accionista, veio a saber-se após a sua morte, mas ainda é desconhecido o teor completo do testamento), dominando-os, condicionando-os, deixando-os em suspenso dos seus caprichos, sempre protegidos pela áurea premonitória que soube criar à sua volta. O domínio feminino é um dos temas menos estudados pela sociopolítica pois apresenta um encanto literário excessivo que afasta os especialistas. Como dizia Custódia: «por detrás duma grande mulher há sempre dois homens, só um não é suficiente».

in o Editorial da Revista Cul-de-Sac Internacional

O Depoimento [I]


Inspector Álvaro Simões - Qual era a sua relação com Custódia Passos?

Viviane Lopes - Éramos amigas desde o liceu, e começámos a escrever ao mesmo tempo.

A. S. - Pode dizer-se que eram íntimas?

V. L. - Desde que o conceito não implique erotismo convencional, sim.

A. S. - Acha que ela tinha razões para se suicidar?

V.L. - Todos temos razões para nos suicidarmos....

A. S. - Mas nem todos nos suicidamos... sabe que ela tinha escrito um bilhete e que o tinha junto a ela?

V.L. - Sei porque o senhor mo mostrou no dia em que ela morreu.

A.S. - É verdade...e alguma vez sentiu, dado que eram íntimas sem erotismos convencionais, que havia uma probabilidade forte que ela cometesse suicídio?

V.L. - Não, de todo, a Custódia não se pode dizer que tivesse nenhuma nostalgia dos absolutos, ela gramava curtir os acontecimentos mesmo que lhe fossem inconvenientes.

A.S. - Não percebi, mas vou concluir que me quer dizer que não era previsível que ela se suicidasse...

V.L. - E muito menos com bilhetinhos fatelas!

A.S. - E acha que alguém teria interesse em que ela morresse?...

V.L. - Defina-me interesse.

A.S. - ...Se alguém ganhava alguma coisa com isso.

V.L. - Que eu saiba não tem herdeiros à perna...

A.S. - e desgostos de amor à ilharga?...

V.L. - Chiça, assim já cá não estava ninguém. (ahahah)

A.S. - Refiro-me a desgostos com apetência para a vingança, a destruição...

V.L. - A Custódia era daquele género de mulher que não gostava de criar expectativas a ninguém.. e isso é uma faca de dois gumes, até eu já a tinha avisado disso...

A.S. - Tinha-a avisado de que alguém a podia matar?

V.L. - Não, tinha-a a visado que o macho por muita sobranceria que tenha não sabe viver sem expectativas emocionais. Faz parte da proverbial fragilidade masculina.

A.S. - E a fragilidade pode ser agressiva...

V.L. - Não me dê dicas dessas...eu sou escritora, começo a divagar e depois não o ajudo (ahahah)

A.S.- Parece bem disposta...

V.L. - Não será aquela coisa do nervosismo?...

A.S. - Vamos supor que sim. Matou a Custódia Passos?

V.L. - Credo, claro que não, e você precisava de ser bruto, porra!?

A.S. - Não, mas o meu ordenado tem subjacente certas perguntas, a srª também não se pode esquecer de pôr um titulo nos seus livros, está a ver?

V.L. - O sr Agente está a perder-se aqui...já pensou nisso?

A.S. - Pois, mas existia uma certa rivalidade entre a Custódia e a Simone Bolina, não havia?

V.L. - Rivalidade como?

A.S. - Homens, carreira, fama, charme...

V.L. - Rivalidade não é uma boa palavra... havia guerra mesmo. (ahahah)

A.S. - E qual era o território principal em disputa?

V.L. - Então e o bilhetinho não lhe está a servir para nada?

A.S. - Que informação é que acha que tem o bilhete?

V.L. - Geralmente esses bilhetinhos são autênticos mapas do tesouro!...

A.S. - A propósito de mapas...sabe para onde foi Simone Bolina depois do almoço?

V.L. - Saber, não sei, mas ela disse-nos que ia fazer umas comprinhas.

A.S. - Mas as escritoras também fazem compras!?...

V.L. - Aquelas coisas que não conseguem sacar dos admiradores. (ahahah)

A.S. - Admiradores ou amantes...

V.L. - As escritoras têm essa vantagem: só se deixam amar por quem as admire.

A.S. - Ou desvantagem...continuamos amanhã, pode ser, hoje a Srª D. Viviane está demasiado sorridente para um inquérito.

V.L. - Claro, não fui eu que morri, já reparou?


