Hoje recebi um telefonema estranho da Custódia. Chorava
convulsivamente. E eu que julgava que ela vinha programada para não chorar. Não
me disse a razão, disse só que precisava de alguém com quem chorar e que não
perguntasse nada. Eu sou bom nisso, a não perguntar nada. Para uns parece
desinteresse, mas há quem dê valor, aleluia! Está muito sobrevalorizado o
conselho, deviam pôr mais os olhos naqueles que se limitam a ter paciência. Mas
coitada da Custódia, também me fez pena; eu ainda não estou insensível, foi bom
perceber isso. A seguir falei com a Simone; o costume. Ainda bem que nunca me
apaixonei por ela, se calhar até sou o único, e nunca se sabe, num homem nunca
se sabe.
Amanhã acho que acabarei o meu livro, vou-lhe dar um titulo
simples, talvez o 'fim da tarde' ou simplesmente 'esplanada', não sei, na
Fuligem há sempre alguém que se sente especialista em títulos, os títulos são
como o bolo de chocolate, há sempre uma avozinha que faz um que nunca se
esquece. Felizmente nunca conheci nenhuma avó e por isso sou um eterno
apologista do pastel de nata.
Pensando bem a Simone nem é nada de deitar fora.
Curiosamente ontem o Flávio disse-me que tinha namorado com ela em tempos e que
se inspirara nela para uma personagem dum livro qualquer. Eu era incapaz de
fazer uma confissão dessas, para mim as personagens são sagradas.
Estou sem sono. Às vezes era bom gostar mesmo de alguém; de
alguém que pudesse estar por perto. A Viviane nunca esteve perto.
Excerto do Diário
de Salvador Alves Arinto, entrada de Janeiro de 2013, apresentado em
pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma.
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