Sempre me considerei um assassino de palavras. Vejo-as a
nascerem na minha cabeça, viçosas, cheias de esperanças, e de repente puxo pela
caneta e zás! rebento com elas, entalando-as umas nas outras como numa vala
comum. Depois, ainda não contente com isso, lanço-lhes combustível, e quando
acho que já estão bem regadinhas, zás! largo o fósforo em chama e transformo-as
em obras de literatura, o equivalente a um jazigo nesta grande hierarquia da
vida que são os símbolos mortuários. Olho para o que escrevo como múmias de
miniatura que fui juntando, num
coleccionismo mórbido de ideias que nunca mais verão a luz do dia, pois uma
palavra escrita, uma frase, um capítulo, tudo isso são restos mortais daquilo
que nos passa pela cabeça; escrevo para matar, não tenho qualquer dúvida disso,
treino homicídios com palavras escritas, crimes impossíveis de deslindar, é
essa a minha felicidade, a felicidade mesquinha do assassino que sabe nunca
será descoberto. Lerem-me faz-vos cúmplices, não são testemunhas, não, vocês
são aqueles que ficam à esquina a dar-me o sinal de que posso continuar a matar
à vontade, torcendo ainda mais e mais o pescoço das vítimas, essas pobrezinhas,
que um dia se lembraram de passear incautas pela minha cabeça.
excerto do discurso proferido pelo escritor Dário Carneiro
aquando da atribuição do prémio Pingo Doce das Letras, em Dezembro de 2013
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