Cheguei agora do teatro. Foi - finalmente - a estreia da
Viviane. Depois de ter metido na cabeça que um dia seria actriz, e representaria
a Fedra, lá perseguiu esse seu desejo - capricho - com uma persistência só
dela. Permanece ainda a minha grande dúvida: qual a razão desta sua escolha, a
tragédia não casa com ela e muito menos esta onde os remorsos são os reis da
parada. Nunca mo explicou e as suas saídas enigmáticas ainda me têm posto mais
curioso. Hoje foi outra: «nada acontece por acaso e a morte é o mais causal dos
acontecimentos». Fomos cear juntos com o rapaz que faz de Hipólito, por sinal
um tipo bem disposto e que está claramente apanhadinho pela Viviane. Não sei o
que ela lhe disse sobre mim, o que mais me irrita é que se calhar nem lhe disse
nada, ou disse-lhe praí o clássico de que sou amigo de infância e pouco mais fiz
que figura de croupier de estimação, ali a servir-lhes vinho e uma deixa ou
outra para eles brincarem com as minhas palavras como se fossem copas a dançar
com paus. O desinteresse - desprezo - que a Viviane tem por mim está a atingir
um requinte só ao alcance dos grandes vingativos e é isso que ainda me deixa
mais confuso porque nunca lhe fiz qualquer dano, a não ser gostar dela...talvez
seja isso, isso incomoda-a, como incomoda que nos ame alguém a quem não amamos.
No camarim o encenador estava deliciado com ela, dizia que a Viviane trazia uma
raiva misturada de encanto que só actores de excepção conseguem comunicar no
palco. Mais outro apanhadinho por ela, certamente, ou então está a confundir
mamas e manha com talento. Mas uma coisa é certa, nunca uma Fedra apresentou um
rabo assim, e a qualquer momento parecia que o Hipólito ia fugir ao argumento,
borrifar-se para o pai e fugir com ela para uma praia nas Caraíbas. E eu ali,
feito parvo, sem poder adormecer na plateia, sem poder dizer a ninguém que ela é,
foi ou será minha, e com aquela vontade ruinosa de ser ninguém. Espero que uns
lençóis lavados e a cheirar a campo consigam tratar disto.
Excerto do Diário
de Salvador Alves Arinto, entrada de Junho de 2013, apresentado em
pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma
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