O Diário [IV]


Sobram-me sentimentos, sobram-me inseguranças, sobram-me falsas esperanças, faltam-me dúvidas, faltam-me penas, faltam-me injustiças. Vivo no equilíbrio estável que fornece aquela mediocridade tão própria de quem sabe que teve uma vida banal, das que não chegam a produzir revoltas nem depressões e que se consegue arrumar num cantinho cheio de melancolias estéreis mas que aconchegam. A Viviane hoje não pode vir cá jantar, e inesperadamente ligou-me a Simone a dizer que me queria ver. Apareceu-me logo cinco minutos depois, com um ar atrevido, insinuante, como que disposta a ocupar um espaço que ela sabia estar vazio. Fez-me uma festa, deu-me um beijo, mostrou-me um colar novo que tinha comprado, dois poemas que tinha escrito para uma cantor qualquer e pediu-me atenção, não sem antes ter dito que eu era o melhor atencioso do mundo, que conseguia ouvi-la e vê-la sem ser com olhos de comer, infelizmente para ela, disse também com aquele sorriso que leva qualquer homem para entre as suas pernas em menos de 15 segundos. Queria falar-me da Custódia e queria saber se ela alguma vez se tinha apaixonado por mim. Não me conhece, devia saber que nunca ninguém se poderá apaixonar por mim e que eu, além disso, jamais poderia dar o que quer que fosse à Custódia que ela não conseguisse alcançar de forma superlativa com qualquer outro homem. Ela percebeu os meus pensamentos e atalhou que há regras da atracção que eu desconheço, que as mulheres não seguem certas lógicas de capitalismo erótico que estão imbuídas no inconsciente masculino, e continuou, continuou, continuou, até que sem pré-aviso adormeceu nos meus braços, já meio dormentes com essa fantástica sensação de que 'sou uma merda mas elas há certos merdas de quem gostam' . Entretanto, como num filme de terceira categoria, apareceu a Viviane, fresca como uma alface, para uma ceia de gula e outros pecados avulsos. Felizmente eu tenho aquele cantinho das melancolias estéreis mas que aconchegam e fui para lá, sozinho, abracei a minha mediocridade, e só acordei a meio da noite com a casa vazia e com um bilhetinho: «Amanhã vamos almoçar com a Custódia, queres aparecer? Prometemos novidades. S & V».

Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, entrada de Janeiro de 2013, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma

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