Ser estúpido é algo que requer uma utilização criteriosa de
amplos recursos. Em geral podem encontrar-se 2 grandes tipos de estupidez: a natural
e a elaborada. O primeiro tipo está bastante bem difundido pela espécie e é uma
das chaves mestras da nossa sobrevivência a par do polegar pênsil, do uso do
fogo, do cartão de crédito e da roda. No entanto, mesmo esse nosso talento
inato para colocar a realidade ao serviço das nossas entranhas mais íntimas
exige treino e interacção com vários recursos, designadamente o desprezo pelo
semelhante e , nos casos mais sofisticados, o desprezo por nós próprios.
Deixando um pouco de lado este tipo de estupidez natural, debruçar-me-ei no
segundo tipo que chamarei de estupidez-elaborada. Quando se diz, por exemplo:
não há limites para a estupidez - é precisamente desta que estamos a falar.
A estupidez elaborada tem, desde logo, um ponto de contacto
muito relevante com a natural, trata-se da pose. A pose estúpida é a combinação
do talento natural-estúpido com um trabalho artesanal que inclui trejeitos,
tiques e fosquices, sem menosprezar esgares diversos. É, no entanto, objecto de estudo dos fisionomistas-pantomínicos
e deixamos para outra ocasião. Situemo-nos agora na observação dos mecanismos
mais recorrentes na elaboração da estupidez. Em primeiro lugar temos a fenómeno
da 'sobranceria'. O uso da sobranceria deve ser concretizado de forma muito parcimoniosa,
não se deve esbanjar sobranceria pois se ela transbordar poderá conduzir a que
não sejamos levados a sério. Um verdadeiro estúpido condimenta sempre a sua
sobranceria com momentos de comiseração patética. A comiseração patética
distingue-se da comiseração lúdica porque implica a maior utilização de
trejeitos de lábio e em menor grau os de nariz ou testa (os olhares terão
direito a dissertação específica). É talvez um tema demasiado técnico para este
documento e podemos passar ao segundo elemento constituinte da estupidez-elaborada, trata-se do convencimento-misterioso. Um estúpido-elaborado
apresenta-se sempre senhor de um conhecimento oculto, também conhecido nalguns
fóruns técnicos como o graal-de-merda. Este aleph do estúpido deve concentrar
um efeito anestesiante nos auditórios que o rodeiam e apenas tem de se ter
cuidado com o efeito-fronteira da irritação alérgica. Um estúpido no ponto
rebuçado deve sempre causar irritação mas jamais deve permitir que esta vire
alergia. A alergia é a grande inimiga do estúpido-elaborado e funciona quase
como o mau hálito do padre num confessionário, que, designadamente, pode
fomentar pensamentos perturbadores do género do foda-se perdoa-me lá esta merda
e afasta o bafo de cima de mim. Por último, e para não nos alongarmos neste
estudo que se quer sucinto, - e eu hoje sinto-me sucinto - devemos debruçar-nos
sobre o tema do olhar do estúpido-elaborado. Em primeiro lugar há que afastar o risco de
confusão com o olhar de peixe, pois nem todo o olhar de peixe está afecto a um
estúpido (por vezes é um peixe mesmo) e nem todos os estúpidos têm olhar de
peixe. Uma coisa é clara, e todos os trabalhos de campo que efectuei o
demonstram, o estúpido deve estar dotado de algum esgazeamento de olhar, algo
assim entre a névoa e o alheamento e que vai muito bem juntamente com umas
olheiras discretas. Há, contudo, certos patrimónios genéticos que não permitem
este tipo de olhar e têm de recorrer a outros mecanismos fisionómicos, como sejam o do
carneiro-mal-mortismo que é de bastante mais fácil acesso a qualquer estúpido-em-elaboração. Os olhares com tendência mais inerte poderão ter de se socorrer do
plano B que se encontra no esbugalhamento. Este olhar esbugalhado é algo arriscado, e já ouve
muitos espécimes que foram encarados como meros curiosos, mas afinal acabaram por
funcionar muito bem como estúpidos-cientistas sociais, uma nova sub-espécie em
expansão. À laia de conclusão poderemos dizer que a estupidez elaborada dá-se
muito bem em ambientes de credulidade assistida, ou seja, em situações
históricas nas quais, à falta de catacumbas para nos escondermos duns cabrões
em legião, nos refugiamos em pastiches econométricos, o verdadeiro paraíso
simbólico do novo-estúpido, fazendo as vezes daquilo que o mercedes já
significou para o novo-rico. Não queria no entanto deixar-vos sem uma breve
alusão à nova preciosidade da estupidez moderna que é o uso da filosofia
política como muleta de estupidez. Com o advento do estúpido-com-estudos veio a
tentação de sedimentar a estupidez em algo de semelhante ao que, no passado, o piolho já tinha representado
para o estúpido medieval ou a cabeleira postiça para o estúpido ancien regime.
Hoje o estúpido-culto ancora-se numa visão integrada do mundo, vivendo com uma
espécie de clister hiper-estruturalista sempre enfiado, camuflado, digamos. Assim, é uma estupidez
que resulta muitíssimo bem, sempre fornecida de eficientes retóricas de ocasião,
e permitindo o desenvolvimento sustentado de uma das quinta-essências da
estupidez-elaborada que é o desdém pelo semelhante, conferindo-lhe aquela
auréola de iluminismo requentado de tão belo efeito, e que inclusive vai bem com qualquer tipo de botão-de-punho.
2 comentários:
desculpa a utilização abusiva
sempre ao dispôr
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