Sobram-me sentimentos, sobram-me inseguranças, sobram-me
falsas esperanças, faltam-me dúvidas, faltam-me penas, faltam-me injustiças.
Vivo no equilíbrio estável que fornece aquela mediocridade tão própria de quem
sabe que teve uma vida banal, das que não chegam a produzir revoltas nem depressões
e que se consegue arrumar num cantinho cheio de melancolias estéreis mas que
aconchegam. A Viviane hoje não pode vir cá jantar, e inesperadamente ligou-me a
Simone a dizer que me queria ver. Apareceu-me logo cinco minutos depois, com um
ar atrevido, insinuante, como que disposta a ocupar um espaço que ela sabia
estar vazio. Fez-me uma festa, deu-me um beijo, mostrou-me um colar novo que
tinha comprado, dois poemas que tinha escrito para uma cantor qualquer e
pediu-me atenção, não sem antes ter dito que eu era o melhor atencioso do
mundo, que conseguia ouvi-la e vê-la sem ser com olhos de comer, infelizmente
para ela, disse também com aquele sorriso que leva qualquer homem para entre as
suas pernas em menos de 15 segundos. Queria falar-me da Custódia e queria saber
se ela alguma vez se tinha apaixonado por mim. Não me conhece, devia saber que
nunca ninguém se poderá apaixonar por mim e que eu, além disso, jamais poderia
dar o que quer que fosse à Custódia que ela não conseguisse alcançar de forma
superlativa com qualquer outro homem. Ela percebeu os meus pensamentos e
atalhou que há regras da atracção que eu desconheço, que as mulheres não seguem
certas lógicas de capitalismo erótico que estão imbuídas no inconsciente
masculino, e continuou, continuou, continuou, até que sem pré-aviso
adormeceu nos meus braços, já meio dormentes com essa fantástica sensação de que 'sou uma merda mas elas há certos merdas de quem gostam' . Entretanto, como num filme de terceira categoria,
apareceu a Viviane, fresca como uma alface, para uma ceia de gula e outros pecados
avulsos. Felizmente eu tenho aquele cantinho das melancolias estéreis mas que
aconchegam e fui para lá, sozinho, abracei a minha mediocridade, e só acordei a
meio da noite com a casa vazia e com um bilhetinho: «Amanhã vamos almoçar com a
Custódia, queres aparecer? Prometemos novidades. S & V».
Excerto do Diário
de Salvador Alves Arinto, entrada de Janeiro de 2013, apresentado em
pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma
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