Transcrição do depoimento de Viviane Lopes, recolhido pelo inspector Álvaro Simões, um mês depois da morte de Custódia Passos, e publicado no Boletim Mensal do Investigador


A Crónica


Foi esta semana decretado que é proibido morrer até 2017. Os cemitérios estarão com enormes deficits, e não há verba para enterros decentes nos próximos tempos, resumindo: ou há subsídios ou há enterros, houve que escolher. Ficam de fora apenas os casos de suicídios e as septicemias, mas os cancros e os traumatismos vão ter de esperar por melhores dias. Se virmos bem é uma medida acertada, há muita morte estúpida, mal planeada, muito oportunismo, muita gente que se quer aproveitar e vivemos um momento difícil em que todos têm de dar o seu contributo. Eu cá tinha decidido morrer para o ano, mas posso perfeitamente esperar e sacrificar-me um bocadinho.

Por outro lado soube-se há poucos dias que a Troika condiciona o acesso de Portugal aos mercados ao aparecimento da pilinha de Flávio Cossaco. É conhecido que tem causado mau estar nos círculos financeiros internacionais a incapacidade das autoridades portuguesas em suster a fuga de pilinhas para o estrangeiro e teme-se que este caso seja a ponta do iceberg duma rede de trafico de pilinhas. Mesmo assim, o projecto legislativo, já conhecido como a Lei Cossaco, tem levantado fortes reservas, designadamente à Ordem dos Epigrafistas que, tendo perdido o controlo da atribuição de umbigos oficiais da nação, se vê agora também na iminência de perder o controle ao contingente nacional das Pilinhas de Valor Intrínseco e Acrescentado (as pivia), algo que tinham logrado alcançar depois de muita reivindicação e que consideravam fazer jus, entre outras coisas, à memória de Custódia Passos, a malograda epigrafadora e autora de Sorte Macaca. Como ela costumava dizer: «No espremer bem é que está o ganho»; essa é que é essa.


Excerto da Crónica Mensal de Bernardo Marujo Cidreira (pseudónimo de Julio Paisana), Essa é que é essa, publicada no número especial de Páscoa de 2015 de  O Badanal.

O Diário [I]


Hoje recebi um telefonema estranho da Custódia. Chorava convulsivamente. E eu que julgava que ela vinha programada para não chorar. Não me disse a razão, disse só que precisava de alguém com quem chorar e que não perguntasse nada. Eu sou bom nisso, a não perguntar nada. Para uns parece desinteresse, mas há quem dê valor, aleluia! Está muito sobrevalorizado o conselho, deviam pôr mais os olhos naqueles que se limitam a ter paciência. Mas coitada da Custódia, também me fez pena; eu ainda não estou insensível, foi bom perceber isso. A seguir falei com a Simone; o costume. Ainda bem que nunca me apaixonei por ela, se calhar até sou o único, e nunca se sabe, num homem nunca se sabe.

Amanhã acho que acabarei o meu livro, vou-lhe dar um titulo simples, talvez o 'fim da tarde' ou simplesmente 'esplanada', não sei, na Fuligem há sempre alguém que se sente especialista em títulos, os títulos são como o bolo de chocolate, há sempre uma avozinha que faz um que nunca se esquece. Felizmente nunca conheci nenhuma avó e por isso sou um eterno apologista do pastel de nata.

Pensando bem a Simone nem é nada de deitar fora. Curiosamente ontem o Flávio disse-me que tinha namorado com ela em tempos e que se inspirara nela para uma personagem dum livro qualquer. Eu era incapaz de fazer uma confissão dessas, para mim as personagens são sagradas.

Estou sem sono. Às vezes era bom gostar mesmo de alguém; de alguém que pudesse estar por perto. A Viviane nunca esteve perto.


Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, entrada de Janeiro de 2013, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma.

A Peritagem


Em sequência das várias sessões individuais com o Sr. Ernesto Mourão tive ocasião de poder comprovar estar na presença de uma pessoa com uma personalidade muito marcada pela timidez e a insegurança. Um domínio invulgar daquilo a que eu chamarei as 'convenções morais' construiu-lhe uma postura defensiva sobre a vida se bem que estruturada em torno de inflexibilidades e rupturas. Da sua relação, referida como «fugaz», com a vítima não transpareceram resíduos de trauma significativos, mas diga-se que na sua vida sentimental pontifica um notório mecanismo de ciúme exacerbado em torno de outra pessoa que tem alguma relação com a investigação em apreço. O paciente poderá ter manifestações violentas relacionadas com esta relação e os seus níveis de controle estão muito relacionados com, por mais estranho que pareça, com aquilo que tenha comido nas refeições anteriores. Apesar de ser raro, o Sindrome do Estômago Vazio revela-se em Ernesto Mourão de extrema importância para compreender e antecipar os seus comportamentos. Em resumo, poderemos enquadrá-lo dentro da categorias dos Previsíveis com bónus. Quanto à prevalência de impulsos que se consubstanciassem no homicídio de terceiros julgo serem de baixíssima probabilidade num ambiente de, repito, barriga cheia.

Excerto Adaptado do Retrato Psicológico de Saraiva Mourão, elaborado pelo Perito Manique Fagundes Vicente, no âmbito da investigação à morte de Custódia Passos, e publicado no número XXII da Revista de Psiquiatria de Penacova

O Badanal


Decorreu na passada 6ª feira a festa de lançamento da nova revista satírica O Badanal. O director será Vasco Dias que, para além de uma breve incursão na ficção com o seu recente romance Manjericão e Coco , na Editora Adamastor, já tinha dirigido o suplemento de viagens & gastronomia do extinto semanário A Humanidade. A nova Revista Mensal apostará, nas palavras de Vasco Dias, «numa perspicácia lúdica e numa mordacidade esclarecida» e, para além de vários nomes sonantes saídos do humorocómio nacional, contará com as estrelas literárias Raimundo Mourão e Rebelo Mendes (que acabou de receber o Prémio 'Cagões de Fafe' pelo seu Livro 'Os novos Charlatães') como colaboradores permanentes com duas colunas anunciadas eloquentemente como 'de nos mijarmos a rir' e já curiosamente patrocinadas pelas fraldas para incontinentes Lindor. Instado a responder à questão: «como se distinguir num mercado saturado de cómicos», Vasco Dias deu a palavra ao seu editor-chefe Julio Paisana ( o homem que já nos tinha contado como conhecera Kate Moss) que não se coibiu de dizer que «enquanto que uns mostram quem tem o dedo em riste nós mostraremos quem tem a pila murcha». Foi muito notada a presença de Flaubert Queirós, recentemente eleito o 1º Bastonário da Ordem dos Epigrafistas e que tudo aponta será um alvo privilegiado de inúmeras peças de 'O Badanal', a fazer fé do meme que corria na festa que encerrou o lançamento da Revista: «Quando a badana não presta até as epígrafes atrapalham».

Excerto da Notícia publicada no suplemento La Buondia do Semanário Nespresso, em Novembro de 2014

A Escuta

Simone - Sinto-me só, Raimundo.

Raimundo - Isso significa o quê?

Simone - Tenho saudades tuas.

Raimundo - Isso passa-te, deve ser qualquer coisa que comeste...ou não comeste.

Simone - Não precisas dessas insinuações ordinárias, sabes que nem gosto de simular certo tipo de sentimentos.

Raimundo - As pessoas mudam...aconteceram muitas coisas recentemente.

Simone - Sim...mas nada que tivesse a ver connosco.

Raimundo - Tudo tem a ver connosco.

Simone - Ai que querido, estás com presunção mas da solidária.

Raimundo - Eu sei que não precisas...tens muitos amigos.

Simone - Olha, ciúmes, pronto, já estou mais animada. (ahaha)

Raimundo - A despropósito, a policia já te largou a peúga?

Simone - Nem sei...Chegaste a dizer-lhes que tinhas andado a comer a Custódia na véspera dela morrer?

Raimundo - Como é que sabes isso!?

Simone - Disse-me a Viviane, olaré!

Raimundo - E desde quando é que sabes isso?

Simone - Se me convidares para jantar digo-te.

Raimundo - Ok, vou marcar no Darwin, está bom para ti?

Simone - Desde que não me envenenes, tudo bem (ahahah)


Transcrição de parte da gravação da escuta a uma conversa telefónica entre Simone Bolina e Raimundo Múrcia, realizada em dia desconhecido e pertencente ao processo de investigação à morte de Custódia Passos, que está disponível para consulta pública e foi publicada no Mel & Fel em Setembro de 2014


A Circular


É com grata satisfação que a Associação Portuguesa de Epigrafistas vem informar os seus associados e amigos que finalmente foi concluída a negociação com a Secretaria de Estado do Tesouro no sentido de dar substância à nossa histórica reivindicação de que fosse constituída uma taxa acessória à tributação em sede de  IRS dos rendimentos provenientes dos Direitos de Autor para reverter a favor do Fundo de Pensões do Epigrafista. Assim, passamos a transcrever o texto do nosso contentamento, extraído da Circular da DGCI «...a partir de 1 de Janeiro de 2014 será tributado adicional e autonomamente à taxa de 5% o total dos rendimentos de direitos de autor que seja englobado no rendimento a tributar em IRS...». A Aprovação no Parlamento está garantida por uma maioria muito significativa de deputados, oriundos de todas as bancadas, que sempre se mostraram muito sensíveis à nossa causa. Não queremos deixar de dar uma palavra de especial gratidão ao Escritor e Epigrafófilo Flaubert Queirós, que não só soube estar connosco desde a primeira hora, como foi determinante no seu contributo técnico para desmontar as teses reaccionárias da corporação dos Badanistas. Aproveitamos igualmente para anunciar com máximo orgulho que estão reunidas todas as condições para avançarmos com a construção da Casa do Epigrafista, um desejo acalentado há muitos anos por todos nós, e que mais não fará do que elementar justiça para com todos aqueles que vasculharam as epígrafes que ajudaram a construir um Portugal livre e moderno.