A ideia de suspender a democracia durante vários meses era
evidentemente exagerada. Julgo que o modelo adoptado desde 2012 é bastante mais
acertado: suspendê-la dia sim dia não. Por um lado não nos viciamos nela, e por
outro não nos afeiçoamos em demasiado, ou seja, as duas dependências mais
nefastas da nossa espécie, o vicio e a carência, ficaram postas de lado. Se uns
dias somos espoliados sem consulta prévia em algo que já nem sentíamos possuir
de tão habituados que estávamos de usufruir, no dia seguinte voltamos a retomar
a gloriosa sensação de que nos têm de prestar contas; a nuance é esta: os
poderes têm cada vez menos coisas para nos prestar contas, nós temos cada vez
menos contas para prestar ou exigir, e o equilíbrio vai-se assim produzindo
plácida e comodamente como numa praia mar que se estende por um vasto areal de
falso dourado. Hoje a sociedade inquieta-se à segunda, revolta-se à terça,
acomoda-se à quarta, indigna-se à quinta e relaxa à sexta. O fim-de-semana fica
reservado para aqueles que ainda tenham energias para a perplexidade, o
desencanto, a preparação dos farnéis da semana, a oração, o sexo industrial ou
o suicídio. Lembremo-nos da nossa Custódia, aparentemente morreu (suicidou-se?)
numa segunda feira, ao almoço, seria o excesso de amor, seria a falta dele, seria
a tal atroz indiferença olímpica, não sei, mas penso que nesta agenda semanal
tão rica ela não encontrava espaço para a escravidão que todos merecemos. Já no
romance seminal de Raimundo Múrcia ('Purificação'), por sinal um dos homens que
passou pela vida (e se calhar pela morte) de Custódia, este nos tinha
apresentado o papel redentor da perca de liberdade, hoje percebemos que o nosso
maior luxo é termos voltado a uma espécie de nomadismo ético: o bem comum tem
dias.
Excerto da Crónica de Carlos Corrimão, publicada no Benavente Weekly, em Outubro de 2013
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