O Diário [V]


Cheguei agora do teatro. Foi - finalmente - a estreia da Viviane. Depois de ter metido na cabeça que um dia seria actriz, e representaria a Fedra, lá perseguiu esse seu desejo - capricho - com uma persistência só dela. Permanece ainda a minha grande dúvida: qual a razão desta sua escolha, a tragédia não casa com ela e muito menos esta onde os remorsos são os reis da parada. Nunca mo explicou e as suas saídas enigmáticas ainda me têm posto mais curioso. Hoje foi outra: «nada acontece por acaso e a morte é o mais causal dos acontecimentos». Fomos cear juntos com o rapaz que faz de Hipólito, por sinal um tipo bem disposto e que está claramente apanhadinho pela Viviane. Não sei o que ela lhe disse sobre mim, o que mais me irrita é que se calhar nem lhe disse nada, ou disse-lhe praí o clássico de que sou amigo de infância e pouco mais fiz que figura de croupier de estimação, ali a servir-lhes vinho e uma deixa ou outra para eles brincarem com as minhas palavras como se fossem copas a dançar com paus. O desinteresse - desprezo - que a Viviane tem por mim está a atingir um requinte só ao alcance dos grandes vingativos e é isso que ainda me deixa mais confuso porque nunca lhe fiz qualquer dano, a não ser gostar dela...talvez seja isso, isso incomoda-a, como incomoda que nos ame alguém a quem não amamos. No camarim o encenador estava deliciado com ela, dizia que a Viviane trazia uma raiva misturada de encanto que só actores de excepção conseguem comunicar no palco. Mais outro apanhadinho por ela, certamente, ou então está a confundir mamas e manha com talento. Mas uma coisa é certa, nunca uma Fedra apresentou um rabo assim, e a qualquer momento parecia que o Hipólito ia fugir ao argumento, borrifar-se para o pai e fugir com ela para uma praia nas Caraíbas. E eu ali, feito parvo, sem poder adormecer na plateia, sem poder dizer a ninguém que ela é, foi ou será minha, e com aquela vontade ruinosa de ser ninguém. Espero que uns lençóis lavados e a cheirar a campo consigam tratar disto.  

Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, entrada de Junho de 2013, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma

Sem comentários